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A evolução histórica do perigo no Direito Penal
Brasileiro
Juliana Maria Diniz Cabral.
Introdução
O referencial histórico no âmbito metodológico
é imprescindível para a melhor compreensão daquele objeto que se pretende
conhecer. A história encarada como o estudo da realidade humana condiciona o
modo de existência de todo objeto de cognitivo, principal porém não
exclusivamente nas ciências sociais, na medida em que o sujeito cognoscente é o
homem e este, tal qual o Rei Midas, transforma tudo aquilo que toca, nem sempre
em ouro, mas certamente o contamina com toda a sua essência.
Desta forma, é extremamente relevante a
verificação do tratamento do perigo pelo direito penal brasileiro em seus
diversos momentos, para que, tendo como referencial o homem em conjunto com a
sua contextualização moral e ética nestes mesmos momentos, possamos sentir todo
o caminhar deste instituto e até mesmo ter uma pista da sua estrada futura.
O Histórico
Quando o Brasil foi descoberto, vigiam em
Portugal as Ordenações Afonsinas, mas, se inquirirmos a partir do critério da
eficácia, não chegaram a influir no Brasil em razão do modelo de colonização, à
época, exclusivamente explorador. Já no ano de 1521 foram publicadas novas
Ordenações do Reino, estas Manuelinas que, igualmente, encontraram pouca
aplicação nas terras brasileiras. Na maior parte do seu período de vigência o
Brasil estava dividido em Capitanias Hereditárias, nas quais as condutas eram disciplinadas
mesmo pelo arbítrio do donatário. Foram um pouco mais aplicadas nas Capitanias
de São Vicente e Pernambuco, as que mais prosperaram, e logo mais, ao tempo dos
governadores-gerais.
As Ordenações Filipinas, publicadas em 11 de
janeiro de 1603, estas sim tiveram efetiva e relevante aplicação no Brasil.
Ainda na Idade Média, crime e pecado confundiam-se e o Direito Penal carecia de
limites objetivos. De modo inverso, pretendia-se controlar qualquer intenção
subversiva, contrária aos ditames legais ou morais. Seria impossível exigir o
perigo ou a lesão a um bem jurídico para a configuração do delito neste
contexto. Puniam-se meras idéias e também uma conduta de vida. Eram
incriminados os hereges, apostatas, os que “blasfamão de Deos”, o infiel que dorme
com uma cristã ou vice-versa, os feiticeiros... Aplicar o conceito de crime de
perigo nesta realidade histórica é, pois, completamente impróprio. Os crimes
são descritos sem qualquer precisão e alguns deles sem penas expressamente
cominadas, soando como meras recomendações.
O Código Criminal do Império foi publicado
após a independência do Brasil, em 16 de dezembro de 1830. Sem dúvidas sofreu
considerável influência das idéias da Revolução Francesa que pode se sentir na
forma taxativa na qual passaram a ser definidos os crimes, seguidos de imediato
pelas respectivas sanções. Apesar disto, não parece ter adotado o bem jurídico
como critério restritivo do poder de punir. Isto é facilmente percebido se
observada a definição de delito que se encontra no art. 2 º como “Toda a acção
ou omissão voluntária contrária ás leis penaes”. Há certamente tipos de perigo,
concretos e abstratos, tais como “uso de armas defesas”, “fabrico e uso de
instrumentos para roubar”, além da “conspiração” (“concertarem-se vinte pessoas
ou mais para praticar qualquer dos crimes mencionados nos arts. 68, 69, 85, 86,
87, 88, 89, 91 e 92, não se tendo começado a reduzir a ato”) e tantos outros.
Depois da Proclamação da República, em 11 de
outubro de 1890 foi publicado o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil.
Neste Código já é possível verificar a preocupação com o resultado lesivo ou
perigoso como pressuposto de punição, retratada claramente no § único do art.
14 onde se lê “Não é punível a tentativa no caso de ineficácia absoluta do meio
empregado, ou de impossibilidade absoluta do fim a que o delinqüente se
propuser”. O perigo já é tratado de forma mais íntima e técnica. Há o Cap. I do
Título III, Livro II que trata “Do incêndio e outros crimes de perigo comum” e
o Cap. VI do livro III que dispõe acerca “Das contravenções de perigo comum”.
Há ainda, dentre muitas outras, a contravenção “Do fabrico e uso de armas” e o
Duello, “crime contra a segurança de pessoa e vida” descrito no art. 307 como
“Desafiar outrem para duello, ainda que o desafio não seja aceito”, disposições
penais que certamente poderiam ser classificadas como de perigo abstrato.
A Consolidação das Leis Penais, de 14 de
dezembro de 1932, não trouxe qualquer alteração no entendimento do perigo. Foi
somente uma incorporação de leis especiais em um mesmo diploma legal. O “Estado
Novo” já havia sido implementado e em 07 de dezembro de 1940 foi publicado o
Código Penal Brasileiro.
Este Código parece manter a impunibilidade da
tentativa inidônea, mas, em verdade, prevê como medida repressiva a possível
imposição de medida de segurança. A Escola Positiva exerce forte influência e
há ainda outras hipóteses de aplicação de medida de segurança pré-delitual como
o ajuste, a determinação, a instigação e o auxílio a crime que não tenha sido
sequer tentado. Não há mais o duello, mas foi inserido todo um capítulo acerca
“Da periclitação da vida e da saúde” com diversos tipos penais diferentes.
Alguns deles, apesar de estarem topologicamente postos sob esta rubrica, são
realmente tipos de dano como os §§ 1o.e 2 º dos arts.133, 134 e 136
que exigem o resultado lesão corporal de natureza grave ou morte para a sua
configuração.
Além disto há a rixa que está colocada em
capítulo a parte, mas foi também enunciada na exposição de motivos como um
crime de perigo à incolumidade pessoal e uma perturbação “`a ordem e a
disciplina da convivência civil”. Seria impossível e inútil listar todos os
tipos, mas vale ainda mencionar o Capítulo I do título VIII da parte especial
que se destina à previsão “Dos crimes de perigo comum” contra a incolumidade
pública, muitos deles abstratos como “Fabricar, fornecer, adquirir, possuir e
transportar, sem licença da autoridade, substância ou engenho explosivo, gás
tóxico ou asfixiante, ou material destinado à sua fabricação”, previsto no art.
253.
Em 03 de outubro de 1941 foi publicada a Lei
das Contravenções Penais, que traz em seu texto inúmeras infrações de perigo.
Aliás, elas representam certamente a grande maioria das contravenções previstas:
disparo de arma de fogo, porte de arma, vias de fato, perigo de desabamento...
No dia 29 de outubro de 1969 foi publicado o
projeto da autoria de Nelson Hungria, Aníbal Bruno e Heleno Cláudio Fragoso. O
Código natimorto trazia o perigo como elemento do tipo de muitos dos crimes
previstos anteriormente como de perigo abstrato no Código de 1940, inclusive o
mencionado acima, e incluía a rixa no capítulo “Da periclitação da vida ou da
saúde”. Isto representaria um importante avanço das garantias aos direitos
humanos chamados “de primeira geração” contra uma restrição do poder punitivo
estatal, mas tais modificações não foram mantidas na efetiva reformulação que
ocorreu em 1984 que não alcançou os crimes em espécie. É curioso que esta
tentativa tenha ocorrido em meio à ditadura militar. Talvez tenha sido mesmo
por isso que o projeto nunca tenha entrado em vigor.
Esta grande reforma da parte geral do Código
Penal não importou em mudança substancial no tratamento do perigo, salvo a
total impossibilidade de aplicação de medida de segurança antes do cometimento
de delito. A atual Constituição da República, promulgada em 05 de outubro de
1988, ainda não contempla expressamente o princípio da ofensividade, senão de
modo implícito, como algo inerente ao modelo do Estado Democrático de Direito.
Apesar de toda a tendência hodierna
garantista, tem ocorrido um movimento paralelo de “panpenalização” com o
surgimento de inúmeros tipos penais em leis extravagantes que se destinam à
tutela de bens metaindividuais, notadamente os econômicos. Estes tipos são, em
sua grande maioria, tipos de perigo, alguns, talvez, tenham até mesmo sido
concebidos como crimes de perigo abstrato que prescindiriam da comprovação
concreta do perigo real. Argumenta-se que estes bens, por sua natureza
transindividual, seriam indisponíveis e caros à sociedade e uma efetiva lesão a
eles teria conseqüências desastrosas.
O movimento liberal (não no sentido originário
deste termo, proposto por Smith, senão como uma ideologia limitadora do poder
estatal) tem reagido e buscado impor limites severos à criação e principalmente
à aplicação dos tipos demasiadamente amplos e que violem a garantia
representada pela exigência da lesividade ao bem jurídico. Isto tem gerado um
embate em correntes finalistas, expansionistas e minimalistas que ainda está
por ser solucionado.
Conclusão
Infelizmente não foi possível trazer à baila
os “fantasmas, fogos e sombras” de cada uma destas épocas pela razão óbvia, e
temporal, da ausência de experiência empírica em todos estes momentos que aqui
se pretendeu apenas retratar.
Ainda assim, as fotografias, embora carentes
de dinamismo e ânimo, são, sem dúvidas, úteis para um melhor e futuro
entendimento aprofundado do instituto do perigo e o seu emprego na incriminação
de condutas.
Referências Bibliográficas
BULFUNCH, Thomas. O
Livro de Ouro da Mitologia. Histórias de Deuses e Heróis.Tradução de David
Jardim Júnior. 8 ª Edição. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
NERUDA, Pablo. Confesso
que Vivi. Memórias. Tradução de Olga Savary. 6ª Edição. Rio de
Janeiro/São Paulo: Difel/ Difusão Editorial S.A., 1978.
PIERANGELLI, José Henrique. Coordenou Códigos Penais do Brasil.
Evolução Histórica. Bauru, SP: Editora Jalovi, 1980.
Retirado
de: http://www.direitopenal.adv.br/artigos.htm
Palavras Chaves: evolução histórica direito penal
brasileiro histórico história