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A Transação Penal como
Ato da Denominada Jurisdição Voluntária
Rogério Pacheco Alves
1.
INTRODUÇÃO
O advento da Lei nº 9.099/95, que, dentre outras medidas, atendendo ao comando
constitucional (art. 98, I), instituiu e disciplinou os Juizados Especiais
Cíveis e Criminais, proporcionou imensa euforia, atraindo os novos institutos
despenalizadores não só as atenções dos operadores do direito mas, sobretudo,
as esperanças de que um "novo processo penal" se inaugurava a partir
daquele momento. E, induvidosamente, uma das maiores inovações trazidas pelo
referido diploma legal foi justamente a denominada transação penal, cujas
vantagens, entre várias, consistiriam na simplificação da resposta repressiva
e, sobretudo, na considerável diminuição do número de procedimentos a cargo do
juiz criminal, que finalmente poderia debruçar-se sobre a criminalidade de alta
lesividade social, sobre as condutas realmente graves.
A razão de ser do instituto ora analisado prende-se, intimamente, à adoção do princípio
da obrigatoriedade em nosso sistema. Como não se ignora, sempre se discutiu,
sobretudo em sede doutrinária, o alcance de tal princípio da ação penal
pública. Havendo indícios quanto à autoria e à existência do delito, presentes
as condições da ação e os pressupostos processuais, estaria o Promotor de
Justiça obrigado ao oferecimento de denúncia, sempre? Alguma mitigação seria
concebível nesta matéria? De forma inovadora, autores da estatura de Euclides
Custódio da Silveira e José Frederico Marques sempre advogaram, partindo da
redação adotada pelo art. 28 do Código de Processo Penal ("Art. 28. Se
órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o
arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz,
no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do
inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a
denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou
insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a
atender."), a possibilidade de o Parquet, por razões de política criminal
e sobretudo naquelas infrações "de bagatela", deixar de oferecer a
denúncia, atendendo, assim, aos fins sociais a que a lei se dirige e às exigências
do bem comum (art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil). Argumentava-se que
a base legal de tal entendimento repousava na imprecisa expressão "razões
invocadas" utilizada pelo legislador no sobredito art. 28. Nas palavras do
próprio Frederico Marques, "... não dizendo a lei processual que razões
são essas, nada impede que o Ministério Público invoque motivos de oportunidade
condizentes com o que exige o bem comum." (1)
A tese, no entanto, não sensibilizou a comunidade jurídica. Na criminalidade de
bagatela e naquelas hipóteses em que a prescrição retroativa já se mostrava
provável mesmo antes do oferecimento da denúncia - a chamada prescrição pela
pena ideal - preferiram os Tribunais, e a própria doutrina, trabalhar com
outros argumentos (atipicidade ou falta de interesse de agir), deixando
incólume o princípio da legalidade, consagrado pelo art. 24 da Lei de Ritos.
Tal quadro, hoje não temos nenhuma dúvida a esse respeito, sofreu drástica
alteração com o advento da Constituição Federal de 1988, cujo art. 98, ao
admitir a transação penal nas infrações de menor potencial ofensivo,
disponibilizou ao Ministério Público, mesmo naquelas hipóteses em que o
oferecimento da denúncia já se apresente possível, caminho despenalizador no
qual o consenso ganha extraordinário valor. Agora, possível será, presentes os
requisitos previstos na Lei nº 9.099/95 (parágrafo 2º do art. 76), que antes de
inaugurada a persecução criminal em juízo, se busque a satisfação da pretensão
sancionatória do Estado por caminho menos gravoso ao autor da conduta
criminosa, impondo-se-lhe penalidade pecuniária ou restritiva de direitos da
qual não resultarão os efeitos próprios da condenação criminal. Mitiga-se,
assim, o princípio da obrigatoriedade, até então inflexível, merecendo
destaque, a esse respeito, a lição, dentre outros (2), do Professor e
Procurador de Justiça aposentado Júlio Fabbrini Mirabete, in verbis:
"Essa iniciativa, decorrente do princípio da oportunidade da propositura
da ação penal, é hipótese de discricionariedade limitada, ou regrada, ou
regulada, cabendo ao Ministério Público a atuação discricionária de fazer a
proposta, nos casos em que a lei o permite, de exercitar o direito subjetivo de
punir do Estado com a aplicação de pena não privativa de liberdade nas
infrações penais de menor potencial ofensivo sem denúncia e instauração de
processo. Essa discricionariedade é atribuição pelo ordenamento jurídico de uma
margem de escolha ao Ministério Público, que poderá deixar de exigir a
prestação jurisdicional para a concretização do ius puniendi do estado.
Trata-se de opção válida por estar adequada à legalidade, no denominado espaço
de consenso, vinculado à pequena e média criminalidade, e não ao espaço de
conflito, referente à criminalidade grave." (ob.
cit., pág. 81) - g.n.
2.
BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A DISCIPLINA
LEGAL DA TRANSAÇÃO PENAL
O instituto da transação penal viu-se disciplinado pelo art. 76 da Lei nº
9.099/95, cuja redação é a seguinte:
"Art. 76 - Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal
pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público
poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a
ser especificada na proposta.
§ 1º
- Nas hipóteses de ser a pena de multa a única aplicável, o Juiz poderá
reduzi-la até a metade.
§ 2º
- Não se admitirá a proposta se ficar comprovado:
I -
ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa
de liberdade, por sentença definitiva;
II -
ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela
aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo;
III -
não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente,
bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção
da medida.
§ 3º
- Aceita a proposta pelo autor da infração e seu defensor, será submetida à
apreciação do Juiz.
§ 4º
- Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o
Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em
reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício
no prazo de cinco anos.
§ 5º
- Da sentença prevista no parágrafo anterior caberá a apelação referida no art.
82 desta Lei.
§ 6º
- A imposição da sanção de que trata o § 4º deste artigo não constará de
certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins previstos no mesmo
dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos interessados propor ação
cabível no juízo cível."
Pelo regramento da Lei, lavrado o termo circunstanciado pela Autoridade
Policial (art. 69), que deverá ser imediatamente encaminhado ao Juizado
Especial, o primeiro momento da fase pré-processual inicia-se com a audiência
preliminar de conciliação, prevista no art. 72, momento adequado tanto para a
eventual composição dos danos civis entre o autor do fato e a vítima, quanto
para a própria formulação e aceitação da proposta de transação penal. Esta
última, cabível unicamente em se tratando de ação penal de iniciativa pública
(3), consistirá na possível aplicação imediata de sanção pecuniária ou
restritiva de direitos, devidamente especificada pelo Parquet.
Na forma imposta pelo parágrafo 3º do dispositivo acima transcrito, o autor do
fato deve ser assistido por advogado ou defensor público, condição de validade
da transação penal. Aceita a proposição pelo autor do fato e seu advogado, que
poderão inclusive formular contra-propostas ao Parquet com o objetivo, por
exemplo, de diminuir a quantidade da pena pecuniária ou a duração e a forma de
cumprimento da sanção restritiva de direitos, o transacionado é submetido à
apreciação do Poder Judiciário (parágrafo 3º), a quem cabe a aplicação da
sanção (parágrafo 4º), se presentes os requisitos de que cuida o parágrafo 2º.
A homologação da transação, de acordo com a expressa dicção legal (parágrafo
4º), não importará na caracterização de reincidência nem constará de anotações
criminais (parágrafo 4º), registrando-se a aplicação da penalidade apenas com
vistas a impedir que o autor do fato, no período de 5 (cinco) anos, se veja
novamente alcançado pela medida benéfica.
Por último, da decisão que deixa de homologar a transação, ou daquela em que o
juiz aplica a sanção de forma absolutamente contrária ao entabulado entre o
autor do fato e o Ministério Público, cabe o recurso que a lei, no parágrafo 5º
do art. 76, denomina de apelação, irresignação que será apreciada pelas Turmas
Recursais do próprio Juizado Especial Criminal (art. 82).
De tal disciplina, sumariamente exposta, surgem algumas sérias indagações,
muitas das quais, concessa maxima venia, enfrentadas de forma artificial por
alguns. Dentre inúmeras, podemos destacar as seguintes: 1) utilizando-se a Lei
da expressão "pena" (art. 76, caput), qual a natureza jurídica da
decisão que aplica a medida sancionatória? tem ela natureza condenatória?; 2)
sendo condenatória, importaria a sua aceitação pelo autor do fato na
conseqüente aceitação de culpa (nulla poena sine culpa)?; 3) o procedimento
instituído para a aplicação da sanção penal observa os princípios reitores da
ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LV da C.F./88) ou, de forma mais
ampla, o próprio devido processo legal (art. 5º, LIV, da C.F./88)? Passemos ao
tema.
3.
O FENÔMENO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO PROCESSO: ANÁLISE DO INSTITUTO À LUZ DOS
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS.
O perfeito conhecimento de determinado ordenamento ou sistema jurídico, como
não se ignora, é tarefa intimamente ligada à precisa apreensão de seus
princípios reitores. São os princípios as regras gerais que, irradiando-se por
todo o sistema, conformarão, não só a atividade do aplicador do direito, mas
também, em momento logicamente anterior, a própria elaboração da norma
jurídica. Informam e conformam, inspiram e dão o preciso contorno,
constituindo-se nos "enunciados lógicos admitidos como condição ou base de
validade das demais asserções que compõem dado campo do saber." (04) E, no
campo da principiologia, o texto constitucional de 1988, seguindo a tendência
de todos os países democráticos e atento aos documentos internacionais, é
pródigo em consagrar um rol bastante diversificado, informativo dos mais
variados ramos do direito, sobretudo o processual penal.
Aliás, como de há muito constatado pela doutrina, talvez seja o Direito
Processual o que maiores reflexos receba do Direito Constitucional. Fala-se mesmo
na existência de um verdadeiro Direito Processual Constitucional, não como
disciplina cientificamente autônoma, mas, antes, como o campo do estudo
jurídico no qual torna-se possível a identificação das regras constitucionais
que informam a ciência processual.
O fenômeno da constitucionalização do processo não é novo. Na doutrina pátria,
conforme nos informa José Frederico Marques (5), os clássicos Paula Batista,
Pimenta Bueno e João Mendes Júnior já manifestavam clara percepção do fenômeno.
Entre os estrangeiros, Kelsen, Couture e Liebman. Resumindo tudo o que se pode
dizer sobre o tema, com a elegância de estilo que marca os seus escritos, e
ressaltando o papel de fonte material do processo exercido pela constituição,
afirma Frederico Marques que:
"A lei ordinária precisa moldar seus imperativos segundo as diretrizes
políticas da Lei Maior. Nos preceitos programáticos da Constituição, e em seu
substrato ideológico, deita raízes o Direito Processual para plasmar o seu
procedimento. Não é qualquer processo que pode ter esse nome, como lembra
COUTURE, mas tão-só aquele que em consonância com os dogmas da democracia e as
garantias aos direitos do homem, estruture as formas do juízo assegurando o
respeito às liberdades individuais e aos direitos proclamados pela
Constituição." (6)
Pois bem. O estudo do constitucionalismo universal demonstra que aquilo que
hoje a quase totalidade dos textos concebem como devido processo, leito no qual
vão repousar diversos outros princípios fundantes (v.g., ampla defesa e
contraditório, igualdade, publicidade, juiz natural, duplo grau de jurisdição,
presunção de não-culpabilidade etc), é fruto de lenta evolução política.
Concebido inicialmente pela Magna Carta de 1215 como imposição dos barões
feudais ao Rei João Sem Terra, foi encontrar no Direito Constitucional
Americano o seu mais espetacular desenvolvimento, findando por alcançar, não só
previsão expressa na Constituição daquele País (Emenda V - "Nenhuma pessoa
será obrigada a responder por um crime capital ou infamante, salvo por denúncia
ou pronúncia de um grande júri, exceto em se tratando de casos que, em tempo de
guerra ou de perigo público, corram nas forças terrestres ou navais, ou na
milícia, quando sem serviço ativo; nenhuma pessoa será, pelo mesmo crime,
submetida duas vezes a julgamento que possa causar-lhe a perda da vida ou de
algum membro; nem será obrigada a depor contra si própria em processo criminal
ou ser privada da vida, liberdade ou propriedade sem processo legal regular; a
propriedade privada não será desapropriada para uso público sem justa
indenização."), como também uma aplicação bastante ampla por parte da
Suprema Corte Americana, chegando alguns autores a afirmar que o hoje tão
invocado princípio da razoabilidade nada mais é do que a evolução do ancião due
process of law (7).
Embora, de acordo com o próprio texto constitucional, não tenha o referido
princípio incidência exclusivamente no campo do direito processual penal, é
induvidoso que é aqui que a necessidade do processo justo encontrará maior
campo de atuação, responsável que será pelo equilíbrio entre as antagônicas
pretensões de liberdade e de punição, aquela titularizada por todos os
indivíduos e esta pelo Estado. Funcionará o referido princípio, assim, como um
verdadeiro "certificado de qualidade" na imposição da pena, ritual
que o próprio Estado reconhece como necessário e justo. É neste sentido,
desenganadamente, que se fala no processso como verdadeira "necessidade jurídica"
(nulla poena sine iudicium).
Retornando ao questionamento a respeito da observância, ou não, do devido
processo legal por ocasião da transação penal, esboçada no último parágrafo do
tópico anterior, tem-se que o atual estágio da doutrina a esse respeito é de
incompreensível conformismo com a afirmação, a nosso ver errônea, de que a
medida despenalizadora em comento, fundando-se na autonomia da vontade e por
encontrar expressa previsão no texto constitucional, dispensaria a adoção do
"devido processo legal clássico", admitindo os autores de forma
surpreendentemente majoritária a aplicação de sanção penal sem o exercício do
contraditório amplo e sem o reconhecimento ou a assunção de culpa (nulla poena
sine culpa). Argumenta-se que ao prever a assistência de advogado teria o
legislador garantindo a ampla defesa e que o due process of law seria o
previsto na própria Lei nº 9.099/95, a qual, estabelecendo a necessidade de
homologação do acordo pelo Poder Judiciário, teria emprestado legitimidade ao
instituto.
Tal modo de interpretação da Lei demonstra imenso fascínio com os resultados
práticos da transação e do próprio Juizado Especial. Fala-se, então, na
desburocratização e celeridade da prestação jurisdicional, na democratização do
Poder Judiciário e na "deformalização" das controvérsias. Imagina-se
que com a instalação dos Juizados, um enorme número de feitos deixarão de
merecer a apreciação por parte dos juízes criminais, que poderão, enfim,
debruçar-se sobre casos mais graves e complexos. Ou seja, empresta-se à Lei,
utopicamente, o exagerado papel de causar uma revolução jamais vista no sistema
processual penal brasileiro, dando-se franca ênfase ao enfoque utilitarista dos
novos institutos.
Dos poucos que até hoje resolveram insurgir-se contra a opinião comum, vamos
encontrar no professor Miguel Reale Júnior um dos mais candentes críticos da
Lei. No trabalho intitulado "Pena sem Processo", publicado pela
editora Malheiros numa pequena coletânea de textos sobre os Juizados Especiais
(8), afirma o renomado jurista, sem rebuços, que ao afastar-se dos princípios
da ampla defesa e do contraditório e ao estabelecer a imposição de pena sem o
reconhecimento de culpa, teria o art. 76 incorrido no vício da
inconstitucionalidade. Pelo valor da argumentação e pretendendo ser fiel às
idéias do autor, pede-se vênia para transcrever um pequeno trecho do trabalho:
"Sem que haja opinio delict, e, portanto, inexigindo-se a existência de
convicção da viabilidade de propositura da ação penal, sem a fixação precisa de
uma acusação, sem elementos embasadores de legitimidade de movimentação da
jurisdição penal, e, portanto, sem legítimo interesse de agir, o promotor pode
propor um acordo pelo qual o autuado concorda em ser apenado sem processo. E,
diga-se, é um acordo tolo. Qual a vantagem de fazer este acordo? A vantagem
evidente é livrar a justiça penal de um processo. Mas para isso não era
necessário adotar-se a aplicação de pena sem processo. A cegueira jurídica
decorre do afã de se permitir a celeridade, alçada a valor supremo." (9)
Ou seja, em homenagem à tão sonhada celeridade processual, afastam-se regras
constitucionais, fruto de séculos de amadurecimento político, colocando-se o
valor justiça em segundo, quiçá terceiro plano.
O argumento de que a transação penal foi autorizada pela própria Constituição,
o que tornaria legítima a mitigação do devido processo legal, é evidentemente
artificial. A esse respeito, é de se indagar, como o faz o referido Professor Reale,
se a mesma Constituição, que consagra os direitos individuais como cláusulas
pétreas (art. 60, parágrafo 4º, IV), só pelo fato de ter admitido a transação
penal nas chamadas infrações penais de menor potencial ofensivo, estaria
permitindo o afastamento das garantias da ampla defesa e do contraditório.
Daqui, surgiria uma outra necessária pergunta: os direitos individuais não
podem sofrer limitações por parte da própria Constituição? É evidente que sim.
Só que, como facilmente se depreende, quando o legislador constituinte desejou
mitigar ou excepcionar direitos ou garantias individuais, ele o fez de forma
expressa: O direito à vida sofreu restrições no art. 5º, XLVII, a, que admitiu
a pena de morte em tempo de guerra; também o direito à liberdade, ao
possibilitar o legislador a sua restrição através de medidas cautelares (art.
5º, LXI), inclusive vedando a liberdade provisória em algumas hipóteses (art.
5º, XLIII); igualmente, o direito à intimidade e à vida privada sofreu poderosa
mitigação através da admissibilidade de interceptação das conversações
telefônicas (art. 5º, XII); idem, quanto ao sigilo de correspondência e ao
direito de reunião durante o estado de defesa (art. 136, parágrafo 1º, I);
também a propriedade, que pode ser desapropriada por necessidade pública ou
interesse social (art. 5º, XXIV) etc.
Um outro aspecto merece ser considerado. Da forma como a doutrina vencedora vem
interpretando o instituto, importa a transação penal na imposição de sanção
penal sem o reconhecimento de culpa pelo autor do fato, circunstância que viola
flagrantemente a regra inafastável do nulla poena sine culpa, alçada, entre
nós, a status constitucional (art. 5º, LVII). Recorreremos, mais uma vez, às
mordazes críticas do autor já tantas vezes citado:
"O direito à não consideração prévia de culpabilidade, incisivamente
inscrito na Declaração dos Direitos do Homem da Organização das Nações Unidas
de 1948, está consagrado em nossa Constituição e exige, para ser respeitado,
que a imposição de pena tão-só decorra de sentença na qual se reconheça a
culpabilidade, em decisão motivada. Ora, com estes dados absolutamente fluidos,
inseguros, mesquinhos, que se apresentam ao promotor pelo auto circunstanciado,
autoriza-se propor ao réu, no calor do fato, uma transação, na qual ele
transaciona com a sua liberdade." (10)
Funcionando a culpa penal como verdadeira condição sine qua non e também como
parâmetro ao próprio dimensionamento da sanção (arts. 29 e 59 do Código Penal),
não seria lógico nem jurídico que se admitisse que, com relação às infrações
mais graves, o binômio culpa-pena ganhasse integral aplicação e, no campo das
infrações penais de menor lesividade social, por razões meramente
utilitaristas, restasse afastado o princípio do nulla poena sine culpa. O
retrocesso seria inegável, dando margem a que, no futuro, outras zonas de
criminalidade também fossem encontrar fundamentos outros para a aplicação da
sanção criminal.
Também não convence a argumentação no sentido de que a autonomia da vontade, um
dos pilares do direito privado, legitimaria a desnecessidade do reconhecimento
de culpa. Aqui, pela precisão da abordagem, merece destaque a observação do
Professor David Teixeira de Azevedo, in verbis:
"Traz-se em apoio o princípio da autonomia da vontade. Perde-se, contudo,
de vista ser da essência de um direito fundamental sua irrenunciabilidade. Ora,
como acentuou acertadamente no painel promovido pelo Instituto Manoel Pedro
Pimentel o Prof. Miguel Reale Júnior, se o princípio da autonomia da vontade
cede em face de setores normativos e regulamentares da vida social, como, por
exemplo, a relação de consumo, o direito obrigacional, em que deve preservar-se
a base econômica do contrato e a equivalência contratual, não há porque
prevalecer diante dos direitos e garantias individuais. A bem ver, a
Constituição como núcleo de princípios, fundantes do Estado e asseguradores dos
direitos e garantias individuais e sociais, não pode tolerar a tamanha
contradição que é, em nome da dita autonomia - que lança profundas raízes no
princípio da legalidade -, relevarem-se direitos de qualidade, natureza e
status de fundamentais, porque ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de
fazer qualquer coisa senão em virtude de lei. Não se cuida de renunciar uma faculdade
ou prerrogativa atribuída por lei, mas se trata da possibilidade de abrir-se
mão de um rol de direitos, imantados em princípios constitucionais, cujo
interesse não é particular deste ou daquele membro da comunhão, mas sustenta o
próprio Estado democrático." (11) - os grifos são nossos.
Ou seja, estaria a Lei nº 9.099/95 na contramão do direito privado, onde cada
vez mais a autonomia da vontade vem perdendo terreno?
4.
DA NATUREZA JURÍDICA DA TRANSAÇÃO PENAL
Nos estudos a respeito da atuação jurisdicional do Estado, ganha força,
atualmente, a assertiva de que é a pretensão, entendida como a exigência de
subordinação do interesse alheio ao próprio, a nota característica e essencial
do processo e, por conseguinte, da própria atividade jurisdicional. Afrânio
Silva Jardim, pondo luz sobre o tema, afirma que "Rigorosamente, o que se
torna indispensável à existência do processo é a pretensão do autor manifestada
em juízo, exteriorizada pelo pedido e delimitada pela causa de pedir ou imputação."
(12) Neste enfoque, de nenhuma relevância a efetiva existência de conflito de
interesses entre as partes, de lide, visto que, não raro, o réu confessa
irrestritamente os fatos narrados pelo acusador e não se haverá de falar, por
tal motivo, na inexistência de processo. Em resumo e como conseqüência
intuitiva: só haverá atividade jurisdicional onde houver pretensão veiculada
pelo legitimado.
E, justamente esta última assertiva, somada às considerações a respeito da
análise do instituto da transação à luz dos princípios constitucionais, é que
nos capacita a afirmar que a transação penal não apresenta as características
básicas da atividade jurisdicional, visto que, por seu intermédio, sob pena de
violação de todo o sistema constitucional, não veicula o Estado qualquer
pretensão punitiva. Esta última, para ver-se satisfeita, exige a estrita
obediência ao devido processo legal, que encontrará no reconhecimento da culpa
a base para a imposição da sanção (nulla poena sine culpa).
A esta altura, uma indagação: se a transação penal viola os princípios
constitucionais acima apontados, o único resultado interpretativo a que se pode
chegar a respeito do art. 76 da Lei nº 9.099/95 é o da sua
inconstitucionalidade? A resposta seria positiva numa perspectiva
jurisdicional. Do contrário, a análise do instituto sob o enfoque não
jurisdicional nos conduz a resultado diverso. Qual, afinal, a natureza jurídica
da transação?
Como não se ignora, sem prejuízo à célebre teoria da tripartição dos poderes do
Estado (rectius: funções legislativa, jurisdicional e administrativa)
concebida, dentre outros, por Montesquieu, as especulações levadas a cabo pela
Ciência Política demonstram que a referida divisão, hoje, obedece muito mais a
critérios de preponderância do que de exclusividade. É dizer, também o
Judiciário, anomalamente, administra e estabelece normas gerais e abstratas
(v.g., os regimentos internos dos tribunais); o legislativo julga (art. 52, I e
II, da C.F./88) e administra; o Executivo, igualmente, legisla sob o ponto de
vista material e aplica a lei abstrata à solução de conflitos de interesses por
intermédio dos procedimentos administrativos. De comum entre as três funções
tem-se a circunstância de que todas elas emanam da própria soberania enfeixada
pelo Estado. A distingui-las, diversos traços que a doutrina, hoje, consegue
apontar de forma relativamente tranqüila.
Passsando objetivamente ao ponto que nos interessa, e sem nos olvidarmos de que
é o poder de, imperativa e definitivamente, solucionar os conflitos surgidos no
meio social a marca mais característica da atividade jurisdicional, merece
destaque a assertiva no sentido de que "A jurisdição é uma das funções da
magistratura, mas que outras existem, a ela afetas, a que se deve dar a
denominação de funções judiciárias. Atribuição jurisdicional e atribuição
judiciária são, assim, espécies diversas da atividade funcional que exerce o
Poder Judiciário: aquela é função principal e a que o distingue dos demais
poderes, no plano material; a última pode ser secundária ou anômala, e só no
plano subjetivo ou orgânico se diversifica das que tocam ao legislativo e ao
executivo." (13).
Exemplos eloqüentes dos chamados atos judiciários em sentido estrito, no
processo penal, vamos encontrar na atuação do juiz durante o inquérito (v.g.,
arts. 10, parágrafo 3º, e 23 do C.P.P, muito embora seja duvidosa a recepção de
tais dispositivos pelo atual texto constitucional - art. 129, I) e, sobretudo,
no controle estabelecido no art. 28 do Código de Processo Penal. Também a
jurisdição voluntária representa precioso exemplo do que aqui se afirma e a
ela, especificamente, dedicaremos, a partir de agora, a nossa atenção.
Após discorrer longamente sobre as diversas teorias nacionais e estrangeiras
sobre o tema, esmerando-se em distinguir e correlacionar as funções
soberanamente exercidas pelo Estado e, em especial, pelo Poder Judiciário, o
Professor Frederico Marques apresenta as seguintes características da
jurisdição voluntária (14):
1)
natureza administrativa, do ponto de vista material, e ato judiciário, do ponto
de vista subjetivo;
2) função preventiva;
3) natureza constitutiva.
Noutra passagem, enfrentando a tormentosa distinção entre atividade
jurisdicional e a jurisdição voluntária, afirma o mesmo autor que:
"Os traços funcionais de cada um dessas atividades, inconfundíveis e
heterogêneos, aparecem, no tocante à jurisdição voluntária, com os seguintes
caracteres: antes de mais nada, é atividade resultante de negócio jurídico em
que se exige um ato do Estado, para que o negócio se realize ou complete. Como
conseqüência, a atuação estatal é aí substancialmente constitutiva, devendo
acrescentar-se que a lei a exige com o fim de prevenir lesões ou lides futuras,
como bem salienta CARNELUTTI." (15) - g.n.
Modernamente, após demonstrar, como acima destacado, que a nota característica
do processo é a pretensão e não, como classicamente sempre se afirmou, a lide,
afirma Afrânio Silva Jardim, in verbis:
"Ademais, com este posicionamento teórico sobre a pretensão, julgamos
resolver, ao menos em parte, a tormentosa questão de bem delimitar a chamada
jurisdição voluntária. Se a base indispensável do processo não é mais o
conflito de interesses ou lide, a sua detectação, por vezes altamente
controvertida, passa a ser absolutamente despicienda. Só será procedimento de
jurisdição voluntária aquele que não contiver uma pretensão. Em outras
palavras, não havendo de um sujeito de direito a exigência que seu determinado
interesse se sobreponha em face de outro, não temos processo, mas tão-somente
jurisdição voluntária." (16)
E é justamente baseados nesta última assertiva que podemos afirmar que a
transação penal não apresenta senão as características de um procedimento de
jurisdição voluntária, pois, aqui, ao contrário do que ocorre na jurisdição
contenciosa criminal, não exige o Estado a subordinação da liberdade ao seu
interesse punitivo (pretensão punitiva). É dizer, da transação penal não pode
resultar, ao menos que se violem a máxima do nulla poena sine culpa e os
princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, qualquer
modalidade de sanção criminal.
Retornando às características da chamada jurisdição voluntária, numa análise
comparativa com as da jurisdição contenciosa (veiculação de uma pretensão,
existência de um litígio, substitutividade da atuação do juiz, produção de
coisa julgada, existência de uma relação processual), têm-se as seguintes (17)
:
1)
Existência de um negócio jurídico, a cujo respeito a lei prevê a participação
integrativa (não-substitutiva) do juiz;
2) Inexistência de lide, ou, para alguns, inexistência de pretensão, entendida
esta como a exigência de subordinação do interesse alheio ao próprio;
3) inexistem partes;
4) a existência de mero procedimento;
5) Não-incidência dos efeitos da coisa julgada.
Ora, bem analisada a transação penal, numa postura interpretativa
"conforme a constituição", chega-se à conclusão de que ela preenche
todas as características da jurisdição voluntária, acima apontadas. Senão
vejamos:
a) Na transação penal, não se tem nada além de verdadeiro negócio jurídico
bilateral entre o autor do fato e o Parquet (18), mediante o qual o Estado abre
mão, desde que cumprido o transacionado, do exercício da pretensão punitiva
abstratamente prevista no tipo penal, o que é benéfico ao autor da conduta. Em
contraposição, este último aceita a imposição imediata de uma sanção
administrativa (multa ou restrição de direitos), circunstância que satisfaz
plenamente aos interesses preventivos e pacificadores do Estado;
b) Tal negócio jurídico tem a sua validade condicionada à chancela judicial
(art. 76, parágrafo 3º), já se vendo que a atuação do Magistrado é meramente
integrativa;
c) Não há a veiculação de qualquer pretensão punitiva por parte do Estado,
visto que da transação não pode resultar sanção penal. Se não há pretensão, não
há que se falar em jurisdição;
d) Não há partes no sentido estrito, usando o legislador da correta expressão
"autor do fato" e não "réu". Também não haverá qualquer
conflito de interesse, visto que a medida administrativa imposta é fruto do
chamado "espaço de consenso";
e) Também não há que se falar em relação processual, mas, antes, na existência
de mero procedimento de índole voluntária; (19)
f)Por último, não há a imutabilidade própria da atividade jurisdicional em
virtude de ser a transação penal um momento pré-processual, de natureza
administrativa, que antecede a imputação.
De pronto, deve-se rechaçar o aparente óbice à aceitação da tese em virtude de
ser a jurisdição voluntária verdadeira "administração pública de interesses
privados". A esse respeito, conforme nos informa Frederico Marques,
"CRISTOFOLINI, ao tratar da jurisdição voluntária, manifestou a opinião de
que a tutela administrativa pode também recair sôbre interesses públicos, pois
nem sempre (embora na maioria das vêzes assim não aconteça) os direitos
individuais tutelados pela administração, na jurisdição voluntária, têm caráter
privado. É o que acontece entre nós, nos casos de naturalização, onde a
jurisdição voluntária se exerce em função de um direito subjetivo eminentemente
público, qual seja a aquisição da cidadania brasileira (infra: parágrafo 28, nº
16)" (20)
Também não representa qualquer óbice o fato de se ter o legislador utilizado,
no caput e parágrafos do art. 76, da expressão "pena" (restritiva de
direitos ou multa). Aqui, basta que se interprete o referido termo no sentido
de "sanção" (restritiva de direito e pecuniária), devendo ser
ressaltado que, ontologicamente, nenhuma distinção há entre as sanções criminal
e administrativa (21).
Da mesma forma, não impressiona o ter o legislador denominado de
"sentença" a decisão que aplica a medida, até porque, já de muito, o
Código de Processo Penal chama de "sentença" a pronúncia (art. 408, parágrafo
1º), sabendo-se que a natureza de tal decisão é a de verdadeira interlocutória.
(22). O mesmo se diga com relação à previsão de um recurso (parágrafo 5º do
art. 76) a ser julgado pelas Turmas Recursais, que em nada altera a natureza
graciosa do instituto. A esse respeito, novamente nos esclarece o Professor
Frederico Marques no sentido de que:
"Não nos parece acertada a afirmativa de CHIOVENDA de que, se o ato do
juiz fôr impugnado, a jurisdição voluntária se transformará em contenciosa. Se
a impugnação consistir em recurso a órgãos judiciários de categoria superior,
haverá tão-sòmente um prolongamento da jurisdição voluntária ao tribunal
encarregado de conhecer do recurso. Os órgãos judiciários de grau superior
desenvolvem função inteiramente idêntica à do juiz inferior e, dessa forma,
exercerão uma atividade de jurisdição voluntária em conseqüência da devolução à
instância do conhecimento integral da questão." (23)
É também importante ressaltar que o ponto de vista aqui sustentado, vale dizer,
a compatibilidade entre a jurisdição voluntária e o processo penal, não
constitui nenhuma novidade, nem tampouco passou despercebido da análise, embora
sob outros enfoques, de nossa melhor doutrina. (24)
Diga-se, outrossim, que a própria Lei nº 9.099/95, tratando dos Juizados
Especiais Cíveis, serviu-se da jurisdição voluntária como forma de alcançar a
conciliação entre os interessados, ao estabelecer no art. 57: "Art. 57. O
acordo extrajudicial, de qualquer natureza ou valor, poderá ser homologado, no
juízo competente, independentemente de termo, valendo a sentença como título
executivo judicial.". A diferença fundamental é que, ao contrário do que
ocorre na seara cível, a homologação da transação penal não dará nascimento a
um título executivo, até porque, descumprido o acordo administrativo, ressurge,
às inteiras, o caminho clássico do processo penal, único legitimado à aplicação
da sanção penal. (25)
5.
CONCLUSÃO: OS RESULTADOS DA ACEITAÇÃO DA TESE
Ao longo do desenvolvimento da tese ora sugerida, vimos nos questionando a
respeito das conseqüências concretas da aceitação da transação como um momento
não jurisdicional, do qual decorre uma sanção administrativa, convencidos de
que as elucubrações teóricas devem encontrar na possibilidade de aplicação
prática o seu coroamento. E, neste ponto, estamos certos de que os resultados
da tese alcançam e representam todos os objetivos perseguidos pela Carta
Política de 1988, ao prever a possibilidade de transação nas hipóteses de
infrações penais de menor potencial ofensivo (art. 98, I). Vamos a eles.
O primeiro relevantíssimo resultado - relevantíssimo sobretudo num momento em
que a importância das regras constitucionais finalmente vem sendo reconhecida
em nosso País - é a de se chegar a um resultado interpretativo através do qual
se preservam os postulados básicos adotados pela Constituição e, ao mesmo
tempo, se confere validade ao texto infraconstitucional. Conquanto acertadas as
críticas de que nos valemos tantas vezes no presente trabalho, sobretudo as
referente à violação dos princípios do devido processo legal e do nulla poena
sine culpa, o certo é que todas elas, enfocando o instituto sob uma perspectiva
jurisdicional, conduzem ao radicalismo da inconstitucionalidade. E tal
resultado afasta-se dos postulados da "interpretação conforme a
constituição", o que só se obtém quando se parte da premissa segundo a
qual, se uma determinada norma admite duas ou mais interpretações, deve-se
prestigiar aquela que a compatibilize com o texto constitucional (26).
A esse respeito, insta acentuar que a aceitação do instituto sob um enfoque não
jurisdicional nos permite reconhecer a plena compatibilidade entre a disciplina
imprimida pelo legislador (art. 76) e os princípios constitucionais. É dizer,
se da transação, assim concebida, não decorre senão uma sanção de cunho
administrativo, o procedimento traçado na Lei (sucinta descrição do fato no
termo circunstanciado, audiência preliminar de conciliação na qual deve estar
presente o advogado, homologação judicial do acordo, em que serão analisados os
requisitos legais, possibilidade de impugnação da decisão que aplica a sanção
etc) atende plenamente ao "devido processo legal voluntário". Aqui,
sim , possível será o reconhecimento de um "devido processo legal
mitigado", "não-clássico". Socorre-nos, mais uma vez, o
Professor Frederico Marques quando sustenta, com acerto, que:
"Na jurisdição voluntária, não há lide, e sim um negócio jurídico que
depende de um ato administrativo que o complete e integre. Desta maneira, é
evidente que o juiz não precisa desenvolver sua atividade vinculado às formas
processuais, porquanto não há litígio que exija aquelas garantias que são
inerentes ao processo e que dêste são inseparáveis, como, por exemplo, as que
decorrem do princípio do contraditório. No procedimento voluntário, o que há
são formas destinadas à melhor realização da atividade público-administrativa
pelo juiz. Os atos que se sucedem nesse procedimento não se acham disciplinados
com o mesmo formalismo da relação processual pois, aí, a forma não tem aquêle
caráter indeclinável que se imprime a certos atos processuais." (27)
Em resumo, chega-se a resultado inteiramente compatível com o sistema,
trabalhando-se com uma categoria jurídica bastante conhecida.
Também merece ser dito que todos os objetivos que tanto fascinam os
comentaristas da Lei, vale dizer, a não-imposição de pena privativa de
liberdade, a rápida solução e "deformalização" das controvérsias, a
revitalização das vias conciliatórias, a desburocratização e o
"desafogamento" do Poder Judiciário, são igualmente alcançados, só
que de modo a reduzir tais escopos utilitaristas ao seu campo próprio, o da
seara administrativa da jurisdição voluntária.
Por outro lado, a tormentosa questão a respeito das conseqüências do
descumprimento da transação vai encontrar fácil solução no enfoque não
jurisdicional, uma vez que, não se estando diante de uma sentença condenatória
nem tampouco do instituto da coisa julgada (28), o único caminho possível à
aplicação da sanção penal será o do processo, inaugurado pela denúncia. A
execução da "pena" torna-se impossível por violação das regras
constitucionais já tantas vezes apontadas, acarretando o descumprimento do
transacionado o exercício da pretensão punitiva, até então suspensa. Tal
solução, inclusive, empresta seriedade ao acordo firmado, acentuando a
importância do chamado "espaço de consenso".
Ademais, a transação penal, assim concebida, afina-se com a tendência atual na
busca de soluções diferentes das oferecidas pelo Direito Criminal à chamada
criminalidade de menor potencial ofensivo (29). Com efeito, as respostas
sancionatórias até então concebidas vêm-se mostrando extremamente ineficazes,
sendo raro, extremamente raro, que a criminalidade menor mereça a intervenção
jurídica do Estado, o que acarreta a sensação de impunidade e o próprio aumento
da criminalidade. Só que, neste passo, ao invés de escolher o caminho da
"descriminalização" ou só o do direito administrativo penal, preferiu
o legislador brasileiro, precipuamente, a via processual, concebendo, como bem
percebido por Afrânio Silva Jardim, uma "engenharia" diferente (30).
Antes da veiculação da pretensão punitiva pelo caminho clássico do processo,
com as bençãos da própria Constituição (art. 98, I), erigiu-se uma via
alternativa e anterior, de índole administrativa, na qual, se alcançado o
consenso, atingem-se, a um só tempo, tanto a pacificação social quanto a
prevenção perseguida por todo e qualquer preceito sancionatório. E é isso,
afinal, o que se busca, pouco importando para o Estado qual deva ser o caminho
por ele trilhado para alcançar tais objetivos, até porque, como modernamente se
reconhece, não há diferenças ontológicas entre a sanção penal e administrativa
(31). O que se alteram, profundamente, são o iter a ser seguido nas duas
hipóteses, sendo o processo penal naturalmente mais "degradante", e a
drasticidade decorrente da própria sanção penal, representada pela possível
privação da liberdade, além dos seus efeitos sociais bem mais deletérios. Por
conseguinte, somente se frustrada a via pré-processual pela discordância
manifestada pelo autor do fato ou mesmo pelo descumprimento da transação,
surgirá, com todas as suas peculiaridades, inclusive garantistas, o caminho verdadeiramente
jurisdicional, do qual, só então, poderá advir a aplicação da sanção penal.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
(1)Estudos de Direito Processual Penal, ed. Forense, 1ª
edição, pág. 106;
(2) Damásio E. de Jesus, Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada, ed.
Saraiva, 1997, pág. 76; Marino Pazzaglino Filho et alii, Juizado Especial
Criminal, ed. Atlas, 1997, pág. 47; Ada Pellegrini Grinover et alii, Juizados
Especiais Criminais, ed. RT, 1996, pág. 18; Júlio Fabbrini Mirabete, Juizados
Especiais Criminais, ed. Atlas, 1997, pág. 81;
(3) No sentido do texto: Damásio E. de Jesus, ob. cit., pág. 78; Marino
Pazzaglini Filho et alii, ob. cit., pág. 58; Júlio Fabbrini Mirabete, ob. cit.,
pág. 84;
(4) Miguel Reale Júnior, Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 1988, pág.
299;
(5) José Frederico Marques, Ensaio sobre a Jurisdição Voluntária, ed. Saraiva,
1959, pág. 17 e segs.;
(6) Ob. cit., pág. 27;
(7) Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, O Processo Penal em Face da
Constituição, ed. Forense, 1998, págs. 69/77;
(8) Juizados Especiais Criminais - Interpretação e Crítica, ed. Malheiros,
1997, obra organizada por Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo;
(9) Ob. cit., pág. 28;
(10) Ob. cit., págs. 27/28;
(11) A Culpa Penal e a Lei 9.099/95, RT nº 747, pág. 458;
(12) Direito Processual Penal, Forense, 4a edição, pág. 240;
(13) Ob. cit., pág. 36;
(14) Idem, pág. 220;
(15) Idem, pág. 72;
(16) Ob. cit., pág. 241;
(17) Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, Digesto de Processo, Forense, 1985,
vol. 3, pág. 314;
(18) Aplicável, neste passo, a lição de Tornaghi: "Haverá negócio jurídico
processual toda vez que a produção de efeito processual depender da intenção de
qualquer das pessoas que intervêm no processo. Na manifestação da vontade
dirigida para determinado fim (intenção) consiste o negócio. É mediante
negócios jurídicos que os sujeitos processuais exercem suas faculdades
dispositivas. Algumas vezes por um negócio unilateral, v.g., a renúncia; outras
por um negócio bilateral, por exemplo, o perdão." (Instituições de
Processo Penal, Saraiva, 1977, pág.26/27);
(19) Especificamente sobre este ponto, observa David Teixeira de Azevedo:
"Argumenta-se existir processo. Compreende-se tão ampliada quanto
especiosamente o conceito de processo, a ponto de admitir que o simples
comparecimento em juízo, em virtude de um auto circunstanciado lavrado na
Delegacia de Polícia, significa, por si só, a existência de processo, a
instauração de uma relação processual. Nem mesmo as teorias que divergem quanto
ao momento de nascimento do processo e da relação processual chegam a ponto de
afirmar, nessas circunstâncias, a existência verdadeira e genuína de um
processo. Há de existir ao menos uma acusação formal e um liame entre as partes
e o juízo. Ora, a ausência de acusação formal, mas a única existência de um
auto circunstanciado que poderá até mesmo vir desacompanhado de prova
documental, ou se tanto de prova da materialidade da infração, nunca
corporificará uma relação processual nem subsistirá como processo." , ob.
cit., pág. 459;
(20) José Frederico Marques, ob. cit., pág. 79;
(21) Sustentando que a distinção entre sanções penais e administrativas é
meramente quantitativa, vide José Cerezo Mir, "Sanções Penais e
Administrativas no Direito Espanhol" in Revista Brasileira de Ciências
Criminais, vol. 02, págs. 27/40;
(22) O inteligente argumento é de Paulo Rangel in Direito Processual Penal, ed.
Lumen Juris, 1999, pág. 149;
(23) Ob. cit., pág. 230/231;
(24) Neste sentido: Sérgio Demoro Hamilton, Vestígios da Jurisdição Voluntária
no Processo Penal, in Temas de Processo Penal, ed. Lumen Juris, 1ª
ed., págs. 65/70, apontando
as hipóteses previstas nos arts. 33, 35 e 53 do Código de Processo Penal;
(25) Sustentando que a atuação do juiz na hipótese do art. 57 da Lei nº 9.099/95
tem a natureza de jurisdição voluntária: Luiz Fux, Juizados Especiais Cíveis e
Criminais e Suspensão Condicional do Processo, Forense, 1996, pág. 219;
(26) ADIMC nº 1344/ES, Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, Pleno do S.T.F.;
Especificamente sobre a declaração de inconstitucionalidade sem redução de
texto, além do acórdão antes referido, vide: RE 184093/SP, 1ª Turma, Rel. Min.
Moreira Alves; ADIMC 1620/DF, Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; ADIMC
1600/UF, Pleno, Rel. Sydney Sanches;
(27) Ob. cit., pág. 229/230. No mesmo sentido, Afrânio Silva Jardim: " O
Direito Administrativo não se submete ao controle jurisdicional a que o Direito
Penal e o Direito Processual Penal se submetem, os quais, principalmente em
face da constituição, outorgam importantes garantias. O Princípio nulla poena
sine judicio é um princípio ligado ao Direito processual por ser instrumento de
aplicação do Direito Penal. Na medida em que o Direito Penal descriminaliza e
deixa para outro ramos do Direito a persecução daquela conduta, porque continua
desvalorada, abrimos mão de garantias constitucionais do Direito Processual
Penal. De modo que, de repente, a descriminalização pode endurecer mais o
sistema do que, como pensam os liberais, levar a uma solução mais justa, mais
social para essas questões." (Ob. cit., pág. 348);
(28) Art. 1.111 do Código de Processo Civil: "A sentença poderá ser
modificada, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, se ocorrerem circunstâncias
supervenientes."
(29) Sobre o assunto, merece expressa referência a observação de Wilfried
Hassemer quanto à necessidade de concepção de "... um novo campo do
direito que não aplique as pesadas sanções do Direito Penal, sobretudo as
sanções de privação da liberdade e que, ao mesmo tempo possa ter garantias
menores.", esclarecendo que "Esse novo campo do direito estaria
localizado entre o Direito Penal, Direito Administrativo, entre os direito dos
atos ilícitos no campo do Direito Civil, entre o campo do Direito Fiscal e
utilizaria determinados elementos que o fariam eficiente"("Perspectivas
de uma Moderna Política Criminal" in Revista Brasileira de Ciências
Criminais, vol. 02, págs. 41/51). Sobre a experiência portuguesa nessa matéria,
vide Jorge de Figueiredo Dias, "Do Direito Penal Administrativo ao Direito
de Mera Ordenação Social: Das Contravenções às Contra-Ordenações" in
Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas, RT, 1999, págs. 162/184;
Finalmente, sobre o tratamento administrativo conferido às contravenções em
Cuba, vide Angela Gomez Perez, "Las Contravenciones y su Tratamiento
Juridico en Cuba en la Etapa Actual" in Revista Brasileira de Ciências
Criminais, vol. 23, págs.131/136;
(30) "Essa lei tem uma engenharia, vamos dizer assim, importante. Ao invés
de optar pela descriminalização, atendendo ao chamado Princípio da Intervenção
Mínima do Direito Penal, Direito Penal Mínimo, optou pela descriminalização de
forma indireta, através do processo. Seria mais ou menos o seguinte: já que o
Direito Penal não teve a ousadia de descriminalizar, o Direito Processual
Penal, por vias indiretas, para essas infrações de pequena monta, através de
determinados institutos, visa à despenalização." (Direito Processual
Penal, ed. Forense, 1999, pág. 348);
(31) Idem, nota nº 21, supra.
Retirado
de: http://www.amperj.org.br/port/temas.htm
Palavras chaves: transação penal jurisdição voluntária disciplina legal princípios constitucionais natureza jurídica