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REQUISITOS TÍPICOS DO
CRIME DE PREVARICAÇÃO E A INDEPENDÊNCIA JUDICIAL
Mauro Sérgio Leite
Especialista
em Direito Penal pela USP e juiz de Direito em São Paulo
"Ele
poderia muito bem ter pedido clemência. E poderia ter salvo sua vida se
concordasse em deixar Atenas. Mas, se tivesse feito isto, não teria sido
Sócrates. O ponto é que considerava sua própria consciência - e a verdade - mais
importante do que sua vida. Sócrates afirmou o tempo todo que tudo o que fizera
fora para o bem do Estado. Não adiantou. Pouco depois, na presença de seus
amigos mais íntimos, bebeu um cálice de cicuta." (Jostein Gaarder)
Introdução
O
delito de prevaricação, previsto no art. 319 do Código Penal, no capítulo dos
crimes contra a administração pública, não obstante ser tema pacífico na
doutrina, já causou perplexidade aos juizes e a todos que clamam pela
independência judicial. Com efeito, não são tão raros pedidos de providências,
com base no delito em tela, contra juizes de direito. O fundamento dos pedidos
de providência são sempre a não observância a determinada lei.
Impende
salientar, desde já, que os pedidos de apuração das condutas partem sempre de
juizes de instâncias elevadas e que se situam em um patamar dito
hierarquicamente superior, não obstante o erro em tal qualificação, pois
hierarquia é um conceito próprio e que não pode ser aplicado quando se faz
necessário o exercício do livre convencimento, ainda mais quando jurisdicional.
Por
isso, o momento é de reflexão, devendo, desde já, afirmar-se que as decisões,
por mais não convencionais que possam ser, não rendem ensejo a punições,
principalmente através do delito de prevaricação, que segue contornos próprios
e delimitados, diga-se, do próprio ordenamento jurídico. Nunca se clamou tanto,
no período contemporâneo, pela independência judicial, seja em relação aos
Poderes Legislativo e Executivo, seja em relação ao próprio Judiciário. É esse
o objetivo desse estudo, que partirá da própria análise do crime de
prevaricação, para depois tecer comentários a respeito da atividade dos
magistrados, quando agem através do que se convencionou chamar, independência
judicial.
Do
delito de prevaricação
Esboço
histórico
Prevaricação
vem do latim praevaricatio, significando aquele que anda obliquamente ou
desviado do caminho direto. No sentido figurado, definia-se a conduta de quem,
tomando a defesa de uma causa, favorecia a parte contrária. Segundo Cícero:
"Praevaricator significat eum qui in contrariis causis quasi variae esse
positus videbitur." Em sentido jurídico, ganhou duas conotações, uma em
sentido lato, outra estrito. Nesta, significava a conduta do advogado ou
patrono da parte que, traindo seu mister, se pactuava fraudulentamente com a
parte contrária, levado, em regra, pela ambição ou interesse próprio. Naquela,
traduzia simplesmente o desvio de função, a conduta do funcionário que trai
seus deveres, o actor que, judicio publico, traía a própria causa,
conluiando-se com o reus.
Os
romanos mantiveram o conceito restrito, entendendo praevaricator a conduta do
patrocínio infiel. Todavia, o conceito se ampliou, passando a denominar todo
aquele que se torna infiel ao próprio cargo. Frise-se, porém, que o sentido
restrito não desapareceu. Carrara, citado por Magalhães Noronha1, definia a
prevaricazione, dizendo praticá-la "aquele que, no exercício da profissão
de advogado de uma parte, se acorda com o adversário, com o objetivo de lucro,
em prejuízo do cliente".
Com o
advento dos códigos penais, alguns se mantiveram ao estrito conceito romano,
enquanto outros aderiram ao sentido extensivo. No Código Francês de 1810, sob o
nomem juris de forfaiture, prevaricação é qualquer ato de um funcionário
público que trai os deveres do próprio cargo ou dele se serve para fins
ilícitos. O Código Sardo(1859) declarava prevaricazione o que a lei francesa
chamava forfaiture. O Código gregoriano identificava o crime no ato de
"qualunque magistrado o impiegato che prevarica nell'esercizio delle sua
attribuzioni per denaro, o altra causa turpe". O nosso Código de 1830
entendeu de inserir no delito de prevaricação um sinal específico, qual seja, a
necessidade do descumprimento ou violação do dever funcional ter por movens, na
linguagem de Hungria 2, a afeição, o ódio, a contemplação ou interesse pessoal
(amor, odium, obsequium, cupiditas).
Em
igual sentido foi o Código de 1890, que procurou acrescentar às modalidades da
prevaricação a infidelidade ou tergiversação do advogado ou procurador judicial
(de que não cuidava o Código do Império).
O
atual Código, na trilha dos anteriores, embora empregando fórmula resumida,
fugindo de casuísmos, continua exigindo um intuito específico por parte do
funcionário público, classificando-o como crime próprio do funcionário público.
O legislador pátrio optou por caminhos particulares, baseado na origem
histórica da figura penal.
Conceito
e objetividade jurídica
Dispõe
o art. 319 do Código Penal: "Retardar ou deixar de praticar, indevidamente,
ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer
interesse ou sentimento pessoaI”.
Prevaricação
é, na lição de Magalhães Noronha 3, infidelidade ao dever de ofício, à função
exercida. É a não realização de conduta obrigatória, através de não
cumprimento, retardamento ou concretização contra a lei, com a destinação
específica de atender a sentimento ou interesse próprio.
O
objeto jurídico tutelado é o bom funcionamento da atividade pública, a qual não
pode compactuar com o proceder do funcionário que deixa de lado seus deveres,
para satisfazer seu próprio interesse. Tutela-se o interesse da administração
pública.
Sujeitos
do delito
Crime
próprio, só pode ser praticado por funcionário público (lato sensu), não
havendo distinção quanto a hierarquia ou grau. A participação de terceiro não é
excluída, tendo em vista as regras dos arts. 29 e 30 do Código Penal.
Realmente, a condição pessoaI funcionário público é elementar subjetiva
(pessoal) do crime, comunicando-se ao partícipe, desde que ele tenha
conhecimento daquela condição especial do autor. Caso desconheça tal condição,
dependendo das circunstâncias do caso concreto, o particular poderá responder
por outro crime, vg., desobediência.
Sujeito
passivo é o Estado, titular da regularidade da administração pública. Pode
surgir, eventualmente, como sujeito passivo secundário o particular atingido
pela prática do ato, sofrendo dano ou perigo de dano em face da realização,
omissão ou retardamento da prática do ato de ofício.
Tipo
objetivo
O
crime pode se apresentar sob três formas: retardar indevidamente ato de ofício,
deixar indevidamente de praticá-lo, ou praticá-lo contra dispo-sição expressa
de lei. Nas duas primeiras modalidades, o crime é omissivo; na última, é
comissivo.
Retardar
é protrair, atrasar, adiar, protelar, procrastinar, delongar. Segundo Bento de
Faria 4, "se verifica quando o funcionário não reali-za o ato que tem o
dever de praticar no prazo prescrito, ou, em sua falta, em tempo útil para que
produza seus efeitos normais, ainda quando a demora não determine a inva-lidade
do ato sucessivamente realizado". Não importa se o ato continua a ser
praticável após a expiração do prazo, pois o crime é formal e já se consumou
pela prática da conduta, independentemente do resultado.
Deixa
de praticar o ato o funcionário que o omite, definitivamente, não realizando o
ato devido. O animus é definitivo a respeito da não realização. Veja, na
conduta anterior a intenção é apenas de protelar, enquanto nesta o sujeito não
tem a intenção de praticar o ato.
A
terceira forma da prevaricação é comissiva: consiste na prática de ato de
oficio contra disposição expressa de lei. Nesta última modalidade exige-se que
o ato praticado envolva a violação de mandamento legal, expresso. Exige-se,
então, que a regra seja evidente, taxativa. Nesse lanço, o funcionário pratica
o ato, embora expresso mandamento legal em contrário.
Nas
duas primeiras hipóteses, retardamento e omissão da realização do ato de
ofício, deve ficar demonstrado serem indevidos os atos, constituindo assim
elemento normativo do tipo. Ato indevido é o ato reprovável, não aceito pelo
ordenamento jurídico, contrário ao bom desempenho do serviço público. Nestes
casos não se admite a tentativa, pois são crimes omissivos próprios, não
obstante a posição de Zaifaroni e Pierangelli 5 em sentido contrário, quando se
referem à tentativa idônea. Trazendo à colação exemplo em relação à omissão de
socorro, os renomados autores entendem que a tentativa se perfaz com o simples
dolo de omitir o auxílio, desde que o agente realize uma ação diferente a da
consumação do crime. Todavia, na linha dominante da doutrina, como observou
Alberto da Silva Franco, citando Euclides Custódio da Silveira e Magalhães
Noronha 6, acredito não ser possível fracionar o processo executivo do crime.
Com isso, como o crime omissivo não exige a superveniência de resultado, o seu
momento consumativo é o da simples abstenção. Nesse sentido, em relação ao
crime de prevaricação, ou o agente atua, deixando de existir o crime, ou se
omite ou retarda na prática do ato de ofício, de forma relevante para o Direito
Penal, estando consumada a infração penal.
Na
última conduta, comissiva, que tem como núcleo o verbo praticar, exige-se que o
ato praticado envolva a violação de mandamento legal expresso, ou seja,
demonstrável prima facie, taxativo. Necessário que a norma violada obedeça o
conceito formal de lei, que segundo Michel Temer 7 é o "ato normativo
produzido pelo Poder Legislativo segundo forma prescrita na Constituição,
gerando direitos e deveres em nível imediatamente infraconstitucional",
não constituindo o crime a infringência de qualquer outro ato, tais como,
medida provisória, portaria ou provimento. Aliás, como tem decidido a
jurisprudência, o não-cumprimento de norma flagrantemente inconstitucional
também não caracteriza o crime (RT378/310 e RT482/326). Nessa última hipótese é
admissível a tentativa.
Ato
de ofício é aquele que se compreende nas atribuições próprias do cargo ou
função, ou em sua competência, correspondendo assim a ato administrativo ou
judicial.
Frise-se
que não pode haver prevaricação se o ato praticado, omitido ou retardado refoge
ao âmbito da atribuição ou competência funcional do servidor, já que o crime se
caracteriza pela infidelidade na obrigação funcional e pela parcialidade no seu
desempenho.
Tipo
subjetivo
O
primeiro é o dolo, expressado na vontade de retardar, omitir ou praticar
ilegalmente o ato de ofício. É imprescindível, segundo Damásio de Jesus 8, que
abranja o conhecimento da ilegalidade da conduta, ou seja, é preciso que o
sujeito saiba que está retardando ou deixando de realizar o ato de forma
indevida ou que o esteja praticando contra a lei. É-nos dado ver, com clareza,
que a vontade deve abranger todos os elementos objetivos do tipo, ou seja,
retardando ato de ofício, deixando de realizá-lo ou realizando-o contra a forma
preconizada expressamente na lei. Como afirmou Welzel 9, dolo é saber e querer
a realização do tipo. Vem à lume sua lição:
"En tanto se emplee el dolo como concepto
jurídico penal (como dolo de tipo), su objeto es la realización del tipo
objetivo de um delito. Dolo, en sentido técnico penal, es sólo la voluntad de
acción orientada a la realización del tipo de un delito. De esto se desprende
que también hay acciones no dolosas, a saber, las acciones en las cuales la
voluntad de acción no está orientada a la realización del tipo de un delito,
como sucede en la mayoria de las acciones de la vida cotidiana".
É
exigível também a presença do segundo elemento subjetivo do tipo, para a
caracterização do delito, que é o intuito de satisfazer interesse ou sentimento
pessoal. Então, não basta a existência do dolo, vontade livre e consciente de
praticar as ações indicadas, sendo necessária a presença do elemento subjetivo
do tipo expresso, segundo as palavras do eterno Celso Delmanto 10, pela
finalidade especial de agir, "para satisfazer interesse ou sentimento
pessoal".
Em
verdade, a indispensabilidade do especial fim de agir faz com que ocorra
ampliação do aspecto subjetivo do tipo. Contudo, o intuito de satisfazer
interesse ou sentimento pessoal não pertencem ao dolo nem o integram, já que
este se esgota na vontade e consciência de realizar a ação dirigida ao resultado.
Mais uma vez, preciso é o ensinamento de Welzel 11: "Junto al
dolo, como aquel elemento subjetivo-personal general, que fundamenta y
configura ia acción como acontecer final a menudo aparecen en el tipo elementos
subjetivo-personales especiales, que tiñen el contenido ético-social de la
acción en determinado sentido. La actitud o posición subjetiva desde la cual el
autor ejecuta la acción, determina frecuentemente en gran medida el significado
ético-social específico de la acción. Asi, por ejemplo, la sustracción de una
cosa ajena es una actividad final, regida por el dolo. Sin embargo, su sentido
ético-social será diferente, según si se ha realizado con el propósito de un
uso transitorio o con intención de aproapiación. En la primera hipótesis es, en
principio, impune, y sólo se castiga en relación con determinados objetos
(bicicletas, automóviles) como hurto de uso. Solamente en el segundo caso se da
el desvalor ético-social específico del hurto" .
Heleno
Cláudio Fragoso 12 é didático a respeito:
"O
especial fim ou motivo de agir que aparece em certas definições de delitos
condiciona ou fundamenta a ilicitude do fato. Trata-se, portanto, de elemento
subjetivo do tipo de ilícito, que se apresenta de forma autônoma, junto ao
dolo.
"Assim,
por exemplo, no crime de prevaricação (art. 319, CP), o tipo configura-se
objetivamente quando o agente retarda ou deixa de praticar indevidamente ato de
ofício, ou o pratica contra disposição expressa de lei. Todavia o tipo
subjetivo não se esgota com a vontade conscientemente dirigida à prática de
tais ações ou omissões: só haverá crime se, além disso, atuar o agente
"para satisfazer interesse ou sentimento pessoal".
Interessante
se verificar que em certos crimes, como disse Mirabete 13 a carga subjetiva da
conduta é denominada de tipo subjetivo e se esgota apenas no dolo quando o tipo
penal contém apenas elementos objetivos e normativos, mas naqueles em que
existem elementos subjetivos deve abranger estes. Ora, no delito de
prevaricação, sem a verificação dos elementos subjetivos do tipo, não existe o
crime. Qualquer entendimento em sentido contrário desrespeita o que se
convencionou chamar nullum crimem, sine lege, ferindo diretamente a
Constituição Federal, que em seu art. 5º, XXXIX, estabelece:
"Não
há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação
legal".
A
caracterização do delito in tela, face ao princípio da reserva legal, previsto
como direito e garantia individual na Lex Major, sem esquecer o art. 12 do
Código Penal, depende da efetiva presença dos elementos subjetivos. Com efeito,
a ocorrência do crime de prevaricação não se perfaz sem os elementos subjetivos
supra mencionados e não se coaduna com a aplicação do princípio do livre
convencimento. Consigne-se, desde já, que não se concebe em um Estado
Democrático de Direito sequer perquirir-se a respeito do crime de prevaricação
por parte do juiz, por simples descumprimento de lei expressa, diante da
concepção constitucional da independência judicial, pois, como afirmou, Requejo
Pagés, "confia-se no juiz para que seja ele quem decida qual norma e de
que modo deve ser aplicada, sem que possam produzir-se ingerências desde outras
sedes, razão pela qual se priva de relevância jurídica todo tipo de ordem ou
requerimento destinado a impor ao juiz um determinado critério" 14. Mas,
antes de pormenorizar esse tópico, vem à baila a análise do significado das
expressões interesse ou sentimento pessoal.
Interesse
pessoal é um estado anímico no qual se coloca a pessoa visando suprir
determinada necessidade, seja de natureza material, patrimonial ou moral. Como
afirmou Magalhães Noronha 15, interesse "exprime uma relação psicológica
entre a pessoa e um ato ou um objeto".
Sentimento
é o estado afetivo ou emocional, decorrente de afeição, simpatia, dedicação,
benevolência, caridade, ódio, parcialidade, despeito, vingança, paixão
política, cupidez, subserviência, covardia, prepotência etc. Identifica-se
assim como um estado no qual se coloca a pessoa, de forma que deixa de cumprir
sua obrigação, deixando-se levar pelo aspecto emocional. Embora, pela própria
natureza humana, torne-se difícil afastar a relação de sentimento existente em
qualquer decisão, mormente proveniente de um juiz de direito, que lida
diretamente com a busca da justiça, o que a lei visa reprimir é o fato de o
funcionário deixar de lado seu ato de ofício, objetivando exclusivamente
satisfazer seu sentimento. Lembre-se de que nem mesmo o sentimento mais nobre
elide a conduta do prevaricador, já que a atividade administrativa tem como característica
essencial a impessoalidade, não podendo estar sujeita a sentimento de ordem
pessoal. Fernando Henrique Mendes de Almeida, citado por Magalhães Noronha 16,
afirma: "Não aproveita ao prevaricador dizer que seu procedimento atendeu
a sentimento pessoal dos mais nobres e respeitáveis, tais como o religioso, o
da amizade, o da apreciabilidade política, ou da solidariedade humana.
Sentimentos pessoais do funcionário somente ele os deve exercitar à custa de
seu patrimônio e nas coisas que disserem respeito à sua vida de cidadão, na
esfera doméstica".
A
independência judicial
Fixados
os prismas doutrinários do delito de prevaricação, vem à baila a apreciação do
foco central do presente estudo: a independência judicial.
O
delito de prevaricação, como observado acima, tem três elementos objetivos do
tipo. Destaca-se, face ao presente estudo, o deixar de praticar, indevidamente,
ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei. Imagine a
hipótese do juiz deixar de fixar o regime fechado para réu reincidente ou
deixar de mandar apurar crime de que teve conhecimento. Todos esses atos,
decisões lato sensu, podem gerar inconformismo e, porque não, serem errôneos,
sujeitos a modificação. Contudo, ao deixar de praticar o ato de oficio,
inerente a função, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, o
magistrado só estará cometendo o crime em hipóteses mui excepcionais, quando
estará traindo o seu próprio cargo e vilipendiando sua consciência jurídica,
pois ao agir munido por sentimento ou interesse pessoal, elementos subjetivos
do tipo imprescindíveis para a caracterização do crime, estará abandonando a
posição de autoridade pública.
É bom
frisar ainda que a não observância de regra expressa da lei, muitas vezes,
decorre da própria interpretação do ordenamento jurídico, até porque o juiz
deve partir da análise da Constituição para interpretar a lei. De qualquer
forma, só há falar em prevaricação se presentes seus contornos típicos, devendo
ser respeitada a decisão proferida pelo magistrado, diante da independência
judicial.
A
função judicial não se esgota em um mero juízo automático de pura subsunção do
fato à norma; do contraste dos fatos com o ordenamento jurídico, tomando-se
como pedra-de-toque a Lei Máxima, é que se constrói uma decisão. Exigir-se do
magistrado um comportamento apriorístico, matemático, meramente
positivista-legalista é inaceitável diante do Estado Democrático de Direito 17.
É por
isso que o magistrado, exercendo sua função jurisdicional, não pratica o delito
de prevaricação, salvo em hipóteses excepcionais, quando, em realidade, não
estará sendo juiz, pois estará abandonando uma condição funcional objetiva,
qual seja, a imparcialidade.
O
juiz tem por função dizer o direito no caso concreto, direito esse que não se
esgota em meros enunciados objetivos, previstos em determinada lei ordinária. O
ordenamento jurídico é um todo, tendo em seu cume a Constituição Federal.
Todavia, tem se exigido do juiz, muita vez, aplicação a priori de determinado
dispositivo legal e, quando não realizada, tem surgido afigura assustadora da
prevaricação, visualizada por juizes de instância superior 18. Mesmo ocorrendo
insatisfação com a decisão, que pode, aliás, não ser a melhor, não existe o
delito ventilado. Porém, o mero pedido de apuração da conduta, na forma do art.
40 do Código de Processo Penal, mesmo tendo características administrativas, já
viola o princípio da reserva legal (art. 5º, XXXIX, CF) e fulmina a coragem
necessária para o juiz, pois "o dia em que os juizes tiverem medo, nenhum
cidadão poderá dormir tranqüilo" (Couture). Mas não é só.
O
magistrado, cumprindo o mandamento constitucional da motivação de suas decisões
(art. 93, IX, CF), encontra respaldo para julgar na própria independência do
Poder Judiciário, tão defendida, desde Montesquieu. Não é possível exigir-se do
magistrado qualquer conduta pré-determinada, sob pena de abandonar a
independência do julgador, violando até mesmo a Declaração Universal do
Direitos Humanos (art. 10). O juiz exerce seu poder independentemente, até mesmo
do Judiciário, pois em seu exercício jurisdicional não está sujeito a
hierarquia 19.
Vem a
talho que o Direito não pode se esgotar em uma interpretação literal da lei,
sem vínculo com a Constituição, sob pena de ofensa ao ordenamento jurídico como
um todo. Em realidade, o juiz deve se valer de todo o ordenamento jurídico, sem
aprisionar-se à expressa disposição literal de certo enunciado, diga-se,
oportunamente, sem utilizar-se de outros mecanismos, tais como o dito
"Direito Alternativo", por ausência completa de parâmetros. Nesse
lanço, ao deixar de aplicar determinada lei, de acordo com sua interpretação e
convencimento, o juiz não pratica crime de prevaricação.
Sucede,
porém, que já se ventilou pela prática do crime de prevaricação por parte do
magistrado quando, mesmo fundamentadamente, fixa regime aberto no caso de crime
de roubo. Em acórdão da 2ª Câmara do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de
São Paulo, no julgamento da apelação n.º 626.257/1, da comarca de São Paulo, em
6 de agosto de 1992, constou que um magistrado de primeira instância aplicou
aos acusados penas de cinco anos e quatro meses de reclusão a serem cumpridos
em regime aberto. Cassada em parte a decisão e fixando o regime inicial
semi-aberto, houve remessa de peças à Procuradoria Geral de Justiça, a fim de
apurar a conduta do magistrado a quo com base no delito de prevaricação.
A
decisão superior, em determinar a apuração da conduta do magistrado, laborou em
dois equívocos: um, que não foram observados os requisitos do crime de
prevaricação, já que não se ventilou, sob qualquer prisma, na existência do
elemento subjetivo do tipo - o interesse pessoal; dois, que não se ateve a
garantia de independência judicial externada pela decisão do juiz de primeiro
grau.
A
independência do juiz, verdadeira independência funcional objetiva,
pré-requisito mesmo da imparcialidade - só é imparcial quem é independente - é
instrumento do Estado Democrático de Direito para a garantia dos direitos
fundamentais da pessoa humana. E essa independência judicial existe também para
preservar o juiz de toda qualquer forma de ingerência, até mesmo dentro da
instituição. Aliás, no Seminário Internacional sobre a Independência Judicial
na América Latina concluiu-se que os juizes e tribunais gozem de uma estatuto
de verdadeira independência dentro da própria organização judicial, que situe
sua atividade jurisdicional a salvo de interferências hierárquicas e
administrativas " 20.
Interessante
é que muitas decisões judiciais, de forma praticamente unânime, tem imposto o
regime fechado inicial para o delito de roubo 21. O art. 33, 2º, "b",
do Código Penal, prescreve que o regime inicial seja o semi-aberto quando a
pena não ultrapasse oito anos, pois se o réu preenche os requisitos tem direito
subjetivo público ao regime menos rigoroso. É de se perguntar assim: será que
os prolatores dos acórdãos não cometem o crime de prevaricação? A resposta é
simples: fundamentando suas decisões não incidem na figura típica prevista no
art. 319 do CP pois não existe interesse ou sentimento pessoal, a não ser a
busca da justiça, nem mesmo ofensa a expressa disposição de lei.
Na
mesma linha, se for fixado o regime aberto, para o mesmo caso, também não
ocorrerá o crime de prevaricação, já que calcado no livre convencimento;
fundamentando sua decisão e, dando sua interpretação aos dispositivos
referentes a individualização da pena, o juiz está em típica atividade
jurisdicional 22.
Consigne-se,
além disso, que a individualização da pena é direito instrumentalizado em
garantia fundamental na Magna Carta, em seu art. 5º. O art. 33 do Código Penal
deve assim ser pensado em face da nova ordem constitucional 23 e, além disso,
não pode ser interpretado isoladamente frente ao próprio Código Penal. Veja, o art.
59, III, dispõe que o juiz observará as circunstâncias judiciais previstas no
caput no momento de fixação do regime inicial no cumprimento da pena privativa
de liberdade. Assim, a fixação do regime inicial aberto em pena superior a
quatro anos, embora defendida de forma minoritária, não rende ensejo a prática
criminosa.
Cada
juiz é livre para dar a mais adequada e justa interpretação à lei, de acordo
com seu livre convencimento, numa atividade tipicamente jurisdicional, estando
sua conduta amparada no próprio exercício de sua profissão. Logo, entendimento
contrário, é concluir que a busca da justiça frente ao caso concreto não
existe, sendo o juiz um robô na aplicação cega da lei. Aliás, se assim o for,
todos os magistrados, acredito, já praticaram o crime previsto no art. 319 do
Código Penal.
Notas
1.
Noronha, Magalhães. Direito Penal, Saraiva. 40 volume, 8ª ed., pg. 274.
2.
Hungria, Nelson. Comentários ao código Penal, Edição Revista Forense, 1958.
Vol. IX, pg. 376.
3.
Noronha, Magalhães. Ob. cit., pg. 275.
4. De
Faria, Bento. Código Penal Brasileiro, Record Editora, 1959, Vol. VII, pg. 110.
5.
Zaffaroni, Eúgenio Raút (let.ali.). Da tentativa, RT, 3ª ed., 1992, pg. 126.
6.
Franco, Alberto Silva (let.ali). Código Penal e sua interpretação jurisprudencial,
RT, 4ª ed., 1993, pg. 921.
7.
Temer, Michel. Elementos de Direito Constitucional, Malheiros, 9ª ed., 1992,
pg. 125).
8. De
Jesus, Damásio Evangelista. Direito Penal, Saraiva, 1988, 4º vol., pg. 144.
9. Welzel, Hans. Derecho Penal Aleman, 2ª Ed. Castelha-na, Editorial Juridica de Chile,
1976, pg. 95.
10.
Delmanto, Celso. Código Penal Comentado, Renovar, 3ª ed., 1991, pg. 483.
11. Welzel, Hans. Ob. cit.
12.
Fragoso, Heleno Claudio. Lições de Direito Penal, Forense, 7ª ed., 1985, pg.
179.
13.
Mirabete, Julio Fabbrini Manual de Direito Penal, Atlas, vol. l, 7ª ed., 1993,
pg. 135.
14. Pagés, Juan Luis Requejo. Jurisdicción e
Independencia judicial, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1989, p.
164.
15.
Noronha, Magalhães. Ob. cit., pg. 277.
16.
Noronha, Magalhães. Ob. cit., pg. 278.
17.
Partindo do modelo constitucionalista de atuação judicial, preconizando ai o
afastamento do modelo técnico-legalista, Luiz Flávio Somes ensina: "Uma
das afirmações mais reiteradas pelos positivistas-legalistas extremados, como
já vimos, consiste no seguinte: o juiz não é legislador. Efetivamente não é
legislador, mas tampouco cabe ser-lhe exclusiva e servilisticamente seu
porta-voz (la bouche de la loi). O mal mais terrível do positivismo-legalista
não está tanto na pregação da neutralidade política do juiz (que não existe,
senão na sua neutralidade ética (v. Tércio Sampaio Ferraz Jr., em Revista USF
p.15). A perda da sensibilidade ética é que transforma o juiz em autômato
aplicador da lei, sem nenhuma consideração com o valor justiça que deve nortear
suas decisões. Transmuda-o, em síntese, num eunuco ético (A dimensão da
magistratura, São Paulo, RT, 1997, pg. 160).
18.
Em estudo publicado na Revista Brasileira de Ciência Criminais (ano 3 - n.º 12
- outubro-dezembro - 1995) frisei que a Justiça Criminal, em um conceito lato,
vinha sofrendo influência do que se convencionou chamar Direito Penal do
Terror, provocando censura e postura retraída dos profissionais do direito. Já
na ocasião, defendendo a independência do juiz, lembrei que a coragem e a
vocação para o direito devem ser enfatizadas, pois não são com respostas
rigorosas que resolveremos problemas de criminalidade, muito menos exigindo uns
dos outros determinadas posturas apriorísticas. Agora que as nuvens (reformas
constitucionais apenas no interesse político, súmula vinculante, controle
externo) sobre a independência judicial aumentaram o enfoque desse estudo é
eminentemente a independência do magistrado na atividade jurisdicional.
19.
Criticando a agora pensada súmula vinculante (a meu ver outra forma de
cerceamento da independência judicial) Luiz Flávio Gomes manifesta-se pelo não
cabimento do controle interno, forma de impor decisões ao juízes de primeira
instância, sob pena de haver "um atentado inqualificável contra a
independência judicial, caso se castrasse o juiz na sua função de julgar
livremente a causa ..." (Ob. cit., pg. 192).
20. Cento Cultural General San Martín, Buenos Aires,
1991, p. 198.
21.
TJSP (Ap. ns. 167.440-3:193.145-31; FT 697/313 e 692/295; RJOTACRIM, Vol. 10,
pg. 119, Vol. 16, pgs. 141 e 145, Vol. 18, pg. 112.
22.
Mas não é a primeira vez que um juiz vê tolhida sua independência. O ministro
Evandro Lins e Silva (Jornal do Brasil, 16.6.96, pg. 9) relatou fato ocorrido
em 1896, quando o juiz Alcides de Mendonça Lima foi processado pelo crime de
prevaricação (magistrado delinqüente e faccioso) por ordem do governador. O
juiz, condenado, acabou nove meses fora do cargo. Rui Barbosa recorreu ao
Supremo Tribunal Federal e sustentou a existência de um novum crimen, o
"crime de hermenêutica". Defendeu a "autonomia intelectual do
juiz" para que não seja "um espelho inerte dos Tribunais";
"um parecer subalterno pode ter razão contra julgados supremos; um voto
individual contra muitos"; quando se constata um equívoco numa sentença,
"se além de sua reforma, procede-se contra o juiz, uma jurisprudência tal
negaria à consciência do juiz singular os direitos que reconhecesse, no seu
próprio seio, a todos os seus membros". O juiz acabou sendo absolvido,
mais pelo episódio e agora a frente dos novos instrumentos de controle (súmulas
vinculantes, inclusive com previsão de crime de responsabilidade - Emenda Jairo
Carneiro - controle externo), afirmou o Ministro Evandro Lins e Silva:
"revela que a tentativa de submeter os juizes à obediência, à submissão às
decisões dos tribunais superiores não é nova. Vem de longe, é um resíduo
castilhista dos começos da República".
23.
Muitos juizes têm defendido a tese do modelo constitucionalista de atuação
judicial a fim de se conter os abusos dos que detêm o poder de legislar (Luiz
Flávio Gomes, ob. cit., pgs. 150 e s.). A respeito, uma das conclusões do
Seminário de Juizes realizado em Buenos Ares (1991): "Os juizes devem
utilizar todas as possibilidades que subministram as constituições e os
tratados internacionais para aplicá-los com preferência às leis ordinárias que
em tantas ocasiões resultam conflitivas com aqueles, superando assim o
legalismo-positivista e a concepção de julgar como uma tarefa asséptica e
neutra descomprometida com a realidade social". No Brasil, aliás, esse
abuso do poder de legislar é claro: tivemos recentemente a Lei de Crimes
Hediondos, aprovada às pressas depois de seqüestro de um grande empresário. A
mesma Lei também passou a prever o homicídio qualificado no seu rol taxativo,
depois que uma atriz global foi vítima de homicídio. Condutas típicas definindo
crimes eleitorais são previstas a cada eleição no interesse do grupo político
dominante. Parece que ainda não esquecemos nosso passado de legislar em
interesse próprio, bastando para isso lembrarmos da Lei Fleury.
*Extraído
da Revista CIDADANIA E JUSTIÇA da Associação dos Magistrados Brasileiros, ano
2, nº 5, 2º semestre de 1998.
Retirado de: http://www.emap.com.br/doutrina_Art.Diversos31.htm
Palavras Chaves: crime prevaricação independência judicial delito objetividade jurídica sujeito tipo objetivo subjetivo