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UMA VISÃO CONSTITUCIONAL SOBRE A REDUÇÃO DA IDADE PENAL


Otávio Piva


Recentemente, face à repercussão de brutal homicídio cometido por adolescente, reacendeu-se acalorada discussão sobre a modificação etária da inimputabilidade penal, o que permitiria a aplicação de sanções criminais aos maiores de dezesseis anos de idade. Diversas autoridades públicas, das mais diversas áreas de atuação, inclusive eclesiásticas, manifestaram-se, ora a favor da redução, ora contra. No meio jurídico, não foi diferente a dicotomia estabelecida sobre o assunto.
Nada obstante, entendemos tratar-se de discussão estéril, carecedora de qualquer sentido prático. Explica-se: antes de ser discutida a necessidade da redução da idade penal, dever-se-ia questionar sobre a possibilidade de isso ser feito.
Sabe-se que ESTADO é a nação politicamente organizada1. O regramento fundamental de organização e direção é justamente a CONSTITUIÇÃO. É ela que fixa as bases do Estado e da ordem jurídica e social.
Como verdadeira síntese das várias acepções dadas à Constituição, Alexandre de Moraes2 procura defini-la, juridicamente, como a lei fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, forma de governo e aquisição do poder de governar, distribuição de competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos.
A Constituição é a Lei Fundamental e, assim, a mais importante de um Estado. É traço característico, especialmente desde a Declaração de Virgínia (1776) e da Revolução Francesa (1789), que ela traga em seu corpo (considerando sua maior densidade normativa) a DECLARAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS, visando que determinadas matérias não fiquem sujeitas à instabilidade das demais espécies normativas e, na visão de Hans Kelsen3, para que se erijam como limitações positivas ou negativas ao conteúdo das leis futuras, assim como à recepção das anteriores à Constituição.
Nos Estados democráticos, o reconhecimento expresso desses direitos fundamentais, no seio da Constituição, é feito através da chamada Assembléia Nacional Constituinte, resultante da vontade soberana do povo, expressa por meio de representantes eleitos especialmente para tão nobre finalidade. Por essa razão, sabe-se que o Poder Constituinte Originário, qual seja, aquele de fazer uma “nova” Constituição, é dito incondicionado, autônomo e, para alguns, ilimitado. Adverte-se, contudo, que essa “ilimitação” do Poder Constituinte Originário encontra-se somente em plano jurídico-formal, não podendo desprezar normas de direito natural. A expressão “incondicionado”, portanto, refere-se a qualquer tipo de limitação imposta pela Constituição anterior, nada mais do que isso.
Resta a questão: - poderiam os atuais Congressistas (que não foram eleitos para os fins constituintes) promover alterações do texto originário? A resposta afigura-se, inicialmente, positiva, eis que não se pode olvidar da necessidade de alterações do texto magno. A própria Constituição prevê, no artigo 60, o processo legislativo das emendas constitucionais. Traça, contudo, diversos parâmetros restritivos para esse procedimento alterador. Diferentemente do Poder Constituinte Originário, visto como ilimitado, o poder de emendar a Constituição, e com isso modificar o texto inicialmente estabelecido é sujeito a limites de diversas ordens, implícitos e explícitos. Atenção será dada aqui a apenas um desses limites, qual seja, a existência das chamadas cláusulas pétreas (limites materiais ao Poder de Reforma).
Na lição de Gilmar Ferreira Mendes4, “... tais cláusulas de garantia traduzem, em verdade, um esforço do constituinte para assegurar a integridade da constituição, obstando a que eventuais reformas provoquem a destruição, o enfraquecimento ou impliquem profunda mudança de identidade...”
Esse entendimento de que as cláusulas pétreas não podem sequer implicar o enfraquecimento ou profunda mudança de identidade é perfilhado, de forma muito mais incisiva, por Zeno Veloso5, ao reconhecer a possibilidade de o Poder Judiciário realizar controle preventivo de constitucionalidade de um projeto de emenda tendente a abolir uma das cláusulas pétreas: “A emenda constitucional não será inconstitucional, somente, quando extinguir, suprimir, ab-rogar um dos temas supergarantidos, tidos como valores essenciais, cerne imodificável da Lex Mater. A emenda será inconstitucional, bastando que viole, macule, desrespeite, “tenda a abolir” o núcleo essencial e inalterável da Constituição (...) É inconstitucional a mera pretensão de deliberar sobre uma proposta de emenda tendente a tal abolição.”
Nesse contexto, é importante lembrar que os direitos e garantias individuais expressos na Constituição, por força do art. 60, § 4º, IV, foram gravados como cláusulas pétreas, constituindo, portanto, núcleo essencial imodificável pela vontade do legislador constituído.
Ora, na medida em que a Constituição do Brasil, em seu artigo 228, diz que "São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial", entendemos que tal disposição traduz direito/garantia individual de natureza fundamental, portanto, abrigado por cláusula pétrea6.
Mas seria a inimputabilidade do art. 228 direito ou garantia individual?
Em que pese a Constituição haver destinado aos Direitos Fundamentais o Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais) e especialmente o Art. 5º (Dos direitos e deveres individuais e coletivos), não apenas estes têm o privilégio de tratar de matéria tão importante. Outros artigos esparsos também o fazem7.
Nesse sentido, a inclusão da inimputabilidade do art. 228 no rol dos direitos individuais é incontestável, considerando a matéria tratada, na medida em que confere ao menor de dezoito anos um direito fundamental subjetivo que é a condição de inimputável e, ainda, veda ao Estado a aplicação de condutas persecutórias reservadas aos imputáveis.
Em síntese, inimputabilidade penal está clara e diretamente relacionada ao conceito de dignidade da pessoa humana e, especialmente, ao direito de liberdade.
Considere-se, ainda, que a proteção das cláusulas pétreas é relativa aos “direitos e garantias individuais”. Não está restrita ao disposto em determinado artigo (Art. 5º) ou mesmo ao lançado em certo Título (Título II) da Constituição, mas abriga também os demais artigos cuja matéria tratada seja vista como direito ou garantia fundamental8.
Essa é a razão de, perfunctoriamente, termos afirmado que a discussão sobre a redução da idade penal é estéril. Insiste-se: na vigência da atual Constituição, não é dado ao Congresso Nacional, por emenda, reduzir a idade penal. Somente pela manifestação soberana do povo, via Assembléia Nacional Constituinte (ou por revolução) e, como conseqüência, com o estabelecimento de uma Constituição originária é que esse mister poderá ser licitamente atingido.
É crucial reforçar: a presente análise é desvestida de qualquer motivação pessoal sobre o assunto e também procura não deixar-se seduzir por visões religiosas, antropológicas ou criminológicas quanto à necessidade/desnecessidade ou benefício/prejuízo da redução da maioridade penal.
Preocupa-nos, isso sim, o fato de que desconsiderar a supremacia constitucional tornou-se uma constante, inclusive por quem mais deveria defendê-la: o Poder Público. A Carta Política vige desde 1988. Todavia é incansavelmente desprezada. Sua ineficácia, em muitos pontos, é gritante. Ainda em 1999, o então Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Reginaldo Oscar de Castro, em discurso inaugural da XVII Conferência Nacional da OAB, alertou que, em apenas dez anos de vigência, foram propostas, no Supremo Tribunal Federal, cerca de 2.000 ações diretas de inconstitucionalidade contra leis reputadas conflitantes com a Constituição.
Não se permita, assim, que a questão da redução da idade penal ingresse no rol desairoso e nada pequeno de exemplos de superação da supremacia constitucional. A manutenção da estabilidade das relações jurídicas e das instituições depende diretamente da estabilidade constitucional. O estado de direito depende disso. A democracia, conseqüentemente, depende dessa garantia de superioridade normativa. Enfim, não se deixe a sociedade brasileira refém de debates políticos e ideológicos descompromissados com a segurança jurídica trazida pela imutabilidade de alguns pontos de nossa Carta Magna. Não deixemos que a mais alta e fundamental Lei de um país, nas palavras de Ferdinand Lassale9, torne-se tão-somente mera “folha de papel”, sem força ativa determinante, subjugada pelos “fatores reais de poder”.

Otávio Piva - Advogado militante, Secretário-Geral do Instituto de Desenvolvimento Cultural – IDC, Professor de Direito Constitucional do IDC, da Fundação Escola Superior do Ministério Público do RS e da Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do RS.

 

 

Retirado de: http://www.idc.org.br/artigo_otaviopiva_Uma_Visao_Constitucional.htm