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A CRIMINALIZAÇÃO DO ASSÉDIO SEXUAL

 

RENÉ ARIEL DOTTI

Advogado e Professor Titular da Universidade Federal do Paraná.

 

 

 

SUMÁRIO: 1. O assédio do tema. 2. O Projeto de Lei nº 235/95. 3. O substitutivo ao Projeto de Lei nº 235/95. 4. A previsão do Código Penal espanhol. 5. A proposta da comissão de reforma da parte especial do CP. 6. O princípio da intervenção mínima. 7. A declaração de guerra contra o crime. 8. A criminalização radical. 9. O assédio sexual nas relações de trabalho. 10. A importunação ofensiva ao pudor. 11. Os inconvenientes da criminalização do assédio. 12. A criminalização do assédio sexual: política criminal ou política virtual.

 

      1. O ASSÉDIO DO TEMA

 

      Um filme norte-americano, um processo contra o Presidente Bill Clinton, um projeto de lei da Senadora Benedita da Silva e o journalisme à sensation monopolizaram uma boa parte dos debates travados na Comissão encarregada de elaborar um anteprojeto de reforma do Código Penal. O filme (Disclosure: Warner Bros, EUA, 1994), recebeu a tradução portuguesa de Assédio sexual e revela a armação feita contra o executivo Tom Sanders (Michael Douglas), pela esperta e insinuante Meredith Johnson (Demi Moore). Tom era um destacado funcionário da empresa Digicom até o dia em que Meredith é escolhida para ocupar o principal cargo do departamento onde ele trabalhava. A partir daí, Sanders percebe que as suas chances de promoção se esgotaram. A nova chefe lhe dá as boas vindas e marca uma reunião íntima para depois do horário de expediente. Ele achou estranhos a garrafa de vinho e o ambiente à meia-luz, preparados por ela. Ao rejeitá-la sexualmente Tom desafia a ira de Meredith, que no dia seguinte vira o jogo, acusando-o de assédio sexual. A partir de então, a sua carreira e até mesmo a sua vida familiar estão em jogo.

      O pedido de milionária indenização apresentado contra Bill Clinton quando ainda era Governador de Arkansas, sob a acusação de assédio sexual, pela ex-funcionária Paula Jones, conseguiu a proeza de mobilizar a Suprema Corte, alimentar os poderosos meios de comunicação e estimular a imaginação lúdica de uma grande legião de curiosos do mundo inteiro. Aquele court case tem sido um dos assuntos mais explorados nos últimos tempos pela mídia dos Estados Unidos, principalmente após o litisconsórcio ativo instaurado pela ex-estagiária da Casa Branca, Monica Lewinsky, que passou a acusar o Presidente Clinton de uma parceria amorosa. O affaire teria sido documentado em longas dezessete fitas gravadas clandestinamente por Linda Tripp, amiga de Mônica em confidências por telefone.

      O Projeto de Lei do Senado, nº 235, ainda tramita no Congresso Nacional, agora sob a forma de um Substitutivo apresentado pelo Senador José Bianco, na qualidade de relator. É compreensível, porém, que o destaque dado pelos meios de comunicação tenha como referência a figura da mulher no Parlamento. O primeiro artigo do disegno di legge coloca já em relevo o interesse à indenização, antes mesmo da definição do suposto crime: "Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo das ações cíveis cabíveis, as penalidades aplicáveis ao crime de assédio sexual".

      Não resta dúvida de que, se for convertido em lei, o diploma poderá ser utilizado como instrumento de locupletamento ilícito em ações de indenização por danos morais, diante da facilidade em se produzir o mais cômodo tipo de prova à disposição do litigante temerário: o depoimento pessoal.

 

      2. O PROJETO DE LEI N.º 235, DE 1995

 

      2.1. A redação original

     

      A redação original do Projeto de Lei nº 235, de 16 de agosto de 1995, era a seguinte:

      "Art. 1º. Regem-se pelas disposições desta lei, sem prejuízo das ações civis cabíveis, as penalidades aplicadas a atos de assédio sexual praticados contra mulheres e homens.

      "Art. 2º. Para os efeitos desta Lei, consideram-se como formas de assédio sexual:

      "I - Assédio verbal: constranger, por meio de palavras ou gestos, mulher ou homem, com o intuito de obter favorecimento ou vantagem sexual.

      "Pena: Detenção de 1 (um) mês a 1 (um) ano e multa.

      "II - Assédio físico: empregar meios físicos mediante violência, grave ameaça, fraude ou coação psicológica, para tentar constranger mulher ou homem à prática de atos sexuais.

      "Pena: Reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa.

      "Art. 3º. São circunstâncias que agravam a pena até o dobro:

      "I - Nas relações de trabalho os atos de coação, constrangimento, com ou sem violência, de empregador, preposto ou chefe imediato que, se prevalecendo de cargo ou função, ameaçar empregado com rescisão contratual.

      "II - Nas relações profissionais de saúde que, se prevalecendo do exercício profissional, submeterem pacientes a constrangimento sexual.

      "III - Nas relações familiares tentar submeter cônjuge ou companheiro, bem como qualquer membro integrante da comunidade familiar, à prática de atos sexuais, mediante coação física ou psicológica, grave ameaça e intimidação.

      "Parágrafo único. Aplica-se subsidiariamente às hipóteses previstas nos itens II e III, respectivamente, a pena de suspensão ou cassação de registro profissional e a perda do pátrio poder.

      "Art. 4º. Nos crimes descritos nesta Lei a ação penal é pública.

      "Art. 5º. A autoridade que tiver ciência do assédio sexual por notícia identificável, diante de perigo iminente, fica autorizada a entrar imediatamente com as devidas cautelas no recinto doméstico.

      "Art. 6º. A autoridade policial poderá, em situação de emergência e perigo de mal maior, representar ao Poder Judiciário para que adote medidas cautelares de afastamento do autor do delito da habitação familiar, proibição de acesso ao domicílio, local de trabalho e estudo ou local freqüentado pela vítima.

      "Art. 7º. A autoridade policial que receber notícia de crime definido nesta Lei deverá encaminhar cópia do Boletim de Ocorrência para as autoridades municipais de Promoção Social e Saúde e na falta delas às respectivas autoridades estaduais.

"Parágrafo único. A omissão de autoridade policial, nos casos previstos nos arts. 5º, 6º e 7º, implicará em processo disciplinar.

      "Art. 8º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário".1

 

      2.2. A proposta anterior

 

      Já em 1991, a Senadora Benedita da Silva havia apresentado, em co-autoria com a Deputada Sandra Starling e o Deputado José Fortunali, um projeto de lei determinando que "a exigência ou tentativa de obtenção de vantagem sexual por parte do empregador, prepostos ou representantes, mediante a ameaça de rescisão contratual", acarretassem o agravamento das penalidades aplicadas aos responsáveis pelos atos discriminatórios contra a mulher.

      Na exposição de motivos ao Projeto de Lei nº 235, de 1995, se consignou que o disegno di legge incorpora a contribuição prestada pela ex-Deputada Maria Luiza Fontenelle, resultante da discussão sobre a urgência de uma legislação dispondo sobre o crime de assédio sexual.

 

      3. O SUBSTITUTIVO AO PROJETODE LEI Nº 235, DE 1995

 

      3.1. A nova redação

 

      O substitutivo apresentado pelo Senador José Bianco tem o seguinte texto:

      "Projeto de Lei do Senado n.º 235 (substitutivo)

      "Dispõe sobre o crime de assédio sexual

      "O Congresso Nacional Decreta:

      "Art. 1º. Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo das ações civis cabíveis, as penalidades aplicáveis ao crime de assédio sexual.

       "Art. 2º. Constitui assédio sexual, para os efeitos desta lei, constranger alguém, com sinais, palavras ou gestos, objetivando ou sugerindo a prática de ato libidinoso ou conjunção carnal, se a conduta não constitui crime mais grave.

      "Pena - Detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

      "Art. 3º. São circunstâncias que agravam a pena prevalecer-se o agente:

      "I - da menoridade da vítima;

      "II - da condição de profissional de saúde;

      "III - do cargo ou posto que ocupe na hierarquia funcional;

      "IV - de parentesco ou afinidade com a vítima;

      "V - de superioridade social ou econômica de que dependa a vítima.

      "Parágrafo único. A pena imposta não impede a aplicação de sanções administrativas, a suspensão ou a cassação de licença ou do registro profissional, ou a perda do pátrio poder, conforme o caso, ou de outras penas restritivas de direitos.

      "Art. 4º. Na aplicação da multa, a autoridade judiciária considerará a capacidade econômica do réu, podendo elevá-la até o triplo para que não se mostre inócua.

      "Art. 5º. O crime de que trata esta lei é de ação pública.

      "Art. 6º. A denunciação caluniosa sujeita seu autor às mesmas penas previstas para prática do crime.

      "Art. 7º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

      "Art. 8º. Revogam-se as disposições em contrário".2

 

      3.2. O interesse pela indenização

      Como já foi visto no item nº 1, o interesse pela indenização é revelado já no primeiro dispositivo. Essa circunstância vem confirmar a tendência revelada no Congresso Nacional com as várias tentativas legiferantes de criminalização do assédio, porém enfatizando a reparação civil do dano. Essa é uma das observações de José Pastore e Luiz Carlos Robortella, que fazem um levantamento dos projetos em tal direção.3

      O destaque à possibilidade jurídica da reparação de danos morais está em harmonia, também, com os EUA, onde o assédio sexual constitui uma das usinas das manipulações políticas e das demandas temerárias.

 

      3.3. A definição vaga e tentacular

 

       A definição proposta para esse neodelito é um modelo acabado de tipo penal aberto quando declara: "Constitui assédio sexual, para os efeitos desta lei, constranger alguém, com sinais, palavras ou gestos, objetivando ou sugerindo a prática de ato libidinoso ou conjunção carnal, se a conduta não constitui crime mais grave" (art. 2 º).

      O elemento subjetivo do injusto seria a vontade de objetivar ou de sugerir a prática de ato libidinoso.

      A imprecisão das hipóteses de comportamento torna muito fluida a incriminação frente ao caráter equívoco que poderá assumir o sinal, a palavra ou o gesto. Esse modelo de vítima frágil parece ter sido capturado de uma personagem de romance: "Foi, aí, ainda no limiar da adolescência, que começou a sofrer o assédio dos seres do outro sexo que a perseguiam com olhares e propostas".4

      Muitas das perguntas-convite para um programa de natureza sexual são respondidas negativa ou positivamente sem que o processo criminal seja a terceira opção para um diálogo desse tipo. Aliás, com o prestígio de ser um profundo leitor da alma humana em deliciosas comédias, Oscar Wilde observa: "Questions are never indiscreet. Answers sometimes are".5

 

      3.4. O problema dos tipos penais abertos

 

      Consideram-se tipos penais abertos aquelas normas incriminadoras que não contêm a indicação precisa da conduta proibida que somente é identificada em função dos elementos exteriores ao tipo. Falta em tais preceitos "una guía objetiva para completar el tipo, de modo que en la práctica resultaría imposible la diferenciación del comportamiento prohibido y del permitido com la sola ayuda del texto legal".6

 

      3.5. O princípio da taxatividade das normas incriminadoras

      Um dos corolários lógicos do princípio da anterioridade da lei penal é o princípio da taxatividade da norma incriminadora. (Nullum crimen, nulla poena sine lege scripta).

      Como acentua Francisco de Assis Toledo, para que a lei penal possa desempenhar função pedagógica e motivar o comportamento humano, deve ser facilmente acessível a todos, não só aos juristas. Exige-se, portanto, uma lei certa que diz respeito com a clareza dos tipos de ilícito, restringindo-se a elaboração dos tipos abertos que acarretam insegurança jurídica.7

 

      A doutrina esclarece que, enquanto o princípio da anterioridade da lei penal se vincula às fontes do direito penal, o princípio da taxatividade preside a formulação técnica da lei penal e indica o dever imposto ao legislador de proceder, quando redige a norma, de maneira precisa na determinação dos tipos legais, para se saber, taxativamente, o que é penalmente ilícito e o que é penalmente admitido. Tal exigência, como é curial, implica em outra: o da necessidade da prévia lei ser escrita.

      O princípio nullum crimen, nulla poena sine lege scripta veda a incriminação através do costume e proíbe a aplicação analógica de normas incriminadoras.

      Como é curial, o princípio da taxatividade das normas incriminadoras se opõe aos tipos penais abertos. A opinião dominante rechaça a teoria dos tipos abertos e reprova o abuso que o legislador comete ao se exceder na previsão de tais normas, sustentando que "el tipo del injusto hay de ser siempre cerrado, en el sentido de que hay de contener todas las características determinantes del injusto".8

 

      3.6. As circunstâncias agravantes

 

      As circunstâncias agravantes dessa novidade legiferante constituem outros desconchavos que comprometem a segurança jurídica e a boa técnica exigida para a redação das normas penais.

      O art. 3º do projeto declara que "são circunstâncias que agravam a pena prevalecer-se o agente: I - da menoridade da vítima; II - da condição de profissional da saúde; III - do cargo ou posto que ocupe na hierarquia funcional; IV - de parentesco ou afinidade com a vítima; V - de superioridade social ou econômica de que dependa a vítima. Parágrafo único. A pena imposta não impede a aplicação de sanções administrativas, a suspensão ou cassação de licença ou do registro profissional, ou a perda do pátrio poder, conforme o caso, ou de outras penas restritivas de direitos".

 

      I - Que se entende por menoridade da vítima? É a incapacidade absoluta ou relativa, previstas pelo Código Civil: menor de dezesseis anos (art. 5º, I)?; Ou menor de vinte e um anos (art. 6º, I)? Ou a indicada pela Constituição (art. 28) e pelo Código Penal (art. 27), quando aludem ao menor de dezoito anos? Ou quis o projeto se referir aos limites de idade previstos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13.7.90) quando considera criança a pessoa até doze anos de idade, incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade (art. 2º)?

     

      Qual dos critérios deve ser adotado para o reconhecimento dessa agravante?

     

      II - O profissional da saúde poderá ser o funcionário do Ministério ou da Secretaria (Estadual ou Municipal) da Saúde? Além do médico, esse tipo de autor poderá ser, também, o farmacêutico e o empregado do laboratório de análises clínicas?

     

      III - O cargo ou o posto na hierarquia funcional constituirá agravante se o autor do assédio for de plano ou graduação inferior ao da suposta vítima?

 

      IV - O parentesco com a vítima poderá sugerir a restauração do projeto de criminalização do incesto, que assim o fez no art. 259 do Código Penal de 1969 ("Ter conjunção carnal com descendente ou ascendente, com irmã ou irmão")?9

     

      E a afinidade se refere ao parentesco contraído pelo casamento ou à "coincidência de gostos ou de sentimentos", como uma das definições do Aurélio?

      V - A superioridade social ou econômica de que dependa a vítima poderá ser medida através de quais critérios?

      Que se entende por superioridade social? Existe, em nosso sistema positivo ou em nossos costumes sociais, a possibilidade de se definir alguém como superior socialmente a outrem sem esbarrar em algum tipo da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes dos preconceitos de raça ou de cor, ou afrontar o princípio constitucional de isonomia?

      E a superioridade econômica de que dependa a vítima, poderá ser caracterizada pela simples relação de emprego ou depende de outras circunstâncias que impliquem na sua redução à condição análoga a de escravo? E a se punir a conduta sob tal título (CP art. 149), restaria algum material de proibição para se incriminar o assédio sexual, que se converteria em infração menor, um mero apêndice da situação de escravatura?

 

      3.7. Um privilégio para a denunciação caluniosa

 

      O art. 6º do disegno di legge ora em análise dispõe que a denunciação caluniosa sujeita o seu autor às mesmas penas previstas para a prática do crime.

Constatado que a mulher (eventualmente o homem) deu causa a investigação policial ou processo criminal imputando a outrem o crime de assédio sexual, a pena que lhe é reservada é a detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

      O substitutivo revela que o seu redator desconhece o art. 339 do Código Penal e sua respectiva sanção10, ou pretendeu criar um odioso privilégio em favor da falsidade da denúncia do assédio sexual. Na primeira hipótese ter-se-ia o paradoxo de um legislador da Câmara Alta que desconhece o Código Penal, justamente na parte relacionada com a sua proposta de lei; na segunda, se confirmaria que a proposta de criminalização é fruto de caviloso preconceito contra os homens que são, na verdade, os destinatários dessa nova ameaça legiferante.

      Comentando esse aspecto do Substitutivo, o ilustre criminalista Ariosvaldo de Campos Pires considera intolerável a exceção aberta em benefício de quem inventa o assédio, acusando pessoa inocente relativamente a fato que pode repercutir gravemente na órbita familiar e social do acusado. E, com bom humor, alerta que nos Estados Unidos os executivos, receosos de serem acusados de tal prática, têm se precavido neste assunto através de atitudes neuróticas como a de não entrarem num elevador que esteja transportando uma mulher, sem a presença de outra pessoa.11

 

      4. A PREVISÃO DOCÓDIGO PENAL ESPANHOL

 

      O Código Penal espanhol, com a reforma introduzida pela Lei Orgânica nº 10, de 23.11.95, no Capítulo III, subordinado ao Título VIII (Delitos contra a libertad sexual), incrimina o acoso12 sexual, nos seguintes termos: "El que solicitare favores de naturaleza sexual para sí ou para un tercero prevaliéndose de una situación de superioridade laboral, docente o análoga, com el anuncio expreso ou tácito de causar a la víctima un mal relacionado com las legitimas expectativas que pueda tener en el ámbito de dicha relación, será castigado como autor de acoso sexual com la pena de arresto de doce a veintecuatro fines de semana o multa de seis a doce meses" (art. 184).

      Não existe precedente na legislação, sendo, portanto, o acoso sexual um moderníssimo tipo legal de ilícito penal no sistema daquele país.

      A inovação legiferante foi recebida com reservas por prestigiados comentadores do diploma. Advertem eles que a vaguidade da expressão " favor sexual" - que poderá ser de qualquer natureza -, é preocupante pois permite criminalizar fatos em prejuízo do princípio de intervenção mínima que deve orientar o ordenamento penal.13

 

      5. A PROPOSTA DA COMISSÃO DE REFORMA DA PARTE ESPECIAL DO CP

 

      Os quatro membros remanescentes da Comissão de Juristas, instituída para redigir um anteprojeto de Código Penal14, aceitaram as sugestões (e a interferência direta) do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher15 e redigiram um tipo de assédio sexual nos termos seguintes: "Assediar alguém, com violação do dever de cargo, ministério ou profissão, exigindo, direta ou indiretamente, prestação de favores sexuais como condição para criar ou conservar direito ou para atender a pretensão da vítima. Pena - detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa".16

 

      Verifica-se que a aludida proposta revela, entre outras, duas dificuldades para a caracterização desse (suposto) crime: a) o assédio somente terá relevo jurídico-penal quando constituir violação de um dever de conduta funcional (cargo, ministério ou profissão); b) a expressão "favores sexuais", contrabandeada do modelo espanhol, é imprecisa e configura um tipo aberto.

 

      6. O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA

 

      6.1. Natureza e função do princípio

Duas grandes tendências ideológicas disputam nos dias correntes as preferências dos estudiosos da teoria e da prática das ciências criminais. Ambas radicalizantes e inconciliáveis. A primeira é sintetizada pelo movimento de lei e de ordem que tem como expressão de maior propaganda o discurso político do crime, caracterizado pela denúncia da falência das instâncias formais de prevenção e repressão e pelo usufruto do poder político e de comunicação de massa. A segunda é representada pelo movimento abolicionista do sistema penal.

      Mas existe uma via intermediária entre tais posições extremadas: é o movimento do direito penal mínimo. Ele propõe a utilização restrita do sistema penal na luta contra o delito.

      Segundo clássica lição da doutrina, apoiada pela jurisprudência, o Estado somente deve recorrer à pena criminal quando não houver, no ordenamento positivo, meios adequados para prevenir e reprimir o ilícito. São muito apropriadas e atuais as palavras do eminente e pranteado Ministro Nélson Hungria: "Somente quando a sanção civil se apresenta ineficaz para a reintegração da ordem jurídica é que surge a necessidade da enérgica sanção penal. O legislador não obedece a outra orientação. As sanções penais são o último recurso para conjurar a antinomia entre a vontade individual e a vontade normativa do Estado. Se um fato ilícito, hostil a um interesse individual ou coletivo, pode ser convenientemente reprimido com as sanções civis, não há motivo para a reação penal".17

     

      No mesmo sentido e mais recentemente, o jurista português Souza e Brito salienta que, traduzindo-se a pena em restrições ou sacrifícios importantes dos direitos fundamentais do acusado, cujo respeito é uma das finalidades essenciais do Estado, é indispensável que tal sacrifício seja necessário à paz e conservação sociais, isto é, à própria defesa dos direitos e das liberdades e garantias em geral, que constituem a base do Estado. E arremata: "É este o princípio da necessidade ou da máxima restrição das penas e das medidas de segurança (art. 18º, nºs 2 e 3), que está ligado ao princípio da legalidade (art. 29º), e ao princípio da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal, como garantia da máxima objectividade e do mínimo abuso."18

      O princípio de intervenção penal mínima pode ser definido como "regra de determinação qualitativa abstrata para o processo de tipificação das condutas".19

 

      6.2. Consagração constitucional

 

      O princípio da intervenção penal mínima foi recepcionado pela CF através da cláusula geral prevista pelo § 2º do art. 5º: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". O princípio em análise tem a sua raiz no art. 8º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Paris, 1789), ao proclamar que a lei deve estabelecer "penas estrita e evidentemente necessárias".

      A compatibilização entre a letra e o espírito das leis fundamentais internas e as declarações internacionais constitui exigência de uma ordem jurídica universal. A Constituição de Portugal dispõe que os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem" (art. 16, 2). A Carta Política espanhola também prescreve que as normas relativas aos direitos fundamentais e às liberdades reconhecidas constitucionalmente serão interpretadas em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e os tratados e acordos internacionais sobre as mesmas matérias, ratificados pela Espanha (art. 10,2).

 

      6.3. A "criação excessiva e descriteriosa de delitos"

 

      Ao analisar, em sua magnífica monografia, o princípio da insignificância em correlação com o princípio da intervenção mínima, Maurício Antonio Ribeiro Lopes alude ao fenômeno da "criação excessiva e descriteriosa da delitos", que tem provocado o "esvaziamento da força intimidadora da pena".20 E refere que o problema vem sendo denunciado por penalistas de prestígio desde o começo do século passado, como Mittermaier, ao concluir, em trabalho de 1819, que "um dos erros fundamentais da legislação penal de seu tempo (era) a excessiva extensão dessa legislação"; Puccioni, comentando o Código Penal da Toscana, de 1855, falava de "delitos de mínima importância política"; Carrara, em monografia de julho de 1883, advertia contra a "nomomania ou nomorréia penal"; Liszt, em 1896, enfatizou que a legislação de seu tempo fazia uso excessivo da "arma da pena"; Franck, em artigo de 1898, usou, pela primeira vez, a expressão "hipertrofia penal"; em nosso século, Carnelutti fala em "ïnflação legislativa", designação também utilizada por Martinez Peres, sustentando que "seus efeitos são análogos ao da inflação monetária, pois 'desvalorizam as leis, e no concernente às leis penais aviltam a sua eficácia preventiva geral'".21

 

      6.4. A criminalização do assédio ofende o princípio de intervenção mínima

      O princípio da intervenção mínima é seriamente comprometido pela criminalização do assédio sexual. A conclusão se extrai não somente das observações em torno do caráter fluido da construção típica dessa figura, como também da circunstância de estar o sistema legal já abastecido de leis para combater o fato no âmbito de um direito disciplinar que regula as relações jurídicas onde haja hierarquia de umas pessoas sobre as outras, quando a importunação não ocorra em lugar público ou acessível ao público.

 

      7. A DECLARAÇÃODE GUERRA CONTRA O CRIME

 

      Figueiredo Dias e Costa Andrade salientam que, para o poder, o crime constitui um dos tópicos mais gratificantes. E, recorrendo a outros autores, lembram que "os políticos confiam exageradamente na lei criminal e gostam de invocar as sanções criminais a propósito dos mais variados problemas sociais, que mais não seja para declinar o seu fervor moral e as suas virtudes políticas". E arrematam: "daí a freqüência do recurso à guerra ao crime como expediente de capitalização política sobre o medo e a insegurança e, por isso, de legitimação das formas mais agressivas de poder".22

      Tais conclusões levam, necessariamente, a refletir acerca do chamado discurso político do crime que se caracteriza pela utilização do flagelo da criminalidade nos grandes centros urbanos para usufruir dividendos das campanhas de recrudescimento das penas infamantes e cruéis. A essa bandeira se juntam, não raro, comentários depreciativos aos direitos humanos das pessoas acusadas de infração penal.

 

      8. A CRIMINALIZAÇÃO RADICAL

 

      Novamente deve-se recorrer a Figueiredo Dias e Costa Andrade, quando observam que, dentre as transformações culturais com reflexos em sede de neocriminalização, avultam as que se prendem com os movimentos feministas e que impuseram a tendência generalizada no sentido do alargamento do crime de violação, de forma a abranger desig-nadamente a violação no interior do casamento. A década de 70 assistiu, com efeito, à proliferação duma extensa bibliografia versando a violência sobre as mulheres e a violação em particular. "Trata-se duma literatura de entorno claramente militante - paradigmática a este propósito a obra de Susan Brownmiller, Against Our Will: Men, Women and Rape, 1975 -, que denuncia a não punibilidade da "violação no interior do casamento" como resíduo de um sistema penal de cunho patriarcal, ou como extensão do regime jurídico da propriedade estabelecido em benefício dos homens."

      Prosseguem os mencionados autores, lembrando que as alterações registradas na figura da violação não deixam, aliás, de exprimir as profundas transformações operadas a nível das concepções em matéria de práticas sexuais e que levaram - como já ficou assinalado - a considerar a liberdade e autenticidade da expressão sexual como único valor digno e carecido de tutela jurídico-criminal. "Com reflexos evidentes a nível da própria linguagem, onde expressões como crimes sexuais ou crimes contra a autodeterminação sexual substituíram as fórmulas tradicionais de crimes contra os bons costumes, contra a honestidade ou equivalentes. Isto explica que o domínio das práticas sexuais, um dos mais atingidos pelo vento da descriminalização, seja simultaneamente um dos mais sensíveis às exigências da neocriminalização."23

 

      Em nosso país, há uma tendência extremamente nociva do legislador em criar uma espécie de "cinturão protetor jurídico penal", segundo a oportuna imagem utilizada por Roxin24 e Nilo Batista25, colhida por Maurício Antonio Ribeiro Lopes em sua monografia.26

 

      9. O ASSÉDIO SEXUAL NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

 

      As mais variadas formas de aproximação sensual ou de abordagem sexual nas relações de convivência funcional (no trabalho, na escola, etc.), podem ser controladas através de um sistema positivo não criminalizador. Em tal sentido, há dois tipos de diplomas: a) os que embora não tipifiquem o assédio sexual, permitem o seu reconhecimento através de cláusulas genéricas que se referem à violação do dever de cargo, ministério ou profissão, como a Consolidação das Leis do Trabalho e os Estatutos federal e estaduais relativos aos servidores públicos; b) os que já oferecem os contornos normativos do assédio sexual e estabelecem procedimentos para a denúncia e a sanção, como ocorre com leis estaduais.

      O art. 483, alínea e, da Consolidação das Leis do Trabalho27estabelece que o empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando "praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou pessoas de sua família, ato lesivo da honra e boa fama".

      O empregado ofendido pelo assédio, como contraprestação para a obtenção de vantagem funcional, não necessita promover a rescisão do contrato, pois mesmo em sua vigência a Justiça Trabalhista poderá conhecer de um provimento cautelar que garanta ao trabalhador a sua liberdade e o exercício pleno de outros direitos da personalidade como a honra e a boa fama.

      Tramitam atualmente, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, dois projetos dispondo sobre o assédio sexual nas relações do trabalho. O primeiro deles, da Deputada Marta Suplicy, acresce a letra m, ao art. 482 da Consolidação das Leis do Trabalho28, com a seguinte hipótese: "prática de assédio sexual a trabalhador subordinado ou trabalhadora subordinada. Parágrafo único. Entende-se por assédio sexual toda conduta de uso indevido de poder e posição hierárquica nas relações de trabalho e docência, para a obtenção de favores de natureza sexual. "

      O mesmo disegno di legge amplia as situações do art. 483 da CLT, permitindo a rescisão contratual se o empregado: "h) for vítima de assédio sexual por parte do empregador ou empregadora, de seus prepostos ou de superior hierárquico". O art. 468 da CLT recebe dois parágrafos, assim redigidos: "§ 2°. Na hipótese de assédio sexual praticado por superior hierárquico, cabe ao empregado ou empregada o direito de mudar de função ou de setor de trabalho. § 3°. Compete ao Ministério do Trabalho definir normas para que as empresas estabeleçam programas de prevenção ao assédio sexual, bem como procedimentos internos claros e objetivos para o encaminhamento e averiguação de denúncias".29

 

      O Projeto n° 157, de 1997, que tramita no Senado, prevê as hipóteses de prática de assédio sexual no ambiente de trabalho e a falsa denúncia de tal prática, como suficientes para a rescisão contratual, por justa causa, pelo empregador, conforme o art. 482, letras m e n da CLT. E também acresce uma letra (h) ao art. 483 da Consolidação, para permitir ao empregado a iniciativa de rescindir o pacto e pleitear a indenização se "for constatado o assédio sexual praticado pelo empregador ou seus propostos ou, ainda, pelos superiores hierárquicos do empregado".30

 

      A mesma tutela extrapenal ocorre com os diplomas federais e estaduais que tratam das infrações disciplinares no âmbito da administração pública direta, indireta ou fundacional. No Rio de Janeiro, a Lei nº 1.886, de 8.11.91, penaliza os estabelecimentos comerciais e industriais, as entidades, as associações e as sociedades civis ou de prestação de serviços nos quais seus proprietários ou prepostos façam exigências de vantagem sexual da mulher pelo patrão ou preposto sob ameaça de rescisão contratual. No Estado de São Paulo, o Decreto nº 324.250, de 27.11.91, criou o Comitê de Acompanhamento da Aplicação da Legislação de Igualdade, como órgão consultivo da Convenção Paulista contra a discriminação sexual da mulher. Em Minas Gerais, a Lei nº 11.039, de 14.1.93, sanciona a empresa em cujo estabelecimento seja praticado ato vexatório, discriminatório ou atentatório contra a mulher. O art. 4º desse diploma declara como atentado contra a mulher empregada a prática de ações que afetem a sua liberdade sexual, dignidade e pudor.

      A não criminalização do assédio sexual como violação das regras sociais e éticas vem sendo ponderada por prestigiados especialistas no estudo das relações jurídicas entre o homem e a mulher através das mais diversas formas de convivência funcional. A propósito, Pastore e Robortella: "Reconhecemos que a eficácia da repressão penal é questionável, a não ser quando o assédio sexual transborda para a violência física, mas aí já teria se transmudado em outra figura. A reparação civil é a que melhor atende a natureza do dano causado pelo assédio sexual".31

 

      Também contrário ao propósito dos movimentos feministas radicais é o entendimento de Gabriel Lacerda, mestre e advogado no Rio de Janeiro: "Parece-me que tentar caracterizar de uma forma abstrata, principalmente em lei penal, atos digno de censura - mas de prova geralmente impossível - iria abrir precedente perigoso. Uma lei sobre assédio poderia significar uma porta aberta para a situação que hoje parece ocorrer em alguns países, em que uma postura legislati- va e jurisprudencial exagerada acabou por produzir uma sociedade próxima à neurose, abolindo a espontaneidade da convivência no ambiente de trabalho. Já temos instru- mentos suficientes para coibir o assédio. Não precisamos de uma nova lei".32

 

       10. A IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR

 

       Se o assédio for manifestado sob a forma de importunação ofensiva ao pudor, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor, estará caracterizada a contravenção prevista pelo art. 61 da respectiva lei. Há precedentes no sentido de que palavras e gestos libidinosos dirigidos a uma funcionária por superior hierárquico caracterizam essa modalidade contravencional (TACRIM-SP, em JUTACRIM 96/251). Também o encarregado de turma que provoca trabalhadoras rurais com propostas indecorosas, comete tal ilícito (TACRIM-SP, em RJD 14/87). Idem quanto ao beijo "roubado", assim como o toque superficial e fugaz sobre as vestes, nos seios da mulher (TJSC, em RT 727-577).

 

      11. OS INCONVENIENTES DA CRIMINALIZAÇÃO DO ASSÉDIO

 

      Todo e qualquer projeto de lei penal deve atender às exigências de política criminal sem as quais a intervenção estatal poderá não produzir os resultados esperados quanto à prevenção e à repressão do ilícito.

      Abstraídas as hipóteses de assédio sexual mediante o emprego de violência ou grave ameaça e que poderá caracterizar uma etapa do crime de estupro ou de atentado violento ao pudor, a criminalização da conduta, tanto na forma proposta pelo substitutivo ao Projeto nº 235/95, como pela Comissão de Juristas do Ministério da Justiça, mostra-se inconveniente sob o cariz da política criminal.

      A vítima - normalmente a mulher - será exposta ao constrangimento moral sempre que comparecer a uma Delegacia de Polícia para noticiar o fato e pedir a abertura do procedimento investigatório. Considerando-se a quantidade da pena de detenção cominada [6 (seis) meses a 2 (dois) anos], em ambas as propostas, a apuração do fato será através do inquérito policial, posto não se tratar de infração de menor potencial ofensivo (Lei nº 9.099/95, art. 61). Tal circunstância agravará sensivelmente e com freqüência a imagem e o bom conceito da mulher molestada pelo assédio. A imprensa, o rádio e a televisão certamente darão a esses episódios uma publicidade que jamais interessaria à mulher de recato. A contradição da prova oral (declarações versus interrogatório) e a controvérsia das circunstâncias essenciais ou acidentais do caso concreto poderão conduzir, não raramente, à absolvição do imputado. No final das contas, se o assédio constituiu violação do dever de respeito nas relações de trabalho, a vítima chegará à conclusão de que melhor seria propor uma reclamação ou um provimento cautelar perante a Justiça do Trabalho ou formular uma representação por falta disciplinar se a constrangida for funcionária pública.

      A redação original do Projeto nº 235/95 propunha: "A autoridade policial que receber notícia de crime definido nesta lei deverá encaminhar cópia do Boletim de Ocorrência para as autoridades municipais de Promoção Social e Saúde e na falta delas às respectivas autoridades estaduais" (art. 7º). Nada mais é preciso dizer para se constatar o dano moral a que ficará exposta a mulher (excepcionalmente o homem) se promover a responsabilidade criminal do infrator.

      A mulher deve ser tratada com a dignidade inerente à sua condição humana e com o respeito próprio ao seu status social, que se projeta mais fortemente à medida em que se atenuam as formas de preconceito. Esse reconhecimento, porém, não significa o aplauso a um discurso feminista caracterizado pela radicalização de conceitos que vejam o homem, genética e socialmente, como um agressor da mulher. Antes de mais nada a vida de relação entre os sexos deve ser usufruída sem estereótipos que estimulem as definições e as propostas totalitárias, como essa que nos vem do humor fustigante de Nelson Rodrigues quando sentenciou: "Betty Friedam devia ser treinada para puxar carroça".

 

      12. A CRIMINALIZAÇÃODO ASSÉDIO SEXUAL:

      POLÍTICA CRIMINALOU POLÍTICA VIRTUAL?

      Um poderoso grupo de parlamentares sabe que existem já suficientes regras para combater esse desvio de função cumulado com o constrangimento à liberdade sexual. Mas o anúncio de um projeto de lei criminalizador faz com que a popularidade do político militante seja mais destacada. Trata-se de um fenômeno cultural em que o povo concebe a cadeia como a panacéia de todas as transgressões sociais, independentemente de sua natureza e extensão.

      Uma das estratégias comuns aos governos brasileiros para combater a vaga produzida pelos sentimentos de insegurança e de injustiça consiste na remessa de um projeto de lei criminal ao Congresso Nacional. A mídia e os trabalhadores sociais se encarregam de puxar o cordão da opinião pública que vive o estado catártico de compensar os males pessoais com a esperança de reverter os quadros de maldição do crime e da violência.

      Para os dias correntes - muito mais que antes -, vale a conclusão lúcida e serena do poeta e romancista francês Anatole France (né Francisco Thibaut):

"Eu já vi a sociedade modificar a lei; nunca, porém, vi a lei reformar a sociedade".

 

 

 

1 Publicado no Diário do Congresso Nacional, seção II, de 17.8.95.

2 O Substitutivo foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, em reunião de 1°.10.97. Um recurso regimental, interposto pelo Senador Bernardo Cabral e outros, foi acolhido no sentido de se abrir prazo para emendas (Reg. Int. art. 235, II, c). Foi apresentada uma emenda (n° 2) que está sendo examinada pela CCJ a partir de 15.10.97.

3 Assédio sexual no trabalho - O que fazer?, São Paulo, Makron Books, 1998, pp. 33 e segs.

4 Armando Fontes (1899-1967), Rua do Siriri, Rio de Janeiro, José Olympio, 1937, p. 48.

5 An Ideal Husband, act one.

6 Jescheck (Hans-Heinrich) - Tratado de Derecho Penal - Parte General, trad. S. Mir Puig e F. Muñoz Conde, Barcelona, Casa Editorial S.A , vol. I, p. 336.

7 Princípios Básicos de Direito Penal, 4ª ed., São Paulo, Editora Saraiva, 1991, p. 29.

8 Rodriguez Devesa (José Maria), Derecho Penal Español- Parte General, Madrid, ed. Dykinson, 1992, pp. 422-423.

9 Com a reforma introduzida pela Lei nº 6.016, de 31.12.73, o tipo do incesto manteve a redação anterior, com o acréscimo: "... se o fato não constitui crime definido no Título anterior" (art. 258).

10 Reclusão - de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.

11 "Assédio sexual", na revista jurídica Del Rey, Belo Horizonte, nº 1, de 1997, p. 27 e em O Estado do Paraná, Curitiba, ed. de 8.2.98, seção Direito e Justiça, p. 1.

12 Acosar: "Perseguir, sin darle tregua ni riposo, a un animal o a una persona. 2. Hacer correr al caballo. 3. fig. Perseguir, fatigar, importunar a alguno com molestias o trabajos": Real Academia Española, Diccionario de la lengua española, Madrid, 1970, Editorial Espasa-Calpe S.A ., 1979, p. 20.

13 José Moyna Ménguez e outros, Código Penal, Madrid, Editorial Colex, 1996, p. 360.

14 O Ministro da Justiça, Íris Rezende, pela Portaria nº 1.265, de 16.12.97, nomeou Luiz Vicente Cernicchiaro (coordenador), René Ariel Dotti, Miguel Reale Júnior, Juarez Tavares, Ney Moura Teles, Ela Wiecko Volkmer de Castilho e Licínio Leal Barbosa para compor a Comissão. Dotti, Reale Júnior e Tavares não concordaram com o ritmo açodado dos trabalhos e, vendo recusadas as propostas de ampliação do prazo de entrega de um esboço e de sua publicação para receber sugestões e críticas da comunidade científica e da sociedade em geral, desligaram-se da comissão em 1º de março.

15 Sobre esse tipo de pressão da mulher, ver as observações de Figueiredo Dias e Costa Andrade, no item nº 8.

16 Cf. notícia do jornal O Estado de São Paulo, de 6.3.98.

17 Comentários ao Código Penal, Rio de Janeiro, Ed. Revista Forense, 1958, vol. VII, p. 178.

18 "A lei penal na Constituição", em Estudos sobre a Constituição, Lisboa, Ed. Livraria Petrony, 1978, vol. 2º, p. 200).

19 Cf. Maurício Antonio Ribeiro Lopes, O princípio da insignificância no direito penal: análise à luz da Lei nº 9.099/95 - Juizados Especiais Criminais e da jurisprudência atual, São Paulo, RT, 1997, p. 78.

20 O princípio da insignificância no direito penal, cit., p. 77.

21 Cf. Maurício Antonio Ribeiro Lopes, ob. cit., pp. 76-77.

22 Criminologia - O homem delinqüente e a sociedade contemporânea, Coimbra, Coimbra Editora, Ltda., 1984, p. 414.

23 Ob. cit. pp. 438 e segs.

24 Problemas basicos de derecho penal, Madrid, Reus, 1976, p. 22.

25 Introdução crítica ao direito penal brasileiro, Rio de Janeiro, Revan, 1990, p. 87.

26 Princípio da insignificância no direito penal, cit., p. 78.

27 CLT, art. 483. "O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando:"

28 CLT, art. 482. "Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho, pelo empregador:"

29 Proj. de Lei n° 2.493, de 1996, apresentado em plenário no dia 23.10.96 e atualmente com vista a uma das comissões (CTASP). (Informação de início de março).

30 Publicado no Diário do Senado Federal de 14.8.97. Em 14.8.97, o projeto foi recebido no Serviço de Apoio de Comissões Permanentes. (Informação de março de 1998).

31 Ob. cit., p. 36.

32 "Assédio sexual: precisamos de uma lei?", artigo publicado na Revista Literária de Direito, São Paulo, Editora Literária de Direito Ltda., nº 12, de 1996, p. 34 (grifos meus).