A família contemporânea no Direito
Penal
Guilherme
Calmon Nogueira da Gama
RESUMO
Trata-se de ensaio acerca de aspectos novéis do instituto da
família, em face das transformações contemporâneas do contexto social
brasileiro, em que se procura abordar, em especial, a caracterização do
“companheirismo” como espécie de família, notadamente a partir do texto
constitucional de 1988.
Apresenta-se a questão da integração analógica, no sentido da aplicação, em
favor do companheirismo, das normas penais não-incriminadoras protetivas da
família; e a paralela impossibilidade de aplicação da analogia para as
situações envolvendo os companheiros, em relação às normas penais
incriminadoras.
Abordam-se, ainda, questões relativas à conveniência ou não da existência de
legislação sobre o tema, conceituação, nomenclatura e requisitos, incluindo o
atual tratamento legislativo sobre o assunto.
Traçam-se, enfim, idéias sobre a Constituição Federal de 1988, em especial no
tocante à auto-aplicabilidade ou não do art. 226, § 3º, que expressamente
reconheceu a "união estável" como espécie de família, ou
companheirismo, termo mais adequado e já arraigado na sede doutrinária,
legislativa e jurisprudencial.
INTRODUÇÃO
À semelhança do que se verifica na experiência internacional, a
instituição familiar brasileira é objeto de mutações intrínsecas ditadas por
fatores exógenos em constante transformação, tais como: contexto social,
cultural, moral, religioso e econômico.
No passado, a inexistência de uma legislação específica abordando
questões como a dicotomia concreta entre família matrimonial e extramatrimonial
ressaltou a importância da atuação da jurisprudência no aclaramento e
acondicionamento jurídico dessas transformações.
Hoje, no campo conceitual, não restam dúvidas quanto à
transferência do conteúdo jurídico do instituto do companheirismo do Direito das
Obrigações para o Direito de Família.
O fenômeno da repersonalização ou despatrimonialização do Direito
impõe um redimensionamento das relações familiares no sentido de preservar e
desenvolver, prioritariamente, aspectos desprovidos de conteúdo econômico e
que, não obstante inerentes à essência mesma das relações familiares, restaram,
sob a égide do patrimonialismo exacerbado do Código Civil de 1916, relegados a
segundo plano nas lides que transitavam pelos tribunais. Tratamos aqui
notadamente das questões referentes a afeto, solidariedade, união, harmonia,
respeito, confiança, amor, em detrimento da conceituação da família puramente
como sociedade de bens.
Nesse panorama, insere-se a questão do companheirismo, já
reconhecido pelos tribunais nas hipóteses de sociedade de fato, conjugação de
esforços em prol de um objetivo comum, transborda do mero patrimonialismo. A Constituição Federal, a esse respeito, foi
coerente ao reconhecer a "união estável" como uma espécie de família
no seu art. 226, § 3º, outorgando-lhe, nessa qualidade, o ensejo da tutela
estatal. Importou, conseqüentemente, o reconhecimento da família não derivada
de casamento civil ou casamento religioso com efeitos civis.
Na exegese do art. 226, § 3º, da Carta Magna de 1988, três
aspectos exsurgem no que tange à "união estável": a) a eficácia plena
do dispositivo constitucional no tocante à proteção que o Poder Público deve
dar à família, inclusive àquela fundada no companheirismo; b) a conversão da
"união estável" em casamento, tratando-se de norma de eficácia
limitada de princípio institutivo, pois depende de regulamentação
infraconstitucional para que possa operar efeitos jurídicos; c) a necessidade
de legislação infraconstitucional regulamentadora também no tocante às relações
internas e diretas envolvendo os companheiros.
Um tema intimamente relacionado a essa interpretação
constitucional diz respeito à possibilidade de equiparação entre a família
constituída pelo companheirismo e a família constituída pelo casamento, para efeito
de incidência do Direito Penal. Este, como se sabe, trata também de aspectos
descriminalizantes ou benéficos relacionados à família em dispositivos
esparsos. À guisa de exemplo, pode-se citar a isenção de pena reconhecida ao
agente nos crimes não-violentos praticados contra o patrimônio do próprio
cônjuge, na constância da sociedade conjugal (art. 181, do Código Penal), ou a
exclusão da punibilidade nas hipóteses de casamento da vítima com o agente, na
hipótese do art. 107, VII, ou com terceiro, na hipótese do art. 107, VIII,
desde que as elementares de violência ou grave ameaça não se configurem na
conduta delitiva e a ofendida não requeira o prosseguimento da ação penal nos
sessenta dias após a celebração do casamento.
Com relação à extensão aos companheiros da incidência das normas
previstas nos arts. 235 e seguintes do Código Penal, encontraremos,
forçosamente, obstáculo intransponível não só no princípio da vedação à
analogia in malam partem no Direito Penal, mas, sobretudo, no princípio
da reserva legal, ou tipicidade cerrada nas normas penais incriminadoras,
obstando o sancionamento estatal de condutas não tipificadas expressamente em
texto legal.
Como decorrência da
reformulação do conceito jurídico da família, verifica-se no reconhecimento
constitucional da monoparentalidade e do companheirismo a adequação do
ordenamento jurídico à realidade social e cultural ainda que não em toda a sua
inteireza. Em sede doutrinária,
processou-se antecipadamente esta reformulação, em especial no escólio de
Orlando Gomes1, João Baptista Villela2 e Heloisa Helena
Barbosa3, dentre outros.
1.1
AS DIVERSAS FAMÍLIAS NA ACEPÇÃO DO DIREITO
A família é antes de mais
nada uma realidade, um fato natural, uma criação da natureza, não sendo
resultante de uma ficção criada pelo homem. Trata-se de um conjunto de pessoas
que se vinculam pelo matrimônio, pelo companheirismo, pela filiação biológica,
pela filiação socioafetiva. O termo “família”, assim, apresenta pluralidade de
conceituação, diante da abordagem do tema, que abrange várias ciências humanas
e, no universo jurídico, não se limita ao âmbito do Direito Civil, já que
vários ramos do Direito regulam aspectos relacionados à família.
1.2
A FAMÍLIA INSERIDA NO CONTEXTO SOCIAL
A preocupação dos Estados com
a preservação da família e da sociedade justifica-se pela relação bastante
próxima e completa destas, até porque a desagregação da família importa o
desaparecimento da sociedade. A Declaração Universal dos Direitos do Homem
reconheceu o estreito vínculo entre elas, estatuindo que: A família é o
núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade
e do Estado4.
1.3
A FUNÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A FAMÍLIA
Desde 1934, os textos
constitucionais brasileiros vêm-se preocupando com a família, sem nunca a
definirem, somente reconhecendo o casamento como instituto formador e
legitimador da família, constituída pela união de um homem e de uma mulher.
Na história das Constituições
brasileiras, aponta-se o texto constitucional de 1934 como sendo o primeiro que
expressamente fez referência à família.
Em seu art. 144, a
família era constituída pelo casamento indissolúvel, observando a orientação do
Direito Canônico acerca do princípio da indissolubilidade do vínculo conjugal,
além de gozar da “proteção especial do Estado”. No mesmo texto, ficou
assentado que também eram admitidos efeitos jurídicos ao casamento religioso,
caso fossem adotadas certas formalidades, com a posterior inscrição do
casamento no Registro Civil.
Com o advento da Constituição
Federal de 1988 — um marco na evolução do ordenamento jurídico em matéria de
família —, o estigma do companheirismo deixou de existir. No campo
constitucional, vários princípios e regras sobre as relações familiares foram
adotados, alterando, substancialmente, a ordem jurídico-familiar no Brasil.
Apenas a título exemplificativo, podem ser citados os avanços no tocante à
igualdade entre os cônjuges — no que tange aos direitos e deveres recíprocos
nas relações conjugais —, e equiparação de qualificação de todos os filhos,
independentemente de origem, reconhecendo tratamento igualitário para todos.
Com relação à conversão da
“união estável” em casamento, o preceito constitucional é norma de eficácia
limitada de princípio institutivo. Trata-se de norma que depende da edição de
lei, não obstante reconheçamos de plano os efeitos objetivos e subjetivos
derivados das normas programáticas exaradas em matéria de Direito de Família.
Nesse diapasão, entendemos que toda norma jurídica editada após o advento da
Constituição de 1988 que pretenda impedir a conversão do companheirismo em
casamento deve ser considerada e efetivamente declarada inconstitucional.
Assim, ao que se nos afigura, se a lei que cuide da conversão vier a exigir
providências mais rigorosas comparativamente à própria celebração do casamento,
evidentemente será inconstitucional. A mens da norma constitucional é,
portanto, de estimular a conversão do companheirismo em casamento, razão pela
qual a lei infraconstitucional deverá facilitar a conversão, e não dificultá-la.
Evidentemente, como já
referido, não houve equiparação constitucional do companherismo à união
matrimonial. Do contrário, completamente despicienda seria a cláusula final do
art. 226, § 3º, que prevê a conversão da “união estável” em casamento.
Numa análise comparativa
entre o art. 226, da Constituição de 1988, e o art. 175, da Emenda
Constitucional de 1969, observa-se uma importante distinção:
Enquanto o art. 175, caput,
da Carta revogada, previa “a família constituída pelo casamento” para efeito de
proteção estatal, o art. 226, caput, da atual Constituição, se refere
apenas à família como base da sociedade, gozando de especial proteção do
Estado, deixando de vinculá-la exclusivamente ao casamento. A diferença é
sintomática e, certamente, não foi o acaso que conduziu a Assembléia
Constituinte a elaborar, aprovar e promulgar o texto atual com diferenças tão
marcantes5.
A circunstância da
Constituição de 1988 haver reconhecido o companheirismo como uma espécie de
família, merecedora de proteção estatal, não enfraquece o instituto do
casamento. O próprio texto constitucional deixa isso claro, ao prever, no § 3º,
do artigo 226, que a lei deverá facilitar a conversão da “união estável” em
casamento, numa demonstração inequívoca de que a união interpessoal mais
importante constitucionalmente é aquela constituída por meio do casamento. Essa
circunstância representa um marco histórico na sociedade brasileira
contemporânea em matéria de uniões informais. Realmente, a “união estável”,
como espécie de família, já era realidade sociológica, antes mesmo do seu
reconhecimento constitucional.
A Constituição estabelece, no
caput do art. 226, a regra da “especial proteção do Estado” à família, o
que poderia provocar alguma controvérsia acerca do sentido da regra da proteção
estatal contida no § 3º. Como já comentei: Sucede que, provavelmente temendo
os rumos que pudessem ser tomados a partir da interpretação jurídica do texto,
o constituinte repetiu a regra do § 3º, especialmente em relação à “união
estável”, apenas não utilizando o adjetivo “especial”. Seria a proteção estatal
pura e simples, tal como prevista no § 3º, diferente da “especial proteção do
Estado” constante do caput? Evidentemente que não, considerando a
própria interpretação sistemática do art. 226, da Constituição, diante da inclusão
da comunidade formada entre um dos genitores e seus descendentes como espécie
de família (§ 4º), a merecer, indubitavelmente, “especial proteção do Estado” (caput)”6 .
Reafirma-se, portanto, que a
regra protetiva estatal em relação ao companheirismo é norma constitucional de
eficácia plena, operando os seus efeitos imediatamente.
Ao que se nos afigura, em
todas as ocasiões em que a família seja merecedora de tutela estatal, no
sentido do seu resguardo contra estranhos e mesmo em relação ao Poder Público,
tal proteção abrange não apenas as famílias matrimoniais como também as
extramatrimoniais (companheirismo e monoparentalidade biológica ou adotiva), em
face da eficácia plena e aplicabilidade imediata do art. 226, § 3o,
nesse particular.
Nesse contexto de nova
figuração dos componentes familiares, (...) cabível se mostra indagar dos seus
reflexos na esfera penal, em situações típicas dos crimes contra a família
(arts. 235 e seguintes), assim como na análise de circunstâncias agravantes ou atenuantes
de certos delitos por envolver pessoas casadas, qualificadoras ou causas de
aumento de pena pelo mesmo fundamento, bem como nas hipóteses de extinção da
punibilidade pelo casamento do agente com a ofendida7.
A despeito da não-equiparação
entre casamento e companheirismo, indispensável será reconhecer, por força da
eficácia plena do dispositivo referido, a extensão aos companheiros das
prerrogativas inerentes aos “familiares” no Direito Penal, em especial no que
tange às escusas absolutórias, causas de extinção, dentre outras.
2 O
COMPANHEIRISMO: UMA ESPÉCIE DE FAMÍLIA
As Leis n.. 8.971/94
e n. 9.278/96, cujos textos foram editados posteriormente à Constituição
de 1988 e cuidam especificamente de efeitos internos nas relações da família
extramatrimonial, não ofereceram um conceito claro para “companheirismo”,
mas se limitaram a apresentar algumas características e requisitos. Adotou-se,
então, o conceito de companheirismo como: (...) união extramatrimonial
monogâmica entre o homem e a mulher desimpedidos, como vínculo formador e
mantenedor da família, estabelecendo uma comunhão de vida e d’almas, nos moldes
do casamento, de forma duradoura, contínua, notória e estável8, correspondendo, portanto, os
termos “companheirismo” e “companheiros” a respectivamente instituto formador e
mantenedor da família informal (extramatrimonial) e partícipes desta.
No Direito brasileiro, podem
ser identificadas as características do companheirismo como: a) finalidade de
constituição de família; b) estabilidade; c) unicidade de vínculo; d)
notoriedade; e) continuidade; f) ausência de formalismos. Enquanto os
requisitos como: 1) requisitos objetivos: a) diversidade de
sexos; b) ausência de impedimentos matrimoniais; c) comunhão de vida; d) lapso
temporal de convivência; 2) requisitos subjetivos: a) convivência
more uxorio; b) affectio maritalis.
Para efeito de verificação da
existência e validade da família fundada no companheirismo, devem ser
analisados os requisitos indispensáveis, consistentes ora em situações e
eventos concretos — requisitos objetivos — ora em elementos anímicos —
requisitos subjetivos —, tais quais o desejo de constituir família. Será, em
regra, a verificação dos requisitos anímicos o diferencial entre a união
estável e a relação de concubinato pura e simples.
Além do próprio texto
constitucional que, em seu art. 226, expressamente impõe o dever do Estado de
proteger a família independentemente de sua origem, vários diplomas internos e
internacionais reconhecem a imprescindibilidade da tutela da instituição
familiar como base da sociedade: (...) e, portanto, tratam-na como bem
jurídico com perfil nitidamente comunitário e imprescindível ao desenvolvimento
humano9. Daí a
conclusão alcançada por Jaques Penteado: A elevada valoração da família
justifica que os principais elementos de sua composição e dinâmica mereçam
proteção jurídico-penal e, assim, os bens e interesses tratados pelos direitos
dos povos e agasalhados nas suas constituições recebem tratamento criminal com
o fito de, empregada a sanção punitiva, estimular-se o comportamento humano
compatível com o respeito daqueles valores10.
Como já referido, o alcance
do preceito constitucional que prevê a proteção do Estado à família, do qual o
Direito Penal não pode ficar alheio, não se restringe às normas penais
incriminadoras, aplicando-se, também, às normas penais benéficas, sempre com o
objetivo de preservar as famílias matrimonial e extramatrimonial, na ordem
jurídica nacional pós-1988.
O Direito Penal, na concepção
moderna, somente deve intervir nos acontecimentos quando os bens jurídicos não
forem adequadamente protegidos por outros ramos do Direito, ou seja, quando
estes se verificarem insuficientes e impotentes para a tutela destes bens que
merecem proteção, daí ser reputado como a ultima ratio.
Nos últimos tempos, surgiu o
processo de constitucionalização dos bens jurídico-penais, diante da limitação
constitucional na formulação da tipologia criminal: É nas Constituições que
o Direito Penal deve encontrar os bens que lhe cabe proteger com suas sanções;
e o penalista assim deve orientar-se, já que nas Constituições já estão feitas
as valorações criadoras dos bens jurídicos, cabendo ao penalista, em função da
relevância social desses bens, tê-los obrigatoriamente presentes, inclusive a
eles se limitando, no processo de formação da tipologia criminal11.
A dignidade da pessoa humana,
como fundamento do Estado brasileiro, está diretamente relacionada ao dever
jurídico estatal de dar proteção à família.
Desse modo, urge seja
atribuída efetividade à norma constitucional que determina ao Poder Público o
fornecimento de proteção à família, nos termos do art. 226, caput, da
Constituição Federal de 1988.
4.1
O DIREITO PENAL E O COMPANHEIRISMO: TRATAMENTO ANTERIOR
A orientação doutrinária, no
período anterior ao advento do novo texto constitucional, afastava as famílias
informais do benefício das escusas absolutórias contempladas na legislação
penal, além de outras regras penais benéficas, instituídas com a finalidade de
proteger a família. Isso porque, no âmbito do Direito Penal, os preceitos que
visavam resguardar a família não se estendiam aos companheiros, diante da
observância da norma constitucional vigente à época, qual seja, o art. 175, caput,
da Emenda nº 01/69 à Constituição de 1967.
5
A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E OS REFLEXOS PENAIS NA FAMÍLIA INFORMAL
5.1
A PROTEÇÃO DO ESTADO À FAMÍLIA INFORMAL OU COMPANHEIRISMO
Como visto, a partir do texto
constitucional, em seu art. 226, caput e § 3°, o aspecto da proteção que
o Estado deve fornecer em favor da família é norma constitucional de eficácia plena
e aplicabilidade imediata, não havendo distinção entre a “especial proteção do
Estado”, expressa no caput, e a “proteção do Estado”, constante do § 3°
do dispositivo mencionado.
A proteção do Estado à
família independe da origem da entidade familiar constituída e mantida, razão
pela qual não cabe ao intérprete pretender distinguir onde o texto
constitucional não diferencia, com a nítida observância do comando
constitucional de proteger a família informal.
Para viabilizar a efetividade
da norma constitucional no âmbito do Direito Penal, portanto, o recurso ao
processo da analogia é absolutamente indispensável e necessário, pois: a) a lei
penal não cuida da proteção da família informal; b) a lei penal regula situação
que guarda coincidência com aquela não regulada, por força do preceito
imperativo, em nível constitucional — ou seja, a lei penal protege a família
matrimonial; c) as duas situações apresentam ponto comum, a saber, são
beneficiárias das medidas e ações do Poder Público, em todas as funções executiva,
legislativa e judiciária, para cumprimento da regra de proteção da família na
sua formação e subsistência. Ou seja, ambas as famílias — matrimonial ou
extramatrimonial — são beneficiárias da tutela protetora do Poder Público.
Evidentemente que, diante da
função específica do Direito Penal, na tutela dos interesses maiores da
sociedade, mas sem atentar contra princípios e garantias historicamente
conquistados, a integração da norma penal, por meio da analogia, somente é
possível em se tratando de normas não-incriminadoras (ou benéficas), ou seja,
somente se admite a analogia in bonam partem.
6 NORMAS PENAIS INCRIMINADORAS
6.1 CRIMES CONTRA O CASAMENTO
São considerados como tais os
crimes elencados nos arts. 235 a 240 do Código Penal, quais sejam: a
bigamia (art. 235); o induzimento a erro essencial e ocultação de
impedimento (art. 236); o conhecimento prévio de impedimento (art.
237); simulação de autoridade para celebração de casamento (art. 238); a
simulação de casamento (art. 239) e o adultério
(art. 240).
A objetividade jurídica
desses crimes é a família matrimonial, não podendo ser incluída a família
informal por serem as normas penais incriminadoras, pois, do contrário, haveria
violação dos princípios da reserva absoluta de lei.
Os crimes dos arts. 236 a
239, do Código Penal, estão intimamente relacionados ao casamento, como ato
solene e instituição. Logo, não há o que se falar em semelhança com o
companheirismo devido à sua informalidade.
A bigamia (art. 235 do Código
Penal) expressamente se refere à condição especial do agente do crime, não se
podendo incluir o companheiro, diante da ausência de vínculo formal na primeira
união e do princípio da reserva legal.
No adultério (art. 240, do
Código Penal), somente pessoa casada pode ser agente, e o consorte, a vítima. O
dever de fidelidade é próprio dos cônjuges, sendo a analogia inaplicável pelo
princípio da reserva legal.
6.2
CRIMES CONTRA O ESTADO DE FILIAÇÃO
De acordo com o Código
Penal, são crimes contra o estado de filiação: o registro de nascimento
inexistente (art.241); parto suposto; supressão ou alteração de
direito inerente ao estado civil de recém-nascido (art. 242) e sonegação
de estado de filiação (art. 243).
Observa-se que, no tocante
aos crimes contra o estado de filiação, a família, sob o prisma das relações de
paternidade, maternidade e filiação, é objeto de proteção do Estado,
preservando a autenticidade dos vínculos jurídicos em relação à realidade
biológica.
A família tutelada no caso é
aquela sob o prisma dos vínculos jurídicos de paternidade, maternidade e
especialmente filiação, não havendo qualquer norma que se aplique especialmente
aos casados.
6.3
CRIMES CONTRA ASSISTÊNCIA FAMILIAR
O
Código Penal prevê as figuras típicas dos arts. 244 a 247, quais sejam: o
abandono material, a entrega de filho menor a pessoa inidônea, o abandono
intelectual e o abandono moral, de onde se conclui que a lei penal
busca proteger, de forma imediata, a manutenção e a subsistência da família,
sob os aspectos material e moral. Ressalta-se ainda que, à exceção do art. 244,
em todos os demais não há qualquer referência às situações envolvendo as
pessoas casadas, não podendo se invocar a analogia.
No tocante ao crime de
abandono material, cumpre fazer uma distinção. Na sua primeira modalidade — deixar,
sem justa causa, de prover à subsistência do cônjuge — somente o cônjuge
pode ser sujeito ativo, mesmo após a Lei n. 8.971/94, que implicitamente instituiu
o dever de assistência material recíproca, pois não se admite analogia in
malam partem. Enquanto na segunda modalidade — faltar ao
pagamento de pensão alimentícia —, o sujeito ativo é o devedor da
pensão, inclusive o companheiro, diante da Lei n. 8.971/94, o mesmo ocorrendo
quanto ao comportamento descrito no parágrafo único do art. 244 do Código
Penal.
6.4
CRIMES CONTRA O PÁTRIO PODER, TUTELA OU CURATELA
Constata-se, novamente, que a
lei penal, nos crimes contra o pátrio poder, tutela ou curatela (arts. 248 e
249 do Código Penal), visa proteger a família, a ela equiparado, para fins
assistenciais, o vínculo da tutela e da curatela. É completamente irrelevante,
quanto a tais crimes, a existência ou não de casamento para a formação e
manutenção da família, razão pela qual a formalidade ou informalidade da
família é indiferente para a configuração do evento criminoso.
7 OUTRAS CONDUTAS PENALMENTE
RELEVANTES
Cabe arrolar sucintamente as
circunstâncias especiais sob a forma: qualificadora; de causas
de aumento de pena; e de circunstância agravante, constantes dos
crimes que levam em consideração aspectos relacionados à instituição familiar
para maior reprovabilidade da ação. Há, no caso, a proteção mediata da família,
ora no tocante ao dever de assistência moral, ora no que pertine ao dever de
fidelidade, sendo que em todas elas fez-se referência expressa a um instituto
do Direito matrimonial, pressupondo, portanto, o casamento do agente. Desse
modo, não se pode invocar a analogia para integrar tais normas, considerando-as
aplicáveis também em relação aos companheiros, sob pena de violação ao
princípio da reserva absoluta de lei. São elas:
7.1 QUALIFICADORAS
7.1.1 CRIME DE SEQÜESTRO
Na forma qualificada no art.
148, § 1º, do Código Penal, em que ocorre a tutela da família matrimonial, sob
o dever de assistência material e moral, não cabe a analogia por adotar
o conceito de “cônjuge” do Direito Civil.
7.1.2
CRIMES DE
LENOCÍDIO QUALIFICADO
É previsto o lenocídio familiar
só entre pessoas casadas conforme estabelece os arts. 227, § 1º; 228, § 1º;
230, § 1º; 231, § 1º; todos do Código Penal, sendo inviável o emprego da
analogia.
7.2 DE CAUSAS DE AUMENTO DE
PENA
7.2.1CRIME DE ABANDONO DE
INCAPAZ
Em tal caso, quando o agente
é cônjuge da vítima (art. 133, § 3º, II, do Código Penal), indiretamente a lei
penal tutela a assistência material e moral nas relações familiares
matrimoniais, não se aplicando aos companheiros.
7.2.2
CRIMES CONTRA A
LIBERDADE SEXUAL, DE SEDUÇÃO, CORRUPÇÃO DE MENORES E RAPTO
Nessa hipótese, quando o
agente é casado, conforme o art. 226, III, do Código Penal, vê-se mais uma vez
que a lei penal busca preservar a tranqüilidade das relações familiares, com o
cumprimento dos deveres matrimoniais, excluindo-se os companheiros.
7.3 DE CIRCUNSTÂNCIA AGRAVANTE
7.3.1 O AGENTE TER
COMETIDO O CRIME CONTRA CÔNJUGE
O art. 61, II, e, do
Código Penal, busca tutelar a continuidade da paz conjugal, o dever de
assistência moral, em que também não cabe a analogia, em virtude do princípio
da reserva legal. Aplica o conceito de cônjuge do Direito Civil, e com relação
aos companheiros não havia qualquer dever pessoal, não se incluindo na
agravante.
8 NORMAS PENAIS
NÃO-INCRIMINADORAS (BENÉFICAS)
O bem jurídico “família”
também é tutelado no Direito Penal no sentido de beneficiar o agente, diante da
prevalência do interesse em se resguardar a família sobre outros bens. A lei
penal prefere, em certos casos, abdicar ou atenuar o jus puniendi na
busca da preservação de valores familiares.
8.1 AS ESCUSAS ABSOLUTÓRIAS
Na legislação penal
brasileira, há as duas escusas absolutórias tutelando a família matrimonial,
previstas na Parte Especial do Código Penal, arts. 181, inc. I, e 348, § 2º: a
isenção de pena para o cônjuge que pratica crime contra o patrimônio do outro,
sem violência ou grave ameaça, e para aquele que auxilia o outro a subtrair-se
à ação de autoridade pública, por motivo de crime apenado com reclusão. São
regras claramente protetoras da família que, sob a égide da Constituição de
1988, não se restringem aos unidos matrimonialmente.
No caso dos crimes
não-violentos e sem grave ameaça contra o patrimônio, diante do confronto entre
a lesão patrimonial ocorrida e a ameaça de desestruturação da família, o
legislador penal fez uma inequívoca opção: a família é mais importante e,
portanto, merece maior proteção do que o patrimônio do lesado. Assim, na busca
da implementação do comando constitucional, sob o aspecto de proteção do Estado
à família, a analogia se encaixa precisamente na hipótese em tela, admitindo a
aplicação do art. 181, inc. I, do Código Penal, ao companheiro, integrando a
norma da seguinte forma: É isento de pena quem comete qualquer dos crimes
previstos neste título, em prejuízo: I — do companheiro, na constância da
sociedade companheiril.
Trata-se, portanto, de
integrar a norma penal benéfica existente, por meio da analogia, para
considerar suprida a lacuna com a adoção do raciocínio anteriormente descrito,
na preservação do bem jurídico família.
Com efeito, apesar das
mudanças detectadas na sociedade brasileira, o período anterior ao advento do
texto constitucional de 1988 não possibilitava a interpretação do disposto no
art. 181, inc. I, do Código Penal, no sentido de alcançar os companheiros,
exatamente diante da ausência do bem jurídico a ser tutelado por meio dessa
norma em se tratando de companheirismo. Os avanços verificados em matéria de
união extramatrimonial se situavam no campo do Direito das Obrigações, nas
relações internas entre os companheiros, no Direito Previdenciário e na
Infortunística, nas relações externas com a sociedade e com o Estado.
Assim, em obediência ao
comando constitucional contido no art. 175, caput, do texto
constitucional então vigente, norteador da regra de proteção à família, o
Direito Penal não protegia o companheirismo12. A situação atual,
diante da norma contida no art. 226 da Lei Maior, é exatamente contrária
àquela, razão pela qual os aplicadores das normas somente poderão dar efetivo
cumprimento ao comando normativo constitucional com a adoção do processo
analógico in bonam partem.
No crime de favorecimento
pessoal, que tutela a administração da justiça, o confronto entre tal bem jurídico
e a família, da mesma forma, é resolvido com a prevalência da tutela protetiva
à família, levando em consideração a necessidade de preservar os sentimentos de
solidariedade, de confiança, de benquerança e, — porque não — de amor, que unem
os partícipes da entidade familiar. Assim, o legislador optou por preservar a
família em detrimento dos interesses da administração da justiça, ao estatuir a
escusa absolutória prevista no art. 348, § 2º, do Código Penal.
Trata-se, portanto, de norma
penal benéfica, protetora das relações e vínculos familiares, e que pode servir
para integrar a situação envolvendo os companheiros, a partir de 1988, com o
texto constitucional.
Assim, caso venha a ser
aprovado o anteprojeto da Parte Especial do Código Penal, ao menos na redação
dos dois dispositivos anteriormente transcritos, haverá a observância estrita
da Constituição Federal de 1988, quanto à tutela de proteção que o Estado deve
fornecer à família, independentemente de sua origem. Mas, até a aprovação do
texto final, é imperioso que os aplicadores do Direito, dotados dos
instrumentos necessários, já integrem as normas em vigor, para o fim de
alcançar as famílias informais retratadas no companheirismo.
8.2 AS CAUSAS DE EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE
Nesse particular, ressaltamos
as causas de extinção da punibilidade pelo casamento da ofendida com o agente
nos crimes contra os costumes, previstos nos capítulos I, II e III, do título
VI, da Parte Especial do Código Penal, ou pelo casamento da ofendida com
terceiro, em tais crimes, desde que não haja violência real ou grave ameaça e
que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação
penal em sessenta dias a contar da celebração do casamento.
A respeito da extinção da
punibilidade em virtude da família constituída entre a vítima e terceiro, é
também perfeitamente aplicável o processo da analogia, ressalvando as mesmas
condições expressamente previstas na lei acerca da gravidade do crime e a
manifestação da vítima quanto ao interesse em dar prosseguimento nas medidas
necessárias à ultimação do inquérito policial ou da ação penal. Evidentemente,
como o companheirismo somente se considera constituído com a presença de todos
os requisitos já narrados anteriormente, inclusive quanto ao prazo mínimo de
dois anos, o termo ad quem para verificação da ocorrência da causa de
extinção da punibilidade será o fim do prazo de sessenta dias após a
configuração da estabilidade do vínculo informal constituído. E, obviamente, o onus
probandi incumbirá a quem interessar a demonstração da ocorrência (ou não)
da causa extintiva de punibilidade mencionada.
8.3 AS CIRCUNSTÂNCIAS
Ao que se nos afigura, é
perfeitamente possível o reconhecimento, nos crimes envolvendo os companheiros
(como sujeitos ativo e passivo), da configuração de circunstâncias como emoção
e paixão13, previstas nos arts. 65, inc. III, c, 121, § 1º e
129, § 4º, do Código Penal, mesmo sem recorrer-se à analogia ditada pelo art.
226, caput, da Constituição de 1988. Isso porque é da essência daquelas
circunstâncias não o vínculo formal da união, mas a relação emocional própria
que inspira aqueles ligados afetivamente.
A circunstância legal
especial constante do art. 221 do Código Penal, ou seja, o rapto para fim de
casamento, exige uma análise mais minuciosa. Tal como visto, a causa de
diminuição da pena visa atenuar o rigor da sanção penal levando em conta a
finalidade de constituição da família por meio do casamento, ainda que no
futuro este não viesse propriamente a se concretizar. Logo, os sentimentos do
agente e a relevância do desejo de constituir família com a vítima devem ser
considerados, razão pela qual o Direito Penal trata diferentemente os agentes
dependendo do animus verificado para a prática do crime. Se o agente
pretende a satisfação de seus desejos libidinosos, o crime é o de rapto sem
qualquer atenuação do rigor da lei. Ao contrário, se também tem a intenção de
constituir família com a vítima, deve incidir a causa de diminuição da pena,
prevista no art. 221, do diploma penal. E, como a lei se refere tão-somente ao fim
de casamento, deve-se integrar a norma ao caso envolvendo o rapto com o fim
de constituir a família informal ou companheirismo, aplicando-se o processo
analógico.
8.4 COMPANHEIRISMO E CASAMENTO NO
DIREITO PENAL
A regra constitucional da
preponderância do casamento sobre o companheirismo é plenamente cumprida no
sistema penal em vigor.
Com efeito, não existe
qualquer óbice a que a legislação penal que tutela a família prossiga intacta,
sem sofrer qualquer mudança estrutural, sendo perfeitamente compatível o
sistema atual com a Constituição Federal. Evidentemente, como visto, para
suprir as lacunas existentes acerca da proteção à família informal, no tocante
às normas penais não-incriminadoras, a aplicação do processo analógico é
essencial. E, quanto às normas penais incriminadoras, à evidência, não se pode
cogitar de aplicar o mesmo processo analógico, diante do princípio da reserva
absoluta de lei e da conseqüente vedação à analogia in malam partem.
A circunstância de os casados
continuarem a sofrer a intimidação das normas penais incriminadoras — como, por
exemplo, a previsão quanto aos crimes de adultério, de bigamia e de abandono
material — não significa dizer que o companheirismo seja privilegiado, por não
receberem tal tratamento. Como visto, a não-aplicação da analogia, com relação
às normas penais incriminadoras, não gera benefício para os companheiros; ao
contrário: a missão do Direito Penal, ao tipificar certos comportamentos, é
apreender aqueles que violam interesses mais importantes e completos na
sociedade, exatamente com o intuito de protegê-los e, evidentemente, punir os
seus violadores. Logo, se no crime de adultério, a lei penal busca tutelar o
dever de fidelidade recíproca, tentando intimidar os cônjuges a não violarem
tal dever, na busca da preservação do casamento, em relação ao dever de
lealdade entre os companheiros, a lei penal não considerou tal interesse
suficientemente relevante a ponto de incriminar a conduta do companheiro que
infringe tal dever.
É certo que, em obediência ao
aspecto da proteção que o Estado deve fornecer à família, o Direito Penal
tenderá a não mais diferenciar qualquer comportamento dos casados em relação
aos companheiros, mas não há qualquer impedimento a que os casados sejam
tratados mais beneficamente do que os companheiros, como atualmente ocorre
diante das normas penais incriminadoras analisadas. Assim, a despeito da
compatibilidade entre o sistema penal vigente e a Constituição Federal, é
possível aperfeiçoar a legislação com a descriminalização de certos
comportamentos até hoje considerados delituosos em matéria relacionada à
família, e a incriminação de outros comportamentos, atualmente reputados
irrelevantes para o Direito Penal.
9 NOVA VISÃO DA FAMÍLIA INFORMAL
NO DIREITO PENAL: CONCLUSÃO
Sendo inequívoco constatar
não a decadência, mas o redirecionamento das relações familiares, busca-se,
hodiernamente, por intermédio da repersonalização da família, preservar e
desenvolver, mediante a valorização do conteúdo extrapatrimonial das células
familiares, o desenvolvimento pessoal e social das potencialidades dos
partícipes.
Como já dito, (...) ao
Estado incumbe a difícil tarefa de promover o fornecimento de condições
materiais, estatuindo as regras impositivas necessárias, de modo a permitir o
pleno desenvolvimento das famílias, permitindo o cumprimento dos deveres
matrimoniais, companheiris, paternais, parentais e assistenciais, e promovendo
valores que, em última análise, alicerçam a vida social, decorrentes da
família, sendo o principal deles o amor14.
Os operadores do Direito
Penal, como ramo do Direito Público, não podem se quedar inertes ante o dever
jurídico-constitucional de empreender novo tratamento em relação à família, sem
afrontar princípios e normas principiológicas consagradas historicamente.
De maneira bastante resumida,
podemos elencar algumas conclusões, dispostas sem qualquer hierarquia
valorativa:
1
O instituto familiar e por conseqüência o próprio Direito de
Família são objeto de mutações intrínsecas ditadas por fatores exógenos em
constante transformação, tais como contexto social, cultural, moral, religioso
e econômico.
2 A
família contemporânea, como instituição, afigura-se como um conjunto de pessoas
que se vinculam pelo casamento, pelo companheirismo, pelos parentescos
biológico e socioafetivo.
3 A
Constituição de 1988 concede proteção especial à família, tendo em conta o
importante papel do organismo familiar na promoção da dignidade da pessoa
humana, possibilitando o pleno desenvolvimento de sua personalidade. A própria
alteração das regras de dissolução do vínculo matrimonial, por meio do
divórcio, representa a valorização do elemento anímico das relações familiares,
atendendo aos postulados da repersonalização do Direito de Família.
4
A comparação entre a redação dos artigos 175, da Emenda
Constitucional n. 01/69, e 226, da Constituição de 1988, permite a constatação
de que a família, objeto de proteção do Estado, deixou de ser apenas aquela
originada e mantida por meio do casamento. As famílias informal e uniparental
foram finalmente reconhecidas no ordenamento jurídico brasileiro, apesar do
vínculo de filiação já produzir o surgimento de famílias, mesmo antes de 1988,
tuteladas principalmente no campo assistencial.
5 Na
exegese do art. 226, § 3º, da Carta Política de 1988, três aspectos exsurgem no
que tange à tutela da "união estável": a) a questão da eficácia plena
do dispositivo constitucional relativo à proteção que o Estado deve dar aos
companheiros; b) a conversão da "união estável" em casamento,
tratando-se de norma de eficácia limitada de princípio institutivo, pois
depende de regulamentação infraconstitucional para que possa operar efeitos
jurídicos; c) a necessidade de legislação infraconstitucional regulamentadora
também no tocante às relações internas e diretas envolvendo os companheiros.
6
Quanto ao aspecto de proteção que o Estado deve ministrar à
família, a norma constitucional é de eficácia plena e aplicabilidade imediata
e, assim, em todas as ocasiões em que haja tutela estatal quanto à família, no
sentido da proteção contra estranhos e mesmo contra o Poder Público, não há
como restringir o alcance do conceito de família. Os efeitos externos do
companheirismo como instituto formador e mantenedor da família devem ser os
mesmos relativos ao casamento e à monoparentalidade.
7
A Constituição Federal produziu reflexo no Direito Penal, diante
do comando contido no art. 226, no sentido do Estado ter o dever de dar
especial proteção à família, independentemente de sua origem. As normas penais
que tutelam a família não podem mais se limitar aos cônjuges, sob pena de
descumprimento da Lei Maior.
8 Podem
ser identificadas três fases distintas no tratamento do Direito brasileiro ao
tema envolvendo o companheirismo: a) a rejeição ao tratamento benéfico de tais
uniões, consideradas uniões espúrias, imorais, para paulatinamente reconhecer
poucos efeitos, no campo obrigacional, para evitar o enriquecimento sem causa;
b) o início da tutela assistencial, por parte do Estado, mas sem considerar tal
união como espécie de família, com o início da proteção na esfera
previdenciária, da infortunística e outras; c) a tutela constitucional do
companheirismo, ao lado do casamento e da monoparentalidade, com a determinação
da especial proteção que o Estado deve ministrar à família.
9 São
características da família informal ou companheirismo: a) a finalidade de
constituição de família; b) estabilidade; c) unicidade do vínculo; d)
notoriedade; e) continuidade; f) informalismo (ou ausência de formalidade).
10
São requisitos
objetivos da família informal: a) diversidade de sexo; b) ausência de
impedimentos matrimoniais (e circunstanciais); c) comunhão de vida; d) lapso
temporal de convivência. São requisitos subjetivos: a) convivência more
uxorio; b) affectio maritalis.
11
No Direito
Penal, é inadmissível a integração da lacuna por meio da transposição da norma
incriminadora à situação concreta, via processo analógico, sendo apenas
admitido o emprego da analogia com relação às normas penais não-incriminadoras:
(...) admite-se, pois, a analogia in bonam partem, negando-se
aplicação à analogia in malam partem. A circunstância de não se aplicar a
analogia quanto às normas incriminadoras relativas aos casados não favorece aos
companheiros e, logicamente, não prejudica os casados.
12
Nos crimes
contra a assistência familiar, a lei penal busca tutelar, imediatamente, a
manutenção da família, no que concerne à sua subsistência material e moral,
protegendo o dever de assistência material e moral entre os familiares (arts.
231, incs. III e IV, 396, ambos do Código Civil).
13
A lei penal, ao
tutelar a família, visa beneficiar os familiares, considerando a
prevalência do interesse em resguardar a família quando em jogo outro bem
jurídico, de menor relevância. Assim, o Direito Penal institui escusas
absolutórias, algumas causas de extinção da punibilidade e circunstâncias
benéficas ao agente, buscando preservar a família, renunciando ou atenuando o jus
puniendi.
14
A extinção da punibilidade em virtude do
casamento do agente com a vítima, além da reparação do dano causado diante da
prática do crime, tem como principal fundamento preservar a família constituída
entre ambos. Há presunção juris et de jure que a instituição familiar
merece ser protegida em detrimento do jus puniendi estatal. Já na
hipótese de casamento da vítima com terceiro, não há tal presunção absoluta,
porquanto pode interessar à sociedade a punição do criminoso diante da
gravidade do crime, ou por iniciativa da vítima — daí o tratamento mais
rigoroso da lei penal. Em ambas as hipóteses, diante da norma constitucional de
1988, é possível a aplicação da analogia para abranger a constituição da
família informal após o crime.
15
No tocante à
extinção da punibilidade consistente no perdão judicial, mormente nas hipóteses
de homicídio e lesões corporais culposas, apesar de não diretamente se
relacionar à proteção da família, antes mesmo da Constituição de 1988, já se
considerava o grande sofrimento de um dos companheiros diante do
desaparecimento do outro ou, em virtude das graves lesões e seqüelas sofridas
pelo consorte. Assim, o sofrimento torna desnecessária a punição do companheiro
em tais casos.
16
A circunstância
da emoção ou paixão, ora tratada como circunstância genérica atenuante, ora
como causa de diminuição de pena, também não está diretamente relacionada à
família, mas considerando que se refere a elemento anímico muito freqüente na
vida a dois, é perfeitamente compatível nos crimes envolvendo um dos cônjuges
ou companheiros, independentemente da influência da Constituição Federal.
17
O rapto para fim
de casamento, ainda que este não se concretize, gera diminuição da pena do
agente, levando em consideração o desejo de formar uma nova família, razão pela
qual pode perfeitamente ser adotada a analogia para integrar a norma penal em
relação ao agente que pretendia se unir, em companheirismo, à vítima,
constituindo organismo familiar, ainda que o seu intento não venha a se
concretizar.
18 A
família constituída pelo casamento, na dicção da Emenda Constitucional n.
01/69, é instituição bem mais restrita que a “família, base da sociedade”,
prevista na Constituição Federal de 1988. No âmbito do Direito Penal, os
preceitos que tutelavam a família, os valores e relações próprias da
instituição familiar, não se aplicavam aos companheiros, diante da regra
contida no art. 175, caput, da Emenda n. 01/69 à Constituição de 1967.
19
A ordem de
proteção à família, emanada do art. 226, da Constituição Federal, tem como
destinatário-subordinado o Estado (Poder Público) em todas as suas funções.
20
O recurso à
analogia no âmbito do Direito Penal é essencial para dar efetividade ao comando
constitucional, pois: a) a lei penal não cuida da proteção da família informal;
b) a lei penal regula situação que guarda coincidência com aquela não regulada,
ou seja, protege a família formal; c) as duas situações apresentam ponto comum,
pois ambas as famílias são beneficiárias das medidas e ações do Poder Público
com o objetivo de cumprir a regra da proteção à instituição familiar.
21
A regra
constitucional da preponderância do casamento sobre o companheirismo é
plenamente cumprida no sistema penal em vigor.
22
Não há óbice a que a legislação penal que tutela a família
prossiga inalterada, sendo perfeitamente compatível com a Constituição Federal,
devendo se aplicar o recurso ao processo analógico para proteger a família
informal quanto às normas penais não-incriminadoras.
NOTAS
1 GOMES, 1984. p. 38-39.
2 VILLELA, 1994. p. 641-642.
3 BARBOSA, 1994. p. 232.
4 Quase com os mesmos
dizeres, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos assentou: A família é
o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela
sociedade e pelo Estado.
5 GAMA, 1998. p. 44.
6
Idem. p. 56-57.
7 OLIVEIRA, 1997. p. 338.
8 GAMA,1998. p. 97.
9 PENTEADO, 1998. p. 31.
10 Idem. p. 32.
11 LUISI, 1998. p. 105.
12 Apesar de entender que o
Direito brasileiro havia evoluído e que deveria rever sua posição na matéria em
relação ao companheirismo, no período anterior
ao advento da Constituição de 1988, Ruy Cardoso Tucunduva reconheceu a
inaplicabilidade da regra do art. 181, inc. I, do Código Penal, aos
companheiros, sugerindo que fosse concedido perdão judicial em tais casos
(TUCUNDUVA, 1975. p. 251).
13 Ora previstas como
circunstâncias legais genéricas, ora tratadas como circunstâncias legais especiais
(causas de diminuição da pena).
14 GAMA, 1998. p. 509.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BARBOSA, Heloisa Helena. Novas
tendências do direito de família. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, Rio
de Janeiro, n. 2, p. 227-232, 1994.
GAMA, Guilherme Calmon
Nogueira da. O companheirismo: uma espécie de família. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1998.
GOMES, Orlando. Direito de
família. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
LUISI, Luiz. Bens
constitucionais e criminalização. Revista CEJ. Brasília, n. 4, p.
103-108, jan./abr. 1998.
OLIVEIRA, Euclides Benedito.
União estável: reflexos na esfera penal. Revista Jurídica do Instituto de
Pesquisas e Estudos, Bauru, p. 337-342, ago./nov. 1997.
PENTEADO, Jaques de Camargo. A
família e a justiça penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
VILLELA, João Baptista. As
novas relações da família. In: CONFERÊNCIA NACIONAL DA OAB, n. 15, Foz do
Iguaçu. Anais. Foz do Iguaçu: OAB, 1994. p. 639-647.
TUCUNDUVA, Ruy Cardoso de
Mello. Imunidades penais nos crimes contra o patrimônio. Justitia, v.
37, n. 88, p. 245-252,1975.
Retirado
de:
http://www.direitoejustica.com/cgi-bin/links/jump.cgi?ID=6684&Title=A%20Família%20Contemporânea%20no%20Direito%20Penal
Palavras chaves: família contemporânea direito penal relações constituição federal norma penal incriminadora filiação assistência seqüestro lenocínio incapaz casamento curatela tutela pátrio poder punibilidade