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Particular pode atuar como agente infiltrado?

 

Damásio de Jesus
Setembro/2002

 

A Lei n. 9.034, de 3.5.1995, a denominada Lei de Combate[1] ao Crime Organizado, que dispôs sobre meios operacionais para prevenção e repressão de ações cometidas por organizações criminosas, alterada pela Lei n. 10.217, de 11.4. 2001[2], em seu art. 2.º, inc. V, permite, “em qualquer fase de persecução criminal”, a “infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial”.[3]

Considera-se agente infiltrado “a pessoa que, integrada na estrutura orgânica dos serviços policiais, é introduzida, ocultando-se sua verdadeira identidade, dentro de uma organização criminosa, com a finalidade de obter informações sobre ela e, assim, proceder, em conseqüência, à sua desarticulação”[4].

Apreciando o alcance da Lei n. 10.217/01, verifica-se que não admite a infiltração de particulares, quaisquer que sejam, na prevenção e repressão do crime organizado. Não obstante as lacunas da Lei[5], neste ponto é clara ao indicar que somente agentes de polícia e de inteligência[6] podem agir, nas organizações criminosas, como agentes infiltrados. Como diz LUIZ OTÁVIO DE OLIVEIRA ROCHA, “somente os membros dos organismos policiais (e de inteligência) podem atuar como agentes infiltrados, descartando-se, portanto, a cooperação de particulares”[7]. Tanto que o art. 4.º da Lei determina aos órgãos de Polícia Judiciária a estruturação “de equipes e setores de policiais especializados no combate à ação praticada por organizações criminosas”.

A infiltração de pessoas estranhas aos organismos policiais traz inúmeros problemas, como o da probabilidade de o infiltrado, em participação ou co-autoria com os demais membros da organização criminosa, vir a cometer delitos. Ele, a autoridade dirigente da infiltração e a que a permitiu estariam cobertos de responsabilidade penal?[8]

O particular está, pois, impedido de agir como agente encoberto. O tema é tão pacífico que não merece muitas considerações. Já foi legislado em vários países, como Alemanha, México, Chile, Itália, França, Panamá, Estados Unidos, Argentina[9] e Espanha, em nenhum deles admitindo a doutrina a legitimidade da infiltração de particulares.[10]

 



[1] As Nações Unidas não empregam mais a expressão “combate” (ao crime), preferindo “prevenção e repressão”.

 

[2] A Lei n. 10.217/01 resultou do Projeto de Lei n. 3.275/00, do Poder Executivo.

 

[3] O legislador brasileiro já havia tentado introduzir entre nós a figura do “agente infiltrado”, tendo sido vetado pelo Senhor Presidente da República o inc. I do art. 2.º da Lei n. 9.034/95, que a previa. A “infiltração” não se confunde com a “ação controlada”, que consiste em retardar a atividade policial no sentido de se aguardar momento apropriado para a produção de provas (art. 2.º, II, da Lei n. 9.034/95). Sobre a ação controlada, vide CARVALHO, Ivan Lira de. A atividade policial em face da Lei de Combate ao Crime Organizado. RT, São Paulo, 736/473. Sobre o agente infiltrado, vide DR. JEKYLL Y MR. HYDE. La introducción del llamado agente encubierto a la legislación argentina. Nueva Doctrina Penal, Buenos Aires, Editores del Puerto, p. 273 e s., 1996/A; GUARIGLIA, Fabricio. ¿El agente encubierto: un nuevo protagonista en el procedimiento penal? Madri, Jueces para la Democracia, 1995, 23:49; EDWARDS, Carlos Enrique. El arrepentido, el agente encubierto y la entrega vigilada. Buenos Aires, Ad-Hoc, 1996; CORCUERA, Santiago, DUGO, Sergio e LUGONES, Narciso J. Una muy rápida mirada histórica sobre el agente provocateur y sus descendientes en el Derecho Comparado, Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia Penal, Buenos Aires, Ad-Hoc, n. 4/5, p. 193 e s.; MATA-TOUROS, Fátima. O agente infiltrado. Revista do Ministério Público, Lisboa, vol. 22, fasc. 85, p. 105, jan./mar. 2001; CARRIÓ, Alejandro. ¿Agentes encubiertos y testigos de identidad reservada: armas de doble fio, confiadas a quien? Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia Penal, Buenos Aires, vol. 3, fasc. 6, p. 311, ago. 1997; BRAUM, Stefan. La investigación encubierta como característica del proceso penal autoritario. Granada, Editorial Comares, 2000; DELGADO, Joaquin Martin. La criminalidad organizada. Barcelona, Bosch, 2001; GASCÓN, Fernando Inchaus. Infiltración policial y agente encubierto. Granada, Editorial Comares, 2001; GUIMARÃES, Isaac Sabbá. O agente infiltrado na investigação das associações criminosas. Boletim IBCCrim, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, vol. 10, fasc. 117, p. 12, ago. 2002.

 

[4] SPIEGELBERG, José Luís Seoane. Aspectos procesales del delito de tráfico de drogas. Actualidad Penal, Madri, n. 20/13, p. XXI, item 1, maio 1996.

 

[5] A Lei não contém regras quanto ao tempo de infiltração, licitude das ações do undercover agent, uso lícito de identidade falsa, proteção, obrigatoriedade de submeter-se ao serviço de investigação etc. Como observa Luiz Otávio de Oliveira Rocha, a Lei contém “lacunas que provavelmente dificultarão sobremaneira sua aplicação” (Agente infiltrado: inovação da Lei 10.217/2001, Revista Ibero-Americana de Ciências Penais, Porto Alegre, vol. 3, fasc. 5, p. 50, jan./abr. 2002).

 

[6] “Agentes de inteligência” são “agentes de serviços de informação” (LUIZ OTÁVIO DE OLIVEIRA ROCHA, artigo citado). Com razão, OLIVEIRA ROCHA notou ser de “duvidosa constitucionalidade a permissão” de “agentes de inteligência” atuarem como infiltrados, uma vez que “a eles, em regra, não são cometidas funções de Polícia Judiciária” (artigo citado).

 

[7] “Organismos policiais”: aqueles que podem agir como Polícia Judiciária, nos termos do art. 144, I a IV, da Constituição Federal (OLIVEIRA ROCHA, artigo citado).

 

[8] Como é notório, o agente infiltrado, para obter sucesso, deve comportar-se e atuar como membro da organização. Para tanto, pode vir a realizar ou participar de ações penalmente típicas. Como afirma Raúl Cervini, o Estado, para impedir o crime, decide participar de sua produção (Crime organizado – enfoque jurídico-criminológico e político criminal – Lei n. 9.034/95, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 321). Tratando-se de “agente de polícia”, sendo obrigado a agir dentro da organização, não comete delitos, encontrando-se amparado por excludente da antijuridicidade ou da culpabilidade, de acordo com a sua legislação nacional (na Alemanha, por exemplo, incide o estado de necessidade justificante ou inculpável). De ver-se que o Projeto de Lei n. 3.275/00 proibia a “co-participação delituosa”, considerando-a ilícita, ressalvado o crime de quadrilha ou similar. A lei nova não disciplina a matéria, o que é de causar preocupação (BORGES D´URSO, Luiz Flávio. A lei nova autoriza a infiltração de policiais em quadrilhas, <www.direitocriminal.com.br>, 14.4.2001).

 

[9] Na Argentina, a Polícia de Mendoza, obtendo informação de que o Cônsul boliviano guardava drogas no Consulado, articulou o seguinte estratagema: a pessoa detida, que aceitou colaborar, a quem o Cônsul conhecia, e um policial, à paisana, compareceram ao Consulado. Recebidos pelo Cônsul, o detido pediu-lhe que entregasse a droga, o que foi feito, permitindo a sua prisão fora do Consulado (SANDRO, Jorge Alberto. Una distorsión de las garantias constitucionales: el agente encubierto, la inviolabilidad del domicilio y el debido proceso legal. Doctrina Penal, Buenos Aires, Depalma, n. 57/58, p. 125, jan./jun. 1992).

 

[10] SPIEGELBERG, José Luís Seoane. Op. cit., p. XXI e XXII.

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Como citar este artigo:

JESUS, Damásio de. Particular pode Atuar como Agente Infiltrado?. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, set. 2002. Disponível em: <www.damasio.com.br/novo/html/frame_artigos.htm>

Palavras Chaves:  particular agente infiltrado