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Reparação do dano no peculato doloso
Arthur Cogan
A Lei nº 1.785, de 28 de novembro
de 1907, punia, unicamente, o peculato doloso, estabelecendo que "o
funcionário público que subtrair ou distrair dinheiros, documentos, títulos de
créditos, efeitos, gêneros ou bens móveis públicos ou particulares, dos quais
tenha a guarda ou administração ou o depósito, em razão de seu cargo, quer este
seja gratuito ou remunerado, quer seja temporário ou permanente, será
punido" (art. 1º) com prisão celular, multa e inabilitação para exercer
qualquer função pública (itens a e b).
No seu art. 2º estabelecia que se
antes do julgamento fosse ressarcido "o prejuízo causado mediante a
restituição voluntária da coisa subtraída ou distraída", não haveria pena
celular e multa, mas, tão-somente, "inabilitação para exercer qualquer função
pública durante doze anos, no mínimo, e de vinte, no máximo".
No mesmo diapasão, o Decreto nº
2.110, de 30 de setembro de 1909, no seu art. 1º, manteve a redação da Lei nº
1.785, estabelecendo, porém, como pena única, na reparação, a
"inabilitação para exercer qualquer função pública por cinco a quinze
anos" (art. 2º).
Foi o Decreto nº 4.780, de 27 de
dezembro de 1923, que introduziu na legislação o peculato culposo,
estabelecendo que "se provar que o funcionário agiu sem dolo, mas com
imperícia ou negligência" (art. 3º, § 1º), seria passível de
"suspensão do emprego por seis meses a dois anos, além da multa de 15%
sobre o dano".
Penalizado o delito de peculato
culposo, só a ele limitou-se a isenção de pena celular e multa, uma vez que
"a isenção do art. 2º, nº 2, da Lei nº 2.110, de 1909, que permitia o
ressarcimento do dano causado, evitando para o réu a imposição da pena
corporal, foi revogado pela Lei nº 4.780, de 1923" (Acórdão do Supremo
Tribunal Federal de 2 de maio de 1928 – Revista de Direito, vol. 89, pág. 540).
Anotou Hungria que "a Lei nº
2.110, de 1909, declarava excluído o próprio peculato doloso, se antes do
julgamento fosse "integralmente ressarcido o prejuízo, mediante
restituição ou pagamento da coisa subtraída ou distraída". O Decreto nº 4.780,
de 1923, porém, veio a repudiar semelhante critério, o mesmo fazendo o Código
de 40, que "somente condescende na hipótese do peculato culposo".(1)
Indagava, ainda, Hungria:
"por que motivo a reparação do dano haveria de excluir a imposição de pena
no caso de peculato, quando não tem semelhante efeito no caso menos grave dos
crimes contra o patrimônio dos particulares? O antigo critério atribuía ao
Estado uma sórdida política de Harpagão, a preocupar-se exclusivamente com a
defesa do erário" (2).
É certo que o Código de 1940 só
contempla com benefícios o ressarcimento do dano no peculato culposo,
consignando que "se precede à sentença irrecorrível, extingue a
punibilidade; se lhe é posterior, reduz de metade a pena imposta" (art.
312, § 3º).
A edição da Lei nº 7.209, de 11
de julho de 1984, criando a figura do arrependimento posterior à consumação do
delito como causa obrigatória de redução da pena, trouxe à baila a indagação da
sua aplicabilidade no delito de peculato doloso.
Diz o art. 16, com a redação que lhe
foi dada pela Lei nº 7.209: "nos crimes cometidos sem violência ou grave
ameaça a pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da
denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um
a dois terços", situação diversa da atenuante genérica de ter o agente
"antes do julgamento, reparado o dano" (art. 65, III, "b").
Para Mirabete, "o
dispositivo no artigo 16 é uma causa obrigatória de diminuição da pena, que
pode ser reduzida de um a dois terços nos crimes cometidos sem violência ou
grave ameaça à pessoa. Abrange, pois, não só os crimes contra o patrimônio
(furto, estelionato, apropriação indébita etc.), como também todos os demais em
que ocorra um prejuízo patrimonial à vítima. Aplica-se o dispositivo aos crimes
dolosos e culposos, consumados ou tentados".(3)
Não é tranqüila a possibilidade
de aplicação do disposto no art. 16 aos crimes culposos, entendendo Celso
Delmanto que "tratando-se de crimes culposos não deve incidir a restrição
de terem sido cometidos "sem violência à pessoa", pois nos delitos
culposos a violência nunca é querida pelo agente, de modo que não se pode dizer
ter ele "cometido o crime com violência"" (4)
Relator de acórdão, quando Juiz
no Tribunal de Alçada Criminal, o Desembargador Dante Busana concluiu que
"o arrependimento posterior (art. 16 do C.P.) alcança também os crimes não
patrimoniais em que a devolução da coisa ou o ressarcimento do dano seja
possível, ainda que culposos e contra a pessoa. Neste último caso, a violência
que atinge o sujeito passivo não é querida pelo agente, o que impede afirmar
tenha sido o delito cometido, isto é, praticado, realizado, perpetrado, com
violência, pois esta aparece no resultado e não na conduta" /JTACrSP – Lex
– vol. 89, pág. 440).
No peculato culposo, como já
anotado, por força da própria disposição substantiva, as conseqüências da
reparação do dano são mais amplas do que a previsão do art. 16, pois se o
ressarcimento ocorrer até o trânsito em julgado da decisão, há total extinção
da punibilidade, e reduz a pena pela metade se a reparação ocorrer depois.
A questão que surge é de se saber
se o disposto no art. 16 é aplicável na prática do peculato doloso.
A matéria, também, não é
tranqüila.
Para Celso Delmanto "embora
este artigo 3º não incida nas demais modalidades de peculato, nelas é aplicável
o art. 16 do CP." (5).
Assim entendeu a 3ª Câmara do
Tribunal de Justiça de São Paulo: "No crime de peculato, a restituição do
valor apropriado aos cofres públicos, ainda que com alguma pressão procedimental,
antes do recebimento da denúncia, caracteriza arrependimento posterior. Tal
circunstância, aliada à primariedade do agente, possibilita a diminuição da
reprimenda no grau máximo, conforme o artigo 16 do Código Penal" (Apelação
nº 82.134-3 – Revista dos Tribunais – vol. 671/302).
Também a 6ª Câmara do mesmo
Tribunal reformulou decisão de primeira instância que entendeu que "embora
reparado o dano, inaplicável o dispositivo, porque irreparável a moralidade
administrativa, resguardada pelo legislador e também atingida".
Entendeu a respeitável Câmara que
"o artigo mencionado apenas exclui a sua incidência aos delitos praticados
"com grave ameaça ou violência à pessoa", ficando, bem claro, que aos
demais delitos é ele aplicável. Não se pode distinguir onde a lei não
distingue, principalmente, tratando-se, como se trata de dispositivo contido em
lei repressiva" (Apelação nº 70.538-3 – RJTJSP – Lex – vol. 123/461).
A mesma 6ª Câmara Criminal do
Tribunal de Justiça decidiu que "o crime de peculato não é crime contra o
patrimônio, mas infração praticada contra o bom nome da Administração Pública,
de sorte que o ressarcimento do dano não elide, influindo apenas na dosimetria
da pena. Se a reparação se opera antes do início da ação penal por ato
voluntário do agente, a reprimenda deve ser reduzida no grau máximo",
havendo voto divergente que entendeu que a reparação ocorrida "foi
continência de coação moral exercida sobre o réu" que não pode
"beneficiar-se da discutida diminuente de pena" (Apelação nº 56.588-3
- Revista dos Tribunais – vol. 632/276).
O 3º Grupo de Câmaras Criminais
do Tribunal de Justiça acolheu a mesma interpretação: "o delito de
peculato não é crime contra o patrimônio, mas infração praticada contra o bom
nome da Administração Pública, de sorte que o ressarcimento do dano
(arrependimento posterior – art. 16 do C.P.) não o elide" mas influi na
dosagem da pena (Embargos Infringentes nº 56.588 – Revistas dos Tribunais –
vol. 641/311).
Destaca Alberto da Silva Franco
que "a amplitude emprestada ao arrependimento posterior, para efeito de
ser reconhecido também em relação a crimes não patrimoniais, é inconveniente e
geradora de grave perigo. A redução punitiva obrigatória deixará sem a
necessária proteção alguns bens jurídicos de alta valia, como, por exemplo, a
administração pública, e poderá afinal ter aplicação elitista, posto que se
trata de privilégio à disposição de afortunados" (6).
Decisões há que entendem, e bem,
que o art. 16 não é aplicável às penas decorrentes da prática de peculado doloso.
É da 4ª Câmara Criminal do
Tribunal de Justiça de São Paulo a decisão de que "o peculato não é crime
contra o patrimônio, mas infração praticada contra o bom nome da Administração
Pública, de sorte que o ressarcimento do dano não elide, tampouco importa
redução de pena" (Apelação nº 76.935-3 – Revista dos Tribunais – vol.
659/253).
O mesmo entendimento é esposado
pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais: "Por ser o peculato infração
praticada contra o bom nome da Administração Pública e não crime contra o
patrimônio, o arrependimento posterior não pode ser a ele aplicável. O
ressarcimento do dano ou a restituição da coisa, por ato voluntário do agente,
até o recebimento da denúncia, não elide o delito de peculato nem importa em
redução de pena" (Apelação nº 47.572-3 – Revista dos Tribunais – vol.
736/679).
A 2ª Câmara Criminal do Tribunal
de Justiça de São Paulo, ao apreciar crime de falsificação, decidiu que
"corrigida a capitulação, na fixação da pena há que se reconhecer que
merece ela ficar no mínimo legal, porém, o art. 16 do CP, já que, sobre não se
vislumbrar voluntariedade no gesto da apelada, que à reparação foi compelida
pelo inquérito já instaurado, o que se entende é que o preceito em questão,
incide apenas nos delitos patrimoniais, não em crimes contra a fé
pública," (JTJSP – Lex – vol. 124/471).
Esclareceu a Exposição de Motivos
que antecede a Lei nº 7.209 que a inovação trazida pelo art. 16 "constitui
providência de Política Criminal e é instituída menos em favor do agente do
crime do que da vítima. Objetiva-se, com ela, substituir um estímulo à
reparação do dano, nos crimes cometidos "sem violência ou grave ameaça à
pessoa"".
Ocorre que no crime de peculato
doloso "o sujeito passivo ou ofendido é o Estado, pois o crime é contra a
administração pública. Tal acontece ainda quando o bem apropriado é de
particular, já porque o delito não deixa de assim ser classificado, já porque é
inegável que o fato ofende aos interesses estatais, referentes ao
desenvolvimento normal - eficiente e probo - de sua atividade. São, pois,
sujeitos passivos a União, os Estados e os Municípios. Também são as entidades
paraestatais ou autárquicas, em face da equiparação" (7).
A reparação do dano – seja o
prejuízo do particular ou da administração – não elide o crime, já que
"convergem no peculato a violação do dever funcional e o dano
patrimonial" (8) e "não é apenas um crime contra o patrimônio do
Estado, mas, principalmente, uma traição à função pública" (9).
A aplicação do benefício,
indiscriminadamente, desde que o agente não tenha usado de violência ou grave
ameaça, mesmo nos delitos que a violência ou grave ameaça não integram o tipo,
leva a uma generalização perigosa e preconceituosa.
Equiparar os crimes contra a
administração pública com os demais delitos – patrimoniais ou não – é deixar de
atentar para circunstância especialíssima de que nos primeiros "o objeto
jurídico da incriminação não é tanto a defesa dos bens patrimoniais da
administração pública, quanto o interesse do Estado na probidade e fidelidade
do funcionário, levando Carrara a não hesitar em classificar o peculato entre
os delitos contra a fé pública" (10).
O que o peculato atinge "é a
confiança da administração pública. O patrimônio pode ser ponto de incidência
imediata material, mas nem sempre o é" (11) e o dano "mais que
material é moral e político" (12).
Há que se entender, portanto, que
delitos sem violência ou grave ameaça à pessoa são aqueles em que o bem
atingido é unicamente patrimonial e a vítima poderia, eventualmente, ser atingida
em sua integridade física.
Se a reforma penal
"refere-se a crimes cometidos com ou sem violência, com ou sem grave
ameaça à pessoa, para o fim de determinar o tratamento penal com maior ou menor
severidade, conforme ocorra uma ou outra hipótese", diversificando a
criminalidade violenta e a criminalidade astuciosa em que os meios cruéis de
execução são substituídos "pela astúcia ou estratagemas mais ou menos bem
engendrados, geralmente ardilosos" (13), entre os quais se enquadra o
peculato, não menos certo é que "a procura de instrumental mais adequado
de combate ao crime deve ser feita com muito engenho e arte, para não se pôr em
risco o que já constitui valiosa conquista da humanidade" (14).
Porque no peculato doloso
"não se deve levar em conta unicamente o que possa ser estimado
pecuniariamente" mas"cumpre ter atenção, também, o interesse
moral" (15). A reparação até o oferecimento da denúncia não elide o dano
por "uma traição à função pública", sendo inaplicável o art. 16 do
Código Penal, devendo o arrependimento posterior servir de atenuante na
aplicação da pena, como previsto no art. 65, III, "b", do mesmo
estatuto.
(*) – Ex-Corregedor-Geral do Ministério
Público; professor.
(1) – "Comentários ao Código Penal" – vol. IX, pág. 350 –
1958;
(2) – obra e volumes citados – pág. 350;
(3) – "Manual de Direito Penal", vol. 1, pág. 163 – 2ª edição;
(4) – "Código Penal Comentado" – pág. 26 – 3ª edição;
(5) – obra citada – pág. 473;
(6) – "Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial" –
pág. 173 – 5ª edição;
(7) – Magalhães Noronha – "Direito Penal" – vol. 4, pág. 210,
18ª edição;
(8) – Nelson Hungria – obra e volume citados, pág. 343;
(9) – Nelson Hungria – obra e volume citados, pág. 350;
(10) – Giuseppe Maggiore – "Direito Penale"- vol. II – 1ª
parte – pág. 130 – 4ª edição;
(11) – Fernando Henrique Mendes de Almeida – “Dos Crimes contra a
Administração Pública”, pág. 13 – 1995;
(12) – Giuseppe Maggiore – obra e volume citados – pág. 130;
(13) – Francisco de Assis Toledo – “Princípios Básicos de Direito Penal”
– pág. 140 – 2ª edição;
(14) – Francisco de Assis Toledo – obra citada – pág. 67;
(15) – Fernando Henrique Mendes de Almeida – obra citada – pág. 14;
Retirado de: http://www.mp.sp.gov.br/justitia/(3)Peculatodoloso.html
Palavras chaves: reparação dano peculato doloso