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A imparcialidade do juiz e seus poderes assistenciais no processo

Marcus Orione Gonçalves Correia

RESUMO

Discute a imparcialidade do juiz diante da necessidade de sua atuação em favor da parte em posição mais desfavorável na relação jurídico-processual.

Inicia com a análise da dinamicidade da relação processual e da definição dos poderes assistenciais do juiz no processo.

Constatado que, em diversas situações, uma das partes encontra-se em situação mais vantajosa no processo, analisa a possibilidade de interferência do juiz, a fim de que seja restaurada a paridade das armas.

Conclui que a atuação assistencial do juiz não representa qualquer mácula ao princípio da imparcialidade, sendo, pelo contrário, importante fator para a sua consagração de forma plena no Direito Processual Civil moderno.

 

 

 

A doutrina mais moderna vem enfrentando tormentoso tema, do qual não devemos nos afastar de discutir sob a singela escusa de que a matéria suscita dúvidas e controvérsias, encontrando-se ainda no mero plano das especulações.

Trata-se da análise da equação envolvendo a atuação assistencial do juiz na condução do processo e os limites impostos pelo princípio processual da imparcialidade.

Para o estudo da questão, há de se colocar uma premissa necessária ao desenvolvimento do tema. Assim, há de se proceder à constatação, já consolidada pelo tempo, de que o processo, quanto à sua natureza, é uma relação jurídica.

Destarte, é inegável que o Estado e as partes estão, no processo, interligados por uma série muito grande e significativa de liames jurídicos, sendo titulares de situações jurídicas em virtude das quais se exige de cada um deles a prática de certos atos do procedimento ou lhes permite o ordenamento jurídico essa prática; e a relação jurídica é exatamente o nexo que liga dois ou mais sujeitos, atribuindo-lhes poderes, direitos, faculdades, e os correspondentes deveres, obrigações, sujeições, ônus1.

Encontramo-nos, pois, diante de uma relação jurídica de extrema complexidade, decorrente especialmente do fato de que há uma mutabilidade nas posições dos sujeitos, segundo os diversos atos processuais (o que, aliás, somente se dá em virtude de o processo tender a uma prestação final, a sentença, diferida no tempo).

Destarte, por exemplo, momentos o juiz – um dos sujeitos dessa relação – tem deveres (como o de prestar a tutela jurisdicional ou de zelar pela "urbanidade" no processo), instantes tem poderes (como o poder de polícia em audiência). A mesma variabilidade de posições, frente à relação jurídica instaurada, dá-se com os demais sujeitos do processo.

Tecidas essas considerações preliminares, indaga-se, diante da premissa posta: existe, nessa relação, o poder de o juiz assistir à parte mais frágil na relação jurídico-processual inaugurada?

Inicialmente, deve-se entender poder como a capacidade atribuída a alguém de sujeitar outras pessoas ao seu comando, o que irá, naturalmente, acarretar modificações nas suas esferas jurídicas. A esse poder corresponde o dever de sujeição à ordem imposta, ainda que resulte em alterações jurídicas desfavoráveis.

Todo o poder tem uma fonte de legitimação. Assim, os poderes do juiz no processo são legitimados, hoje em dia, pelo Direito, escolhido por um povo.

Considerando-se, portanto, o Direito, há de se constatar o que se segue.

Não mais se pretende um Direito Processual em que o processo, uma das suas noções basilares, decorra de uma atividade jurisdicional desprovida de escopos sociais e políticos.

Como bem lembra Cândido Rangel Dinamarco2, na realidade as conhecidas tradicionais tentativas de definição teleológica da jurisdição permaneceram no plano jurídico, com crença de ser suficiente explicar a função jurisdicional, que antes de tudo é política, em face da mecânica do Direito. Ainda na trilha de Dinamarco, tem-se que o redimensionamento dessa visão teleológica é indispensável, passando a considerá-la também a partir de seus escopos sociopolíticos. Assim, além de se abandonar uma visão reducionista do fenômeno jurídico, com a tomada dessa nova consciência finalística da jurisdição – e, como consectário, do processo –, possibilita-se o correto direcionamento do sistema e adequação do instrumental que o compõe, a fim de se potencializar os resultados obtidos pela atuação jurisdicional.

Portanto, diante de todas as observações anteriormente expostas, é possível dizer-se que há legitimidade, a partir dos instrumentais jurídicos hoje existentes, para a existência de um poder assistencial do juiz no processo.

Por poder assistencial deve-se entender a capacidade de o juiz influir na esfera jurídica das partes, promovendo a igualdade entre litigantes inicialmente em desigualdade na relação jurídico-processual. A partir de uma atuação constante, o juiz envida esforços para, na promoção da igualdade efetiva entre os litigantes, facilitar o acesso à justiça, no sentido amplo, pela parte menos favorecida na relação jurídico-processual. Assim, compensa-se a desigualdade processual com a participação efetiva do juiz em detrimento da parte menos assistida.

A princípio deve-se assentar que, ao restituir a igualdade das partes, a partir de assistência à parte mais fragilizada processualmente, o juiz não conspira contra o princípio da imparcialidade, já que restaura a paridade das armas no processo. Não é possível conceber-se a existência de imparcialidade em uma relação em que, já de início e diante da própria natureza da demanda, uma das partes estivesse em situação de desigualdade.

Por exemplo: ao estabelecer a igualdade entre o consumidor mais fragilizado e a grande empresa, detentora de maiores facilidades processuais, especialmente probatórias, o juiz nada mais fez do que possibilitar, na relação processual, a restauração do tratamento igualitário – portanto, houve, aqui, preservação da própria imparcialidade, já que parcial seria o juiz que tivesse deixado a parte menos assistida incapacitada de se igualar à outra no plano processual.

Frise-se, ainda, em consonância com todo o exposto, que a parte assistida deverá encontrar-se em uma situação processual menos favorável decorrente de sua posição frente aos fatos produzidos no processo. No entanto, não há como se olvidar que, na maioria das vezes, esta condição no processo retrata uma situação fática mais desfavorável anterior. De quem é desconhecido, verbi gratia, que grandes empresas multinacionais, inicialmente, possuem condições de se encontrar melhor representadas em juízo, em vista do poder econômico que possuem, do que um simples morador (considerado isoladamente e não de forma associativa) de um bairro prejudicado pela atuação poluente desta empresa. Nesse caso, por exemplo, nada obsta uma participação mais ativa do juiz no processo – já que somente esta garantirá o acesso à ordem jurídica justa.

Logo, ao contribuir para que se promova a paridade das armas no processo, a partir da equiparação das situações processuais, o juiz nada mais faz do que atuar em favor da preservação do princípio da imparcialidade – atuando de forma efetiva para a garantia do pleno acesso à Justiça.

Ressalte-se que se busca, quando se fala em imparcialidade, que as partes estejam eqüidistantes do juiz. Essa eqüidistância, por sua vez, somente ocorrerá se o juiz trouxer, para perto de si, na mesma proporção da outra, a parte menos favorecida na relação que se iniciou. A princípio, por força das vantagens de uma das partes, esta semelhança de distância é inexistente. Portanto, parcial será o juiz que, quedando-se inerte, não promover diligências no sentido de trazer a parte mais frágil na relação jurídico-processual para próximo de si, preservando, assim, a conhecida eqüidistância.

Conforme já se prelecionou, embora o acesso efetivo à justiça venha sendo crescentemente aceito como um direito social básico nas modernas sociedades, o conceito de "efetividade" é, por si só, algo vago. A efetividade perfeita, no contexto de um dado direito substantivo, poderia ser expressa como a completa "igualdade de armas" – a garantia de que a conclusão final depende apenas dos méritos jurídicos relativos das partes antagônicas, sem relação com diferenças que sejam estranhas ao Direito e que, no entanto, afetam a afirmação e reivindicação dos direitos. Essa perfeita igualdade, naturalmente, é utópica. As diferenças entre as partes não podem jamais ser completamente erradicadas. A questão é saber até onde avançar na direção do objetivo utópico e a que custo3.

Portanto, quando se trata da atuação assistencial do juiz – questão intimamente ligada à busca da garantia da paridade das armas no processo e, como consectário, ao amplo acesso à justiça –, há de se saber até onde avançar e a que custo.

Na busca da utopia da igualdade efetiva das partes, é necessário se avançar o máximo possível, e daí a indispensabilidade do prestígio aos poderes assistenciais no processo.

O custo é claro: há de se distanciar, para a sua justificativa, de todo um ensinamento jurídico herdado das concepções clássicas.

Assim, deve frisar-se que, diante da nova ordem posta, especialmente com o advento da Constituição de 1988, a postura do juiz deve corresponder de modo satisfatório às novidades ali insculpidas. Prestigiado constitucionalmente, de forma plena, o direito de acesso à ordem jurídica, os poderes assistenciais do juiz no processo devem ser vislumbrados a partir desta realidade inédita. E, como já prelecionou, com a habitual argúcia, Ada Pellegrini Grinover4, acresça-se a dificuldade de adaptação a uma ordem jurídica profundamente inovadora, traçada pela Constituição, a demandar do juiz a postura de árbitro de controvérsias de dimensões sociais e políticas; e ter-se-á a medida da grande dificuldade de entrosamento entre a mentalidade do juiz brasileiro e as novas funções que institucionalmente lhe demandam.

De tudo quanto exposto, percebe-se que o tema ainda é capaz de suscitar diversas celeumas. No entanto, diante de uma nova realidade processual que se nos apresenta, não há mais de se admitir a atuação conformista do juiz. Afinal, na democracia participativa, que deve nortear os rumos do processo, todos os cidadãos devem participar – e o juiz, cidadão, também, e principalmente, na direção da relação jurídico-processual, não pode quedar-se inerte, como "mero convidado de pedra" do processo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

1 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, DINAMARCO, Cândido Rangel, GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria geral do processo. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1990. p. 252.

2 DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do processo. São Paulo:Malheiros, 1996. p. 150.

3 CAPPELLETTI, Mauro, GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre:Sérgio Antônio Fabris Editor, 1988. p. 15.

4 GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em evolução. Rio de Janeiro:Forense Universitária, 1996. p. 25.

Marcus Orione Gonçalves Correia é Juiz titular da 2ª Vara Federal em São José do Rio Preto, Circunscrição Judiciária do Estado de São Paulo.

 

 

Retirado de: http://www.direitoejustica.com/cgi-bin/links/jump.cgi?ID=6558&Title=A%20Imparcialidade%20do%20Juiz%20e%20Seus%20Poderes%20Assistenciais%20no

 

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