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Socialização do risco médico
*
Introdução
A Medicina atual nada mais é do
que uma sucessão de riscos.
O grande arsenal tecnológico de
que a Ciência Médica atualmente dispõe trouxe, para o homem, inestimáveis
proveitos. Por outro lado, essa nova ordem não pode evitar que surgissem mais
acidentes no exercício da nossa profissão.
O homem vive a era do risco.
Desde o instante em que a vida
social passou a ser abalada pelos modernos meios e recursos tecnológicos, um
elenco muito variado de riscos foi aparecendo e, por conseguin-te, aumentando
assustadoramente o numero de danos sem reparação, em face da dificul-dade de
estabelecer a culpa do autor. E a vítima seria todo aquele que se beneficia com
tal atividade, mesmo que ela seja sempre proposta em seu favor. O risco é,
pois, o preço e a razão dessa atividade.
Ainda que a relação
médico-paciente seja um contrato de diligência ou de meios, e não de resultado,
o equilíbrio só seria restituído se o paciente vitima de um acidente medico
pudesse ser ressarcido no seu dano.
O acidente medico é, não raro,
inevitável e inesperado, e suas causas são, sob o ponto de vista subjetivo,
dificilmente determinadas. Por isso, a tendência contemporânea, no que se
refere ao aspecto civil do dano médico, e substituir a noção de
responsabilidade pela noção de risco. Não se pode mais aceitar co-modamente a
força cega do destino - o act of God. Fazer do dano um simples fruto do acaso,
sem nenhum responsável, é uma forma cômoda e simplista de resolver um problema
sério, mas é, sem dúvida, uma grande injustiça.
Não se pode negar o avanço da
doutrina do risco nas legislações mais modernas. O grande exemplo, entre n6s, é
a Lei de Aci-dentes do Trabalho. Antes, ficava o empre-gado quase totalmente desamparado
em vir-tude da impossibilidade de provar a culpa do empregador. Essa modalidade
de injustiça chamou a atenção dos juristas, até que se conseguiu nova
interpretação da culpa quan-do, mesmo permanecendo em seus fundamen-tos,
separou-a da responsabilidade. Foi simplesmente a substituição da culpa pelo
risco na determinação da responsabilidade. É aqui nessa doutrina que o homem
sim-ples, o simples homem da rua, o fraco, o des-protegido, o carente de
recursos e de amparo, o marginalizado dos nossos tempos e os que não tem acesso
fácil à Justiça, encontrariam mais bem acolhida e maior tutela.
Sendo assim, é muito natural que
as mo-dernas legislações fujam do subjetivismo, que necessita de arbítrio, para
certos deveres pre-determinados. Não existe atualmente nenhu-ma atividade
humana de alto risco que não esteja. com a sua responsabilidade civil
se-gurada. Acreditamos que, no futuro, toda questão de responsabilidade será,
simplesmen-te um caso de reparação, embora ela não re-presente uma indenização
ideal do dano sofrido. É preciso salvar o dano, pois o que se observa no
momento é que as leis tanto tendem em favor da vítima como em favor do autor,
pois nenhum dos dois está interessado no resultado danoso.
O médico compromete-se a utilizar
todos os meios e recursos ao seu alcance, com a maior prudência e a melhor
diligência, no in-tuito de atingir um bom resultado. Todavia, por meio
aleatório e incerto.
A Medicina antiga, inibida,
solitária e quase espiritual, incapaz de grandes resultados, era menos danosa
porque gerava pouco risco. Em nossos dias há uma possibilidade tão grande de
risco e dano que, em certas ocasiões, o médico passou a omitir-se, chamando-se
a isso medicina defensiva. Não é novidade dizer-se que até o tímido clínico já
faz introduzir no organismo substâncias de inesperados efeitos colaterais, e
nos vasos ca-téteres que vão ate o coração, afora as técnicas endoscópicas mais
perigosas e ousadas.
A falibilidade do médico e da
Medicina é inquestionável. E ela aceita pela doutrina, pela lei e nela
jurisprudência, principalmente sob o angulo penal e moral. No entanto, quan-to
à responsabilidade civil, esta chega a ser quase ilimitada. Os tribunais
passaram a en-tender que a reparação civil do dano e um feito indiscutível. Já
afirmaram que, assim como e injusto o médico responder pela fali-bilidade da
ciência ou por sua própria limitação, mais injusto seria deixar o paciente a
sua própria sorte quando, buscando um bem, encontrou um mal resultado. Ou que
se deixe abater sobre a vítima todo peso do seu infortúnio.
Outros admitem que, da mesma
maneira como a Sociedade é beneficiada pelo progresso das ciências medicas,
essa mesma. comunidade deve aceitar as falhas oriundas deste tal pro-gresso.
O certo é que, em todo contrato
que pressupõe um risco, existe de inicio uma obrigação de garantia estabelecida
pelos princípios da responsabilidade civil.
Responsabilidade civil.
"O fundamento da
responsabilidade civil está na alteração do equilíbrio social produzida por um
prejuízo causado a um dos seus membros.
O dano so-frido por um indivíduo preocupa todo o grupo porque, egoisticamente,
todos se sentem. ameaçados pela possibilidade de, mais cedo ou mais tarde,
sofrerem os mesmos danos, meno-res, iguais e até maiores" (HERMES
RODRI-GUES DE ALCANTARA, in Responsabilidade Médica, José Konfino Editor, Rio
de Janeiro, 1971).
A responsabilidade civil gira em
torno de duas teorias: a subjetiva e a objetiva.
A teoria subjetiva tem na culpa
seu fun-damento basilar. No âmbito das questões ci-vis, a expressão culpa tem
um sentido muito amplo. Vai desde a culpa stricto sensu ao dolo. É o elemento
do ato ilícito, em torno do qual a ação ou a omissão leva à existência de um
dano. Não é sinônimo, portanto, de dano. E claro que só existirá culpa se dela
resulta um prejuízo. Todavia, esta teoria não responsabiliza aquela pessoa que
se portou de maneira irrepreensível, distante de qualquer censura, mesmo que
tenha causado um dano. Aqui, argüi-se a responsabilidade do autor quando existe
culpa, dano e nexo causal. Seu fundamento e todo moral: primeiro, porque leva
em conta a liberdade individual, e segundo porque seria injusto atribuir a
todos, indistintamente, conseqüências idênticas a um mesmo fato causador. Não
faz injustiça com o autor, mas a deixa fazer contra quem já sofre a
contingência de ser vitima.
No entanto, atualmente, essa
teoria começa a ser contestada por várias razões: a imprecisão do conceito de
culpa pelo cunho te6rico e caraterização imprecisa, o surgi-mento da
responsabilidade sem culpa, o sacrifício do coletivo em função de um egoísmo
individual sem imputabilidade nos tempos atuais e a socialização do direito
moderno.
Assim, o conceito de culpa vai se
mate-rializando, surgindo a teoria objetiva da res-ponsabilidade que tem no
risco sua viga mes-tra. O responsável pelo dano indenizará, sim-plesmente por
existir um prejuízo, não se cogitando da existência de sua culpabilidade, bastando
a causalidade entre o ato e o dano, para obrigar a reparar. O nexo causal
con-siste no fato de o dano ter surgido de um ato ou de uma omissão. No momento
em que a noção de culpa passa a ser diluída, a idéia de risco assume um plano
superior.
Os que contrariam esse conceito
admitem ser a teoria objetiva materializadora, vinga-tiva, baseada na justiça
do olho por olho e do dente por dente do talião, preocupada no aspecto
patrimonial em prejuízo das pessoas. Entretanto, tais argumentos não se justifi-cam,
pois não se cogita represália nem vin-dita, senão da solidariedade e da
eqüidade ,-fundamentos basilares da nova conceituação da responsabilidade
civil. Longe de significar a volta ao primitivismo, reflete a sensibilidade do
doutrinador ante os fenômenos sociais, conseqüentes e inevitáveis nesses tempos
de hoje.
Na verdade, a teoria do risco
despreza o subjetivismo jurídico e os pontos de vista filosóficos, para atender
ao principio da neces-sidade que as sociedades contemporâneas estão a exigir,
como uma política de igualdade diante dos sacrifícios impostos na interesse
publico.
A primeira vista, responder
alguém por danos que tenha causado sem culpa, parece uma grave injustiça.
Também não seria me-nor injustiça deixar a vitima sujeita a sua própria sorte,
arcando sozinha com seus prejuízos. A solidariedade é o maior sentimento de
justiça. Reparar todo e qualquer dano seria o ideal da própria solidariedade
humana.
MORIN, citado por ALBINO LIMA,
assegura: "Se a noção de responsabilidade mate-rializou-se no sentido de
não procurar o ele-mento moral subjetivo, não desprezou, entre-tanto, os
princípios de uma elevada. moral social, dentro de um sistema solidarista que
não enxerga indivíduos justapostos e isolados, mas um organismo de humanidade
no qual todos os membros são solidários" (in Culpa e Risco, Ed. RT, São
Paulo, 1963 ) . Esse é o principio da responsabilidade sem culpa.
Indenizar o dano produzido sem
culpa é mais uma garantia que propriamente uma responsabilidade. E não se pense
que os repa-rados pelo dano tirem vantagem disso. Os da-nos são sempre maiores
que a reparação.
A responsabilidade civil do
medico sem-pre provocou varias controvérsias, não apenas pela sua inclusão ora
no campo contratual, ora no campo extracontratual; mas, princi-palmente, pela
maneira mais circunstancial em que a profissão é exercida.. A tendência é
colocá-la na forma contratual, até mesmo no atendimento gratuito.
É claro que o médico, ao exercer
suas ati-vidades junto ao paciente, sua intenção é be-neficiá-lo. Mesmo assim o
dano pode surgir. Isso o obriga, pela
teoria objetiva da responsabilidade, a reparar o prejuízo, pois uma von-tade
honesta e a mais cuidadosa das atenções não eximem o direito de outrem. O certo
é que os tribunais até há algum tempo somente caracterizavam a responsabilidade
médica diante de um erro grosseiro ou de uma forma indiscutível de negligência.
Hoje a tendência é outra: apenas a inexistência da causalida-de, da força
maior, dos atos de terceiros ou da culpa. do próprio paciente isentariam o
mé-dico da responsabilidade. Infelizmente, a inclinação desses tribunais é
retirar dos médicos uma serie de privilégios seculares, mesmo sabendo-se que as
regras abstratas da justiça nem sempre são de fácil aplicação nos com-plexos e
intricados momentos do exercício da Medicina. O médico passa a ser, a cada dia
que passa, uma peça a mais, igual às outras, do organismo social.
Portanto, assim como não e fácil
estabelecer a responsabilidade penal do medico, sua responsabilidade civil
começa a sofrer pro-fundas modificações. Seus aspectos se voltam exclusivamente
para o caráter político-econômico, tendo como princípio mais aceito o da
repartição dos danos, caracterizado por uma exigência econômica em decorrência
da qual qualquer dano deve ser repartido entre os envolvidos. O que se pretende
na respon-sabilidade civil - quase ilimitada - e tão-somente assegurar o
equilíbrio social, quan-do um prejuízo produzido poderia causar dano a um dos
membros do grupo.
CLOVIS BEVILAQUA afirmava:
"O Di-reito Penal vê, por trás do crime, o criminoso e o considera um ente
anti-social, ao passo que o Direito Civil vê, por trás do ato ilícito, não
simplesmente o agente, mas principal-mente a vítima, e vem em socorro dela, a
fim de, tanto quanto lhe for permitido, restaurar seu direito violado,
constituindo a euritmia social refletida no equilíbrio dos patrimônios e das
relações pessoais, que se formam no círculo do direito privado" (in.
Teoria Geral do Direito Civil, 2ª Edição, Ed. Saraiva, Rio de Janeiro, 1929).
O direito moderno procura fugir
do subjetivismo dos velhos conceitos filosóficos, pro-curando aproximar-se do
fato por uma aspiração do ideal de igualdade. Chega de desi-gualdades
políticas, étnicas, econômicas, so-ciais e até mesmo geográficas. É claro que
essa solidariedade social da repartição dos danos não deve ser rigorosamente
tida como uma igualdade matemática.
Pelo que se revela., a visão dos
tribunais está se voltando para a reparação do dano, pouco importando que o
resu1tado seja de-monstrado por uma falha instrumental ou da ciência, quando a
culpa do médico não chegou a ser comprovada. Esta responsabilidade do médico
está presa pelo aspecto contratual que faz da relação médico-paciente um
con-trato de locação de serviços. Os julgadores não estão muito preocupados em
examinar profundamente as razoes subjetivas da culpa, senão apenas em reparar o
dano. Houve até quem sentenciasse: Não ha nada de imoral mesmo na ausência da
culpa, em obrigar a reparação da coletividade pública causadora do dano por
atos de seus agentes.
Só nos acode uma solução para o
grave problema das demandas civis contra médicos, oriundas do exercício da
profissão: a criação do seguro de responsabilidade civil medico.
Seguro.
ARMANDO DE OLIVEIRA AS-SIS afirma
que "Seguro e o método pelo qual se busca, por meio da ajuda financeira
mú-tua de um grande número de existências ameaçadas pelos mesmos perigos, a
garantia de uma compensação para as necessidades fortuitas e avaliáveis
decorrentes de um even-to danoso" (in "Compendio de Seguro
Social", Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1983).
No exato momento em que o homem
re-conheceu que vivia permanentemente sujeito a resultados adversos, os quais,
em ultima analise, traziam graves reflexos sobre sua sobrevivência, passou a
preocupar-se com sua segurança e seu futuro.
Ele viu que essas situações,
impossíveis de evitar e longe de seu alcance, não atingiam a todos
simultaneamente, nem todos estariam sujeitos num só momento. Assim, o homem
procurou uma forma de solução capaz de, se não evitar o dano, pelo menos
defender-se contra os efeitos adversos de tais acontecimentos. A mutualização
dos riscos através dos seguros é a melhor ma-neira de proteção contra todo
infortúnio imerecido.
É claro que individualmente,
mesmo ten-do cada pessoa uma boa reserva econômica, não iria suprir
necessidades futuras nem po-der prever sua extensão. Desse modo, a única
solução plausível seria reunir-se em grupo, sendo todos os indivíduos ameaçados
pelos mesmos resultados. Tornar-se-iam mais for-tes e poderiam enfrentar um
futuro incerto, pois era evidente que nem todos seriam atin-gidos ao mesmo
tempo. Ai estaria o remédio: praticar economia conjunta, reunindo os meios
necessários para ser utilizados nas situações de maior premência. Nascia o
seguro social.
Qualquer método de economia
coletiva deve basear-se em normas incondicionais, no sentido de alcançarem seus
objetivos. As mais elementares são: l. Contar com a contribuição pecuniária de
todos que participam; 2. Mesmo que o
fundo pertença a todos, só po-derá ser usado quando de uma utilização
ne-cessária; 3. Selecionar as causas que justifi-cam a utilização do fundo
comum; 4. Com-pensar da forma mais satisfatória quem dele necessitar.
A contribuição obrigatória é uma
regra indispensável no método de economia coletiva, no sentido de evitar a
falência do sistema. A observação demonstrou que a voluntariedade, além de
afastar os aparentemente protegidos, atrai os mais necessitados, ou seja, a
maior procura dos mutualistas considerados maus riscos.. A não compulsoriedade
do seguro cria uma sobrevivência penosa e difícil, terminan-do por comprometer
as bases técnicas do sis-tema, levando-o quase sempre a insolvência.
É muito justo que só se beneficie
do fun-do comum a vitima. Aquele que contribuiu e nunca dele precisou.
simplesmente comprou sua tranqüilidade e sua segurança. Esse foi premiado por
não ter sido escolhido como vitima do sistema. Por outra forma, não será, por
qualquer alegação que o seguro tenha seu mecanismo de proteção acionado sempre.
Mas somente naqueles casos estabelecidos pelas clausulas do contrato
securitário, a fim de que a necessidade que se pretende alcançar seja sempre
justa e emergente.
A lei dos grandes números - que
permi-te, sobre certo grupo de pessoas e num de-terminado tempo, estabelecer a
inclinação de certos fenômenos - possibilitou ao homem a elaboração de tabelas,
gráficos e estatísticas capazes de prever, num ano, o número quase exato de
vitimas. por meio de uma estima-tiva matemática. Esta é a mola mestra do
se-guro, pois é em decorrência dessa previsão que se possibilita calcular com
exatidão as necessidades globais. Outro fato: O cálculo do seguro não pode ser
feito em relação a cada pessoa sob proteção do sistema, mas uma avaliação do
risco a que esteja passiva toda mas-sa segurada, resultante do rateio das
neces-sidades globais de todos os mutuários. Isso veio dar ao seguro social seu
verdadeiro equilíbrio financeiro, através da previsão de suas despesas,
evitando as cotas suplementares ou a falência.
As condições básicas para que o
seguro médico tenha um bom funcionamento são: existência de um interesse real,
exposição a um perigo comum e potencial, iminência de dano, avaliação do risco
e das necessidades, e custo acessível.
Finalmente, o sistema de economia
cole-tiva no âmbito médico tem por finalidade principal reparar, tanto quanto
possível e da maneira mais justa, quem dela venha a ne-cessitar, contanto que
atenda as condições previamente estabelecidas.
O seguro contra responsabilidade
civil do médico não apenas traria ao cliente maior garantia para sua saúde e ao
médico uma forma mais tranqüila e segura no exercício de sua profissão, mas,
também, daria à so-ciedade uma certeza de que seu equilíbrio econômico, social
e emocional não seria prejudi-cado por fatos cujas discussões e protelações em
nada tem se mostrado útil. Uma indenização de grande monta paga pessoalmente
por alguém poderia arruiná-lo, transformando o causador do dano em outra
vítima.
A única fórmula capaz de sanar as
situações advindas dos danos causados por uma prática médica seria a
socialização do risco médico.
Socialização do risco medico.
Socializar o risco médico, no
sentido de reparar civilmente o dano, é o único instrumento viável e suscetível
de assegurar tranqüilidade no exercício profissional e garantir uma reparação
mais imediata e menos confrontante com o médico. É também uma forma de corrigir
algumas distorções da medicina dita socializada, cada vez menos amistosa, cada
vez mais hostil.
A socialização do risco é a que
melhor atende à justiça coletiva. Não se pode escon-der o fato de que a
medicina é a profissão que mais absorve os impactos das novas con-cepções
sociais. Negar essa realidade, alem de egoísmo, é colocar-se distante do
presente. Esta é a única forma que dá ao responsável condições de responder
pelo ônus do dano causado, quase sempre distante de suas reais possibilidades.
Para o paciente, o sistema de seguro também significaria livrar-se de um
processo penoso e confuso, a proteção contra a deficiência técnica, contra seus
riscos e contra a eventual falibilidade do profissional.
No entanto, esses seguros não
podem nem devem, sob qualquer pretexto, ser feitos por empresas privadas.
Devem, isto sim, realizar--se por uma instituição estatal ou pela própria
classe médica; como, por exemplo, sob a responsabilidade da Associação Médica
Brasi-leira, como mutualizadora ou como concessio-nária exclusiva do Estado.
Os programas de seguro social
devem ser estabelecidos por normas legais de proteção, esteja ou não a sua
administração nas mãos do Gover-no. O sistema deve ser financiado por
contribuições pagas de seus segurados, de forma compulsória e só beneficiar os
contribuintes. O seguro social representa a reunião de re-cursos financeiros de
todos que dele partici-pam, a fim de criarem um fundo comum disponível àqueles
que necessitem, em decorrência de um fato futuro previsto. Seguro social é
previdência propriamente dita, porque ser previdente é antecipar uma visão de
um fato tomando agora as medidas necessárias no sentido de contornar futuros
problemas ad-vindos desse fato.
Em todos os países onde o sistema
se-curitário falhou, estavam as Empresas de Se-guro nas mãos de grupos
particulares, que não conhecem os limites do ter nem resistem à tentação de
maior lucro. Ao invés de possíveis saldos passarem as mãos gananciosas das
empresas particulares, seriam utilizados em beneficio da pr6pria classe médica,
com a instituirão da assistência mutuária da previdência médi-ca, do estímulo á
pesquisa médico-científica, do aprimoramento profissional, de taxas mó-dicas de
seguro, entre outros.
Ninguém pode negar que o seguro
no âmbito privado abriu veredas perigosas no in-tricado problema da
responsabilidade civil. Pois, além de
as empresas não cobrirem to-dos os riscos, em regra, ainda se mostram
re-sistentes ao cumprimento de suas obrigações. Somente o Estado, que não visa
ao lucro, mas ao bem-estar da coletividade, teria uma situação privilegiada
para assumir tal encargo. O Estado segurador não se onera de impostos,
propaganda ou comissões. Não usa de má-fé, não simula falência nem liquidações
precipi-tadas, não alcança lucros astronômicos.
Alguém poderia insinuar que a
socialização do risco medico seja a simples aceitação da existência dos danos
causados a pacientes ou delegações de direitos inalienáveis. Argu-mentar-se-ia
ainda que essa forma de seguro deixaria o médico indiferente a sua
responsa-bilidade, pois teria naquelas instituições o instrumento legal da
reparação. Ou, final-mente, uma cômoda maneira de transferir uma obrigação
pessoal para a comunidade.
Tais argumentos não convencem.
Primei-ro, não se cogita da imunidade ética ou pe-nal que venham existir em
cada caso. Depois, não se pode ocultar a existência. do risco e,
consequentemente, a tendência crescente de resultados danosos. É inadmissível
que um profissional venha negligenciar em seu tra-balho simplesmente por
existir alguém capaz de reparar materialmente determinado dano. Além da
consciência do homem e do profis-sional, prevalece ainda a vaidade natural em
querer acertar, sempre que possível. Esse tipo de seguro leva o médico mais
facilmente a agir em favor do paciente, aumentando-lhe seu rendimento e fazendo
com que ele atenda melhor aos interesses da comunidade. Atira--se com mais coragem
ao trabalho, aumentan-do sua produção, pois o que ele deseja é maior segurança
para seus atos e uma garantia mais efetiva para a vida e a saúde de seus
pacientes.
Certos organismos de classe
afirmam que algumas pessoas, sabendo da existência do seguro e que a
indenização poderia ser paga, fariam irremediavelmente a reclamação,
cons-tituindo-se, desta forma, num fato estimula-dor de queixas. Isto é fazer
da exceção a re-gra geral. E não diz ao medico depois de acio-nado por danos
civis, sem cobertura de um seguro e sem poder enfrentar indenizações de grande
monta, qual a solução ideal. Não conhecemos, por outro lado, nenhum
departa-mento dessas associações que venha acudir o medico numa situação desta
natureza, e como continuar trabalhando sem a ameaça da insolvência, quando o
que lhe rende a profissão é incapaz de suportar o ônus das deman-das?
Conquanto a fiscalização do
exercício profissional tenha seus 6rgaos pr6prios, sua ação faz-se sentir
apenas em termos de resguardar o bom nome da Medicina. No máximo, defen-der
indiretamente o médico, quando, envolvi-do num processo ético-profissional, for
absol-vido. Existe, portanto, uma proteção ético--moral, jamais uma função
seguradora con-tra a responsabilidade civil. E não se pode falar da existência
de uma legislação própria capaz de amparar o medico diante de um dano
resultante de fato inevitável. A única lei especifica ao caso diz que o médico
está obrigado a satisfazer o dano, sempre que da imprudência, negligência ou
imperícia em atos profissionais, resultem morte, inutilização de servir ou
ferimentos (art. 1.545 do Código Civil
brasileiro). Da mesma forma não conhe-cemos nenhuma norma dessas
entidades clas-sistas capaz de responder pelo médico quando de uma indenização.
Simplesmente uma f6r-mula sofistica e romântica de características unilaterais
e te6ricas, em que o paciente é tota1mente esquecido e o médico falsamente
lembrado. Um sentimentalismo inútil em oposição ao próprio paciente que tanto
se insinua proteger.
Mesmo assim, não se diga que a
socialização do risco médico não apresente incon-venientes. De sadia, a criação
de mais uma engrenagem burocrática de larga escala, cor-rendo o risco de
aviltar-se. Mesmo assim, a crítica improcede. Não conhecemos, entre n6s, nenhum
sistema estatal de seguro social público que tenha sofrido insolvência ou
retrocesso.
Outros admitem existir a
substituição da relação contratual entre médico e paciente pelo automatismo de
uma instituição meca-nizada. Tal argumento também não procede, visto que a
liberdade de contratar, nos ajus-tes, é uma ilusão, uma fantasia.. Não existe.
É claro que o mais fraco e o mais ingênuo não pode se impor ante o mais prepotente e o mais astuto. Dai o Estado, vez
por outra, in-tervir, por via da lei, no controle e na regulamentação de certos
ajustes.
Assim como a socialização do
risco foi a maneira mais justa e eloqüente de resolver os graves conflitos nos
acidentes de trabalho, seria esta a fórmula ideal para evitar o desequilíbrio
social e sanar o dano sofrido pelo paciente, através da reparação por um
ins-trumento estatal de seguro.
"Vitima, agente e sociedade,
assegura HERMES RODRIGUES DE ALCANTARA, são beneficiados com a socialização do
risco: o primeiro porque vê a sua indenização inde-pender da situação
financeira do seu preju-dicador; o segundo porque não arca sozinho com o ônus
da indenização de um dano, cuja participação pessoal, às vezes, é mínima; e a
última porque não sofre o impacto do desequilíbrio patrimonial de qualquer de
seus integrantes. O sistema funciona como na hidráulica se comportam os vasos
comunican-tes" (in op. cit) .
Conclusões.
1. A Medicina, ao colocar entre o
médico e o paciente todo esse fabu-loso instrumental tecnológico, criou um
rela-cionamento mais frio e mais impessoal. Se possível deve o médico voltar ao
seu an-tigo lugar - o pé do leito. Talvez seu calor e sua sentimentalidade
desencorajem o pa-ciente de demandar junto a um tribunal, pois um bom
relacionamento não permite determi-nados pleitos. Em geral, a demanda civil
con-tra o médico representa muito mais um ato de vingança que propriamente um
interesse pecuniário.
2. A atividade profissional
médica não pode deixar de criar riscos, e consequentemente prejuízos a outrem,
mesmo sabendo-se que essa não e a intenção do médico, e que muitos desses
riscos são em proveito do pr6-prio paciente.
3. A Medicina e o médico são
falíveis, mas uma vontade honesta e uma diligência mais atenta não eximem o
direito alheio.
4. Em todo contrato que pressupõe
um perigo, existe, de inicio, uma obrigação de ga-rantia, consagrada pelos
princípios capitais da responsabilidade civil.
5. O velho conceito subjetivo de
culpa, no campo da responsabilidade civil, já se mos-tra, há muito, incapaz de
solucionar as mais diversas situações e as mais graves conseqüências oriundas
do risco profissional.
6. 0 subjetivismo da culpa está
se di-luindo, dando margem ao surgimento do con-ceito de risco, em que o autor
responderá, simplesmente pelo dano causado, estando isento apenas quando diante
de força maior, de culpa da vitima, de atos de terceiros e de inexistência do
nexo causal.
7. Desde que exista um nexo de
causa e efeito, a aceitação da teoria do risco seria uma forma de reparação do
dano, como um remédio capaz de beneficiar todos os envolvidos, direta ou
indiretamente.
8. As decisões dos tribunais
brasileiros vem demonstrando, cada vez mais, nos litígios entre médicos e
pacientes em demandas civis, uma inclinação em favorecer os segun-dos.
9. Nos dias que correm, a
responsabilida-de civil tem caráter político-económico, ten-dente à repartição
dos danos, assegurando o equilíbrio social e a ordem publica.
10. As legislações comuns ou de
exceção, no mundo inteiro, tem procurado no instituto do seguro uma forma de
cautela contra to-das as eventualidades dos riscos causadores de danos, como
uma melhor condição de li-berdade e segurança no trabalho.
11. Os seguros privados tem
mostrado a insegurança, e a mutualização restrita também não corresponde as
necessidades vigen-tes. S6 o seguro estatal de mutualizacão am-pla e
compulsória pode trazer os benefícios esperados. O Estado deve agir como
legitimo representante, não apenas da massa de segu-rados senão também como
defensor e fisca-lizador dos interesses coletivos em questão.
12. A importância econômica
exercida pelo seguro não se extingue no interesse pes-soal do segurado, mas se
amplia ao próprio meio social. Qualquer prejuízo, por mais pes-soal que pareça,
repercute sempre sobre o in-teresse de muitos.
13. O caráter estatal e
obrigatório do seguro não se apresenta como opressão ou cerceamento, senão como
uma forma de pro-mover uma modalidade mais eficiente, mais segura e mais
agilizada de justiça.
14. Na responsabilidade civil, a
socialização dos riscos é a f6rmula que melhor aten-de ao interesse coletivo,
nesta fase de evolução e transição sociais. A socialização do Di-reito é um
fato indiscutível e irreversível.
15. São perfeitamente
justificáveis algu-mas criticas à socialização do risco médico, do que, alias,
não estaria imune qualquer ou-tra solução. Todavia, é ela a única opção que
teremos num futuro bem próximo, a não ser que cada um esteja capacitado
economica-mente para responder pelo ônus das deman-das civis de indenização.
16. Esse sistema oferece também
falhas. Entretanto, nenhum instituto juridico-social deixa de ser bom pela
perfeição absoluta, mas pelo maior numero de benefícios que venha apresentar em
confrontação com algumas desvantagens.
17. A socialização do risco
médico não pode ser vista como maneira de afrouxamen-to da prudência, dos
cuidados e da atenção, pois tal pensamento se contrapõe a dignida-de
profissional e humana. Não limita a livre iniciativa nem a liberdade de
ninguém, como também, não pode estimular no indivíduo o desejo de vitima.
18. Socializar o risco médico é
uma mo-dalidade indiscutível de justiça social, vindo ao encontro da realidade
vigente, coibindo explorações, ruínas, injustiças, iniqüidades, fo-mentando
ainda uma melhor harmonia en-tre os homens e uma garantia insofismável de
segurança, de ordem pública e de paz so-cial.
19. A socialização do risco
médico não é transacionar com a desgraça, pois não seria o dinheiro o m6ve1 da
questão. Mas o resta-belecimento dos múltiplos interesses através da
solidariedade social.
20. Finalmente, seria através da
socialização do risco médico que a vítima., o autor e a comunidade seriam
garantidos e be-neficiados, pois independeria da situação econômica do causador
do dano, evitaria a insolvência e isentaria o grupo do desequilíbrio
patrimonial a qualquer de seus membros.
Bibliografia
1. Alcântara, HR - "Responsabilidade Médica", José
Konfino Editor, Rio de Janeiro, 1971.
2. Assis, AO - "Compêndio de
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3. Bevilaqua, C -
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4. Carvalho, HV - "Acidentes do Trabalho", Ed. Saraiva,
São Paulo, 4ª Ed., 1963.
5. Dias, JÁ - "Cláusula de
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6. França, GV - "Direito
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7. França, GV - "Medicina
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8. O, G - "Contratos",
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9. Lima, A - "Culpa e
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10. Silva, WM – Responsabilidade
sem culpa e socialização do risco,
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11. Soriano, MB - "Teoría General de las Obligaciones", 4a
Editora Porrua. Mexico, 1962.
12. Vires, AP - "Teoría
General de las Obligaciones",
Editora Themis, Bogotá, 1954.
(*) – Palestra proferida no “I
Simposio Iberoamericano de Derecho Médico”, em Montevidéu, 29 setembro a 1º de
outubro de 2000.
(**) – Professor da Escola Superior da Magistratura da Paraíba – Brasil.
Retirado de http://direito.medico.vilabol.uol.com.br/socializacao.htm