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A Tentativa Qualificada no

Direito Penal Brasileiro

 

 

                Maria Clara Jobst de Aquino

              Márcia Chiviacowsky

 

 

Introdução

 

Grande controvérsia tem-se formado em torno do que se pode chamar de “tentativa qualificada”. Seria esta, traduzida de maneira simplificada, o remanescente da desistência voluntária e do arrependimento eficaz, ou seja, a obrigação daquele que, desiste voluntariamente ou que se arrepende eficazmente, de arcar com o remanescente típico.

Verifica-se a tentativa abandonada – como também denominada por alguns doutrinadores – quando do insucesso da realização de um crime remanesce outro tipo penal diferente do primeiramente objetivado. Verificando-se ausência de culpabilidade superveniente no curso da mesma ou desistindo o agente posteriormente à consumação dos delitos-meios, ficará impune tão-somente a tentativa como tal, mas não os delitos que se tenham consumado no seu curso. Obedece-se ao princípio geral segundo o qual “o que a desistência deixa impune é só a tentativa como tal”.

É o que se extrai expressamente do Código Penal em seu art 15, in fine: “O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados”. E é com base na própria lei que se defende a punibilidade da tentativa qualificada, pois não são poucos os estudiosos e doutrinadores que alegam a atipicidade e conseqüente impunibilidade de tais atos.

 

Exemplificando, de acordo com o que reza tal art, não obstante a desistência do estupro, poder-se-á apenar por atentado violento ao pudor; desistido o roubo com destruição de obstáculo, poder-se-á punir por dano praticado contra a coisa; ao desistir-se da extorsão, se apenará o constrangimento ilegal; na desistência do homicídio, as lesões; etc.

 

 

FUNDAMENTAÇÃO E ADMISSIBILIDADE DA PUNIÇÃO DO REMANESCENTE TÍPICO DA DESISTÊNCIA VOLUNTÁRIA E DO ARREPENDIMENTO EFICAZ

 

 

Da tentativa

 

“Diz-se o crime tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma, por circuntâncias alheias à vontade do agente”

                                      -ART 14, II, CP-

 

Afirma-se, portanto,  que a tentativa é a execução começada de um crime, mas que não se consuma por circunstâncias alheias a vontade do agente. Dessa forma, a tentativa pressupõe o dolo, já que de início a intenção é de executar todo o tipo penal.

Ao punir a tentativa de crime, o ordenamento penal visa proteger um bem jurídico que efetivamente não correu perigo, mas que pela possibilidade de tentativa poderia vir a correr.

Tem como natureza jurídica o fato de ser uma norma de extensão temporal da figura típica causadora de adequação típica mediata ou indireta. Atua, portanto, no campo da tipicidade. Como bem observa Zaffaroni e Pierangeli, a tentativa é um delito incompleto, de uma tipicidade subjetiva completa, com um defeito na tipicidade objetiva.

Heleno Cláudio Fragoso, junto com outros doutrinadores brasileiros, considera a tentativa como a “realização incompleta da conduta típica”, a qual não se pune como crime autônomo, podendo ser considerada um fragmento de crime ao qual falta a sua última fase, que é a consumação.

É bastante controversa a linha que separa os atos preparatórios não puníveis dos atos de execução puníveis, pois o crime, desde o momento em que é iniciado até a sua efetiva consumação, passa por um conjunto de etapas denominado iter criminis. Tais fases podem ser assim determinadas: cogitação, fase interna de ideação, a qual não é punida via de regra, com algumas exceções, como por exemplo o art 288, CP; preparação, que busca o resultado típico mas também não é punida, a não ser quando é preparatória para outro delito; execução, fase esta já punível, onde o agente se coloca numa relação com a realização do tipo, colocando em marcha todos os seus meios e planos - se conseguir haverá a consumação.

Várias teorias foram surgindo com o fim de solucionar a grande controvérsia quanto à distinção entre atos preparatórios não puníveis e atos de execução puníveis:

Veio a Teoria Formal, também conhecida como Objetiva, inspirada no princípio da legalidade, pela qual o início da execução deve estar vinculado à realização do tipo, exigindo que o autor tenha realizado de maneira efetiva uma parte da própria conduta típica, penetrando, assim, no “núcleo do tipo”. Criticou-se a adoção de tal Teoria, pois tal critério estreitaria a esfera de incidência da tentativa, deixando de abarcar diversos atos reprováveis e passíveis de sancionamento, os quais consistiriam meros atos preparatórios impuníveis.

 Surgiu também a Teoria Subjetiva, pela qual não se enfatiza a descrição da conduta típica, mas o momento interno-subjetivo do autor, de modo que não se verifica se os atos executados pelo agente realizaram uma parte da ação típica, e sim examina-se em função do ponto de vista subjetivo do agente-autor. Foi criticada pela doutrina, porque o agente é apontado cedo demais como provável delinqüente, tornando possível incriminar o crime até mesmo em sua fase de cogitação.

Por último, veio a Teoria Objetivo-subjetiva, buscando uma sincronia e correspondência entre a realização do tipo e o plano do autor, em melhores palavras, parte do pressuposto que existe diferença entre início de execução do crime e início de execução do tipo, ou seja, o início da execução do crime se dá com a conduta que está estreitamente ligada a de realização do tipo de tal forma que inexista outra peça factual entre elas, mas tal pensamento não vingou majoritariamente entre nossos estudiosos do direito, pois, na prática, a execução dos tipos é muito variável e depende, no caso concreto, com o plano intelectual do autor.

Majoritariamente, adota-se o critério da Teoria Formal, em vista, também, do princípio da reserva legal, pelo qual só é considerado crime o fato expressamente descrito em lei. Então, só será considerado início de execução uma conduta que viabilize diretamente a execução do tipo e, conseqüentemente, exponha a risco o bem jurídico penalmente tutelado.

Diferentemente, quando a circunstância que impede a consumação do crime resultar de uma mudança de propósito do próprio agente e não de fato alheio à sua vontade, haverá a tentativa abandonada, que pode se manifestar nas formas da desistência voluntária ou do  arrependimento eficaz.    

 

 

Da desistência Voluntária

 

Causa de exclusão da tipicidade, a desistência voluntária se encontra tipificada na primeira parte do art. 15 CP: “ ...voluntariamente, desiste de prosseguir na execução...”.

Aqui, o agente pretende produzir o resultado consumativo, mas, mudando de idéia, impede a obtenção deste, por sua própria vontade. Por isso, o resultado não se produz por força da vontade do próprio agente, ao contrário da tentativa, na qual atuam circunstâncias alheias a sua vontade.

Afirmam alguns autores, que na desistência voluntária existe a atipicidade devido a ausência de dolo. Este caracteriza o último ato realizado para a existência efetiva da consumação. Quando este último ato não se realiza, em razão da intenção de retroceder na realização projetada, verifica-se a desistência voluntária. Tese contrária fundamenta-se no fato de que não há possibilidade de que um ato posterior seja capaz de extingüir o que já se declarou como proibido, pois, na verdade, o que ocorre é apenas uma interrupção do processo executório, isto é, este já iniciou, mas o agente não chega a praticar todos os atos de execução do crime por circunstâncias inerentes à sua vontade e intelecto.

Requisito fundamental para a constatação da desistência voluntária é a existência anterior de uma tentativa, por isso, ela só pode ocorrer na denominada tentativa imperfeita ou acabada, onde o agente não chega a praticar todos os atos de execução por circunstâncias alheias à sua vontade. Tal conduta, então, não pode ser considerada pelo seu autor como fracassada, a qual ocorre, por exemplo, quando no decorrer de um seqüestro a vítima morre, pelo fato de que no momento em que o autor toma ciência da morte da vítima, não mais se constata o dolo de privar da liberdade. Desse modo, seria inconcebível considerar a desistência do crime.

Ressalta-se também, que não ocorre desistência “voluntária”, mas simples desistência, quando o agente desiste de executar maior força em razão da mesma resultar em extremo alarme e ser descoberto, razão pela qual não se veria livre da pena, embora não se possa afirmar que a tentativa se qualifique como fracassada.  Esta deve ser considerada quando o agente não leva adiante a ação tendo e conhecendo a possibilidade fática de realizá-la. O agente ainda tem boa margem de execução do delito, mas  interrompe sua a execução do crime, impedindo, assim, a sua consumação por livre vontade sua.

A desistência voluntária, portanto, “trata-se de causa geradora de atipicidade (relativa ou absoluta). Provoca exclusão da adequação típica indireta, fazendo com que o autor não responda pela tentativa, mas pelos atos até então praticados, salvo quando não configurarem fato típico.”3 

                  

 

Do arrependimento eficaz

 

 

Também consiste em uma hipótese de inadequação típica de tentativa, onde, após ter esgotado todos os meios de que dispunha para a prática do crime, o agente se arrepende e evita que o resultado ocorra. Está para a tentativa acabada ou perfeita assim como a desistência está para a inacabada ou imperfeita, pois no arrependimento o agente já esgotou todos os meios de execução e desenvolve comportamento contrário para impedir a consumação.

Tal como na desistência, o arrependimento deve ser voluntário e sem coação, mas neste, o agente deve praticar nova atividade exitosa e efetivamente apta para evitar o resultado, caso contrário, por maior que se configure seu empenho, responderá pelo delito em sua forma consumada.

Não precisa ser o autor, necessariamente, a realizar diretamente a atividade visando a impedir a produção do resultado, pode ele valer-se de terceiros, como o médico ou a polícia, ou até mesmo do próprio sujeito passivo. Mas vale lembrar, como dito acima, que é o autor quem tem de se arrepender e procurar impedir o resultado delitivo, após encerrar a execução do crime subjetiva e objetivamente iniciado por ele.

 

 

Da tentativa qualificada

 

 

Tanto a desistência voluntária quanto o arrependimento eficaz, são espécies de tentativa abandonada ou qualificada. Tal expressão jurídica traduz-se na intenção do agente em produzir o resultado consumativo, mas vir a impedi-lo por sua própria vontade. Assim, o resultado não se verifica em virtude da vontade do próprio agente, ao contrário da tentativa, na qual concorrem circunstâncias alheias a essa vontade.

A tentativa qualificada, portanto, revela-se numa causa geradora de atipicidade (relativa ou absoluta). Provoca a exclusão da adequação típica indireta, fazendo com que o autor não responda pela tentativa, mas pelos atos até então praticados, salvo quando não configurarem fato típico.

Doutrinadores defendem a idéia de que a tentativa e o delito consumado formam um concurso formal próprio, no sentido de que, numa tentativa de homicídio, por exemplo, quando uma pessoa atira em outra para matar e acerta, realiza uma lesão corporal em concurso com a tentativa de homicídio; se arrependendo da tentativa, responde pela lesão. No concurso formal não pode ser outra a solução: “quando um agente, com a mesma conduta, viola duas ou mais normas tipificadoras, não sendo uma das violações punível, em razão da desistência voluntária, a única penalidade que resta é a da tipicidade punível. Assim, a desistência de uma tentativa de estelionato mediante o uso de documento particular falso deixará subsistente a punibilidade pelo uso do documento particular falso:”

Por sua vez, há quem defenda a incidência de um concurso aparente de normas, em que a punibilidade da tentativa traslada a dos delitos consumados no seu curso, que fica submetida a uma relação de subsidiariedade com a tentativa, isto é, a tipicidade punível da etapa posterior interfere na tipicidade da etapa anterior. Ainda numa tentativa de homicídio, o mesmo fato  que propicia a  regra da lesão corporal e da tentativa – esta absorve aquela, pois a lesão é meio.

Tanto a desistência voluntária quanto o arrependimento eficaz importam na impunibilidade do agente no que tange a tentativa, pois se trata de uma escusa absolutória. “Não parece aceitável a concepção segundo a qual a mudança de comportamento volitivo do agente eliminaria a tipicidade da conduta. Se, após a desistência, os atos passarem a ser atípicos, não o eram antes”.

É completamente absurdo que o Direito pretenda que um indivíduo fique impune por um delito só porque quis cometer outro de maior potencial ofensivo e injusto. Não teria sentido para o nosso ordenamento deixar um delito consumado sem pena só porque o seu autor pretendia cometer um delito diverso ou mais grave. Seria absurdo apenar um indivíduo que desejasse praticar atos libidinosos com uma criança e não apenar outro que produzisse o mesmo resultado somente porque queria praticar um estupro, mas que se arrependeu antes de consumar a conjunção carnal com ela.

Face a tais afirmativas, não existe outra alternativa senão a constatação de que a tipicidade do delito consumado no curso da tentativa não fica absorvida, mas apenas obstaculizada, vale dizer “sofre a interferência da tipicidade punível da tentativa. Desaparecida por qualquer causa a punibilidade do fato principal, desaparece o obstáculo à tipicidade que permanecerá interferida e esta passa a desempenhar o papel que deixa vazia a impunidade da tipicidade principal.”

Aqueles que defendem a não punição do agente, consideram que o art 14, inc. II, do Código Penal, define qualquer tentativa punível e relevante, ou seja, quando o autor não consuma um delito por circunstâncias alheias à sua vontade. Na hipótese de o consumar, já não haveria tentativa. Então, quando não se pode aplicar sanção prevista, porque no iter criminis se produziu uma ausência de culpabilidade ou tipicidade, não se terá possibilidade de apenar pela tentativa, posto que não entraria na definição legal do ordenamento jurídico.

Da mesma maneira, aquele que desiste deixaria de consumar o delito por sua própria vontade. Logo, desapareceria a tipicidade da tentativa, não haveria explicação para a proibição da conduta que consumou delitos no seu curso: era típica de tentativa e deixou de sê-lo com a desistência. Este posicionamento nos levaria ao absurdo de pretender que um fato fique impune porque o autor consumou outro mais grave em estado de inculpabilidade, e também que um delito fique impune porque em um momento o autor quis cometer outro mais grave.

 

 

CONCLUSÃO

 

Em face do exposto no referido estudo e diante do caos social decorrente do incessante aumento da violência e criminalidade, não restam dúvidas de que a corrente a ser defendida e adotada é a que se inclina para o fato de que a tipicidade punível da etapa posterior interfere na tipicidade da etapa anterior.

O que na verdade se está buscando ao adotar tal concepção é que as vítimas de tentativas de delitos não consumados em razão destes, não fiquem sem o devido ressarcimento quanto aos eventuais prejuízos que tenham sofrido, prejuízos estes tanto materiais quanto morais. Busca-se ainda a devida punição dos agentes que desistiram ou se arrependeram de consumar o ilícito, mas que causaram danos com suas condutas praticadas antes do arrependimento ou da desistência.

É de extrema importância que autoridades e representantes da justiça de nosso país unam esforços para a efetiva realização da teoria da punibilidade da tentativa qualificada. Diante da situação atual e dos princípios de prevenção e repressão aos atos ilícitos defendidos pelo Direito Penal, devem os profissionais do Poder Judiciário atuar de forma a punir não só os delitos consumados, como prevenir e efetivamente punir ações que por alguns não seriam objeto de punibilidade, mas que são plenamente capazes de lesar material e moralmente indivíduos, os quais, dessa maneira, devem sem nenhuma dúvida buscar o que lhes é assegurado pelo direito, a justiça plena.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

1.  Zaffaroni, Eugênio Raul e Pierangeli, José Henrique Da Tentativa: Doutrina e Jurisprudência, 6º edição, Editora RT,  2000.

2.  Mirabete, Júlio Fabbrini Manual de Direito Penal: parte geral arts. 1º a 120 do CP, vol. 1, 15º edição, Editora Atlas, 1999.

3.  Delmanto, Celso Código Penal Comentado, 5º edição, Editora Renovar, 2000.

4.  Fragoso, Cláudio Heleno Lições de Direito Penal, vol.1, 4º edição, Editora Forense, 1984.

5.  Capez, Fernando Curso de Direito Penal, vol.1, 2º edição, Editora Saraiva, 2001.

6.  Teles, Moura Ney Direito Penal, vol.1, 2º edição, Editora Atlas, 1998.

7.  Jesus, Damásio Direito Penal: Parte Geral, vol.1, 23º edição, Editora Saraiva, 1999.

 

 

 

1     ZAFFARONI, Eugênio e PIERANGELI, José Henrique, p. 112

2     CAPEZ, Fernando, p. 195

3     CAPEZ, Fernando, p. 200

4     CAPEZ, Fernando, p. 202

5     ZAFFARONI, Eugênio e PIERANGELI, José Henrique, p. 112

6     COSTA Jr, Paulo José, p. 75

7     ZAFFARONI, Eugênio e PIERANGELI, José Henrique, p. 113

8     ZAFFARONI, Eugênio e PIERANGELI, José Henrique, p. 114

 

 

 

Retirado de: http://www.ucpel.tche.br/direito/revista/tentativa_qualificada.doc