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EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS DA PARTE ESPECIAL DO CÓDIGO PENAL

(Decreto-Lei n.º 2.848, de 7/12/1940) (*3)

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E NEGÓCIOS INTERIORES

GABINETE DO MINISTRO

 

Em 4 de novembro de 1940.

Senhor Presidente:

1. Com o atual Código Penal nasceu a tendência de reformá-lo. A datar de sua entrada em vigor começou a cogitação de emendar-lhe os erros e falhas. Retardado em relação a ciência penal do seu tempo, sentia-se que era necessário colocá-lo em dia com as idéias dominantes no campo da criminologia e, ao mesmo tempo, ampliar-lhe os quadros de maneira a serem contempladas novas figuras delituosas com que os progressos industriais e técnicos enriqueceram o elenco dos fatos puníveis.

Já em 1893, o Deputado Vieira de Araújo apresentava a Câmara dos Deputados o projeto de um novo Código Penal. A este projeto foram apresentados dois substitutivos, um do próprio autor do projeto e o outro da Comissão Especial da Câmara. Nenhum dos projetos, porem, conseguiu vingar. Em 1911, o Congresso delegou ao Poder Executivo a atribuição de formular um novo projeto. O projeto de autoria de Galdino Siqueira, datado de 1913, não chegou a ser objeto de consideração legislativa. Finalmente, em 1927, desincumbindo-se de encargo que lhe havia sido cometido pelo Governo, Sá Pereira organizou o seu projeto, que, submetido a uma comissão revisora composta do autor do projeto e dos Drs. Evaristo de Morais e Bulhões Pedreira, foi apresentado em 1935 a Consideração da Câmara dos Deputados. Aprovado por esta, passou ao Senado e neste se encontrava em exame na Comissão de justiça, quando sobreveio o advento da nova ordem política.

A Conferencia de Criminologia, reunida no Rio de Janeiro em 1936, dedicou os seus trabalhos ao exame e a critica do projeto revisto, apontando nele deficiências e lacunas, cuja correção se impunha. Vossa Excelência resolveu, então, que se confiasse a tarefa de formular novo projeto ao Dr. Alcântara Machado, eminente professor da Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1938, o Dr. Alcântara Machado entregava ao Governo o novo projeto, cuja publicação despertou o mais vivo interesse.

A matéria impunha, entretanto, pela sua delicadeza e por suas notórias dificuldades, um exame demorado e minucioso. Sem desmerecer o valor do trabalho de que se desincumbirá o Professor Alcântara Machado, julguei de bom aviso submeter o projeto a uma demorada revisão, convocando para isso técnicos, que se houvessem distinguido não somente na teoria do direito criminal como também na prática de aplicação da lei penal.

Assim, constitui a Comissão revisora com os ilustres magistrados Vieira Braga, Nelson Hungria e Narcélio de Queiroz e com um ilustre representante do Ministério Público, o Dr. Roberto Lira.

Durante mais de um ano a Comissão dedicou-se quotidianamente ao trabalho de revisão, cujos primeiros resultados comuniquei ao eminente Dr. Alcântara Machado, que, diante deles, remodelou o seu projeto, dando-lhe uma nova edição. Não se achava, porem, ainda acabado o trabalho de revisão. Prosseguiram com a minha assistência e colaboração até que me parecesse o projeto em condições de ser submetido a apreciação de Vossa Excelência.

Dos trabalhos da Comissão revisora resultou este projeto. Embora da revisão houvessem advindo modificações a estrutura e ao plano sistemático, não há dúvida que o projeto Alcântara Machado representou, em relação aos anteriores, um grande passo no sentido da reforma da nossa legislação penal. Cumpre-me deixar aqui consignado o nosso louvor a obra do eminente patrício, cujo valioso subsidio ao atual projeto nem eu, nem os ilustres membros da Comissão revisora deixamos de reconhecer.

2. Ficou decidido, desde o inicio do trabalho de revisão, excluir do Código Penal as contravenções, que seriam objeto de lei a parte. Foi, assim, rejeitado o critério inicialmente proposto pelo Professor Alcântara Machado, de abolir-se qualquer distinção entre crimes e contravenções. Quando se misturam coisas de somenos importância com outras de maior valor, correm estas o risco de se verem amesquinhadas. Não e que exista diversidade ontológica entre crime e contravenção; embora sendo apenas de grau ou quantidade a diferença entre as duas espécies de ilícito penal, pareceu-nos de toda conveniência excluir do Código Penal a matéria tão miúda, tão varia e tão versátil das contravenções, dificilmente subordinável a um espirito de sistema e adstrita a critérios oportunísticos ou meramente convencionais e, assim, permitir que o Código Penal se furtasse, na medida do possível, pelo menos aquelas contingências do tempo a que não devem estar sujeitas as obras destinadas a maior duração.

A lei de coordenação, cujo projeto terei ocasião de submeter proximamente a apreciação de Vossa Excelência, dará o critério prático para distinguir-se entre crime e contravenção.

PARTE ESPECIAL

DOS CRIMES CONTRA A PESSOA

37. O Título I da "Parte Especial" ocupa-se dos crimes contra a pessoa, dividindo-se em seis capítulos, com as seguintes rubricas: "Dos crimes contra a vida", "Das lesões corporais", "Da periclitação da vida e da saúde", "Da rixa", "Dos crimes contra a honra" e "Dos crimes contra a liberdade individual". Não há razão para que continuem em setores autônomos os "crimes contra a honra" e os "crimes contra a liberdade individual" (que a lei atual denomina "crimes contra o livre gozo e exercício dos direitos individuais"): seu verdadeiro lugar e entre os crimes contra a pessoa, de que constituem subclasses. A honra e a liberdade são interesses, ou bens jurídicos inerentes a pessoa, tanto quanto o direito a vida ou a integridade física.

DOS CRIMES CONTRA A VIDA

38. O projeto mantém a diferença entre uma forma simples e uma forma qualificada de "homicídio" . As circunstâncias qualificativas estão enumeradas no § 2° do art. 121. Umas dizem com a intensidade do dolo, outras com o modo de ação ou com a natureza dos meios empregados; mas todas são especialmente destacadas pelo seu valor sintomático: são circunstâncias reveladoras de maior periculosidade ou extraordinário grau de perversidade do agente. Em primeiro lugar, vem o motivo torpe (isto e, o motivo que suscita a aversão ou repugnância geral, v. g.: a cupidez, a luxuria, o despeito da imoralidade contrariada, o prazer do mal etc.) ou fútil (isto e, que, pela sua mínima importância, não e causa suficiente para o crime). Vem a seguir o "emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso (isto e, dissimulado na sua eficiencia maléfica) ou cruel (isto e, que aumenta inutilmente o sofrimento da vítima, ou revela uma brutalidade fora do comum ou em contraste com o mais elementar sentimento de piedade) ou de que possa resultar perigo comum". Deve notar-se que, para a inclusão do motivo fútil e emprego de meio cruel entre as agravantes que qualificam o homicídio, há mesmo uma razão de ordem constitucional, pois o único crime comum, contra o qual a nossa vigente Carta Política permite que a sanção penal possa ir até a pena de morte, e o "homicídio cometido por motivo fútil e com extremos de perversidade" (art. 122, n.° 13, j). São também qualificativas do homicídio as agravantes que traduzem um modo insidioso da atividade executiva do crime (não se confundindo, portanto, com o emprego de meio insidioso), impossibilitando ou dificultando a defesa da vítima (como a traição, a emboscada, a dissimulação etc.). Finalmente, qualifica o homicídio a circunstância de ter sido cometido "para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime". É claro que esta qualificação não diz com os casos em que o homicídio e elemento de crime complexo (in exemplis: arts. 157, § 3°, in fine, e 159, § 3°), pois, em tais casos, a pena, quando não mais grave, e, pelo menos, igual a do homicídio qualificado.

39. Ao lado do homicídio com pena especialmente agravada, cuida o projeto do homicídio com pena especialmente aténuada, isto e, o homicídio praticado "por motivo de relevante valor social, ou moral", ou "sob o domínio de emoção violenta, logo em seguida a injusta provocação da vítima". Por "motivo de relevante valor social ou moral", o projeto entende significar o motivo que, em si mesmo, e aprovado pela moral prática, como, por exemplo, a compaixão ante o irremediável sofrimento da vítima (caso do homicídio eutanásico), a indignação contra um traidor da pátria etc.

No tratamento do homicídio culposo, o projeto aténdeu a urgente necessidade de punição mais rigorosa do que a constante da lei penal atual, comprovadamente insuficiente. A pena cominada e a de detenção por 1 (um) a 3 (três) anos, e será especialmente aumentada se o evento "resulta da inobservância de regra técnica de profissão, arte, ofício ou atividade", ou quando "o agente deixa de prestar imediato socorro a vítima, não procura diminuir as conseqüências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante". Deve notar-se, além disso, que entre as penas acessórias (Capítulo V do Título V da Parte Geral), figura a de "incapacidade temporária para profissão ou atividade cujo exercício depende de licença, habilitação ou autorização do poder público", quando se traté de crime cometido com infração de dever inerente a profissão ou atividade. Com estes dispositivos, o projeto visa, principalmente, a condução de automóveis, que constitui, na atualidade, devido a um generalizado descaso pelas cautelas técnicas (notadamente quanto a velocidade), uma causa freqüente de eventos lesivos contra a pessoa, agravando-se o mal com o procedimento post factum dos motoristas, que, tão somente com o fim egoístico de escapar a prisão em flagrante ou a ação da justiça penal, sistematicamente imprimem maior velocidade ao veículo, desinteressando-se por completo da vítima, ainda quando um socorro imediato talvez pudesse evitar-lhe a morte.

40. O infanticídio e considerado um delictum exceptum quando praticado pela parturiente sob a influencia do estado puerperal. Esta cláusula, como e obvio, não quer significar que o puerpério acarrete sempre uma perturbação psíquica: e preciso que fique averiguado ter esta realmente sobrevindo em conseqüência daquele, de mo do a diminuir a capacidade de entendimento ou de auto-inibição da parturiente. Fora dai, não há por que distinguir entre infanticídio e homicídio. Ainda quando ocorra a honoris causa (considerada pela lei vigente como razão de especial abrandamento da pena), a pena aplicável e a de homicídio.

41. Ao configurar o crime de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, o projeto contem inovações: e punível o fato ainda quando se frustre o suicídio, desde que resulte lesão corporal grave ao que tentou matar-se; e a pena cominada será aplica da em dobro se o crime obedece a móvel egoístico ou e praticado contra menor ou pessoa que, por qualquer outra causa, tenha diminuído a capacidade de resistência.

Mantém o projeto a incriminação do aborto, mas declara penalmente licito, quando praticado por medico habilitado, o aborto necessário, ou em caso de prenhez resultante de estupro. Militam em favor da exceção razões de ordem social e individual, a que o legislador penal não pode deixar de aténder.

DAS LESÕES CORPORAIS

42. O crime de lesão corporal e definido como ofensa a integridade corporal ou saúde, isto e, como todo e qualquer dano ocasionado a normalidade funcional do corpo humano, quer do ponto de vista anatômico, quer do ponto de vista fisiológico ou mental. Continua-se a discriminar, para diverso tratamento penal, entre a lesão de natureza leve e a de natureza grave. Tal como na lei vigente, a lesão corporal grave, por sua vez, e considerada, para o efeito de graduação da pena, segundo sua menor ou maior gravidade objetiva. Entre as lesões de menor gravidade figura (a semelhança do que ocorre na lei atual) a que produz "incapacidade para as ocupações habituais, por mais de 30 (trinta) dias"; mas, como uma lesão pode apresentar gravíssimo perigo (dado o ponto atingido) e, no entanto, ficar curada antes de l (um) mês, entendeu o projeto de incluir nessa mesma classe, sem referencia a condição de tempo ou a qualquer outra, a lesão que produz "perigo de vida". Outra inovação e o reconhecimento da gravidade da lesão de que resulte "debilitação permanente de membro, sentido ou função'', ou "aceleração de parto".

Quanto as lesões de maior gravidade, também não e o projeto coincidente com a lei atual, pois que: a) separa, como condições autônomas ou por si sós suficientes para o reconhecimento da maior gravidade, a "incapacidade permanente para o trabalho" ou "enfermidade certa ou provavelmente incurável"; b) delimita o conceito de deformidade (isto e, acentua que esta deve ser "permanente"); c) inclui entre elas a que ocasiona aborto. No § 3° do art. 129, e especialmente previsto e resolvido o caso em que sobrevem a morte do ofendido, mas evidenciando as circunstâncias que o evento letal não se compreendia no dolo do agente, isto e, o agente não queria esse resultado, nem assumira o risco de produzi-lo, tendo procedido apenas vulnerandi animo.

Costuma-se falar, na hipótese, em "homicídio preterintencional", para reconhecer-se um grau intermédio entre o homicídio doloso e o homicídio culposo; mas tal denominação, em face do conceito extensivo do dolo, acolhido pelo projeto, torna-se inadequada: ainda quando o evento "morte" não tenha sido, propriamente, abrangido pela intenção do agente, mas este assumiu o risco de produzi-lo, o homicídio e doloso.

A lesão corporal culposa e tratada no art. 129, § 6°. Em consonância com a lei vigente, não se distingue, aqui, entre a maior ou menor importância do dano matérial: leve ou grave a lesão, a pena e a mesma, isto e, detenção por 2 (dois) meses a 1 (um) ano (sanção mais severa do que a editada na lei atual). E especialmente agravada a pena nos mesmos casos em que o e a cominada ao homicídio culposo. Deve notar-se que o caso de multiplicidade do evento lesivo (varias lesões corporais, ou varias mortes, ou lesão corporal e morte), resultante de uma só ação ou omissão culposa, e resolvido segundo a norma genérica do § 1° do art. 51.

Ao crime de lesões corporais e aplicável o disposto no § 1° do art. 121 (facultativa diminuição da pena, quando o agente "comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob a influencia de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima"). Tratando-se de lesões leves, se ocorre qualquer das hipóteses do parágrafo citado, ou se as lesões são reciprocas, o juiz pode substituir a pena de detenção pela de multa (de duzentos mil-réis a dois contos de réis).

DA PERICLITAÇÃO DA VIDA E DA SAÚDE

43. Sob esta epígrafe, o projeto contempla uma serie de crimes de perigo contra a pessoa, uns já constantes, outros desconhecidos da lei penal vigente. Pelo seu caráter especial, seja quanto ao elemento objetivo, seja quanto ao elemento subjetivo, tais crimes reclamam um capitulo próprio. Do ponto de vista matérial, reputam-se consumados ou perfeitos desde que a ação ou omissão cria uma situação objetiva de possibilidade de dano a vida ou saúde de alguém. O evento, aqui (como nos crimes de perigo em geral), e a simples exposição a perigo de dano. O dano efetivo pode ser uma condição de maior punibilidade, mas não condiciona o momento consumativo do crime. Por outro lado, o elemento subjetivo e a vontade consciente referida exclusivamente a produção do perigo. A ocorrência do dano não se compreende na volição ou dolo do agente, pois, do contrario, não haveria por que distinguir entre tais crimes e a tentativa de crime de dano.

44. Entre as novas entidades prefiguradas no capitulo em questão, depara-se, em primeiro lugar, com o "contagio venéreo". Já há mais de meio século, o medico francês Desprès postulava que se incluísse tal fato entre as espécies do ilícito penal, como já fazia, alias, desde 1866, a lei dinamarquesa. Tendo o assunto provocado amplo debaté, ninguém mais dúvida, atualmente, da legitimidade dessa incriminação. A doença venérea e uma lesão corporal e de conseqüências gravíssimas, notadamente quando se trata da sífilis. O mal da contaminação (evento lesivo) não fica circunscrito a uma pessoa determinada. O indivíduo que, sabendo-se portador de moléstia venérea, não se priva do ato sexual, cria conscientemente a possibilidade de um contagio extensivo. Justifica-se, portanto, plenamente, não só a incriminação do fato, como o critério de declarar-se suficiente para a consumação do crime a produção do perigo de contaminação. Não há dizer-se que, em grande numero de casos, será difícil, senão impossível, a prova da autoria. Quando esta não possa ser averiguada, não haverá ação penal (como acontece, alias, em relação a qualquer crime); mas a dificuldade de prova não e razão para deixar-se de incriminar um fato gravemente aténtatório de um relevante bem jurídico. Nem igualmente se objete que a incriminação legal pode dar ensejo, na prática, a chantagens ou especulação extorsiva. A tal objeção responde cabalmente Jimenez de Asúa (O delito de contagio venéreo): "... não devemos esquecer que a chantagem e possível em muitos outros crimes, que, nem por isso, deixam de figurar nos Códigos. O melhor remédio e punir severamente os chantagistas, como propõem Le Foyer e Fiaux". Ao conceituar o crime de contagio venéreo, o projeto rejeitou a formula híbrida do Código italiano (seguida pelo projeto Alcântara), que configura, no caso, um "crime de dano com dolo de perigo". Foi preferida a formula do Código dinamarquês: o crime se consuma com o simples fato da exposição a perigo de contágio. O eventus damni não e elemento constitutivo do crime, nem e tomado em consideração para o efeito de maior punibilidade. O crime e punido não só a titulo de dolo de perigo, como a titulo de culpa (isto e, não só quando o agente sabia achar-se infeccionado, como quando devia sabe-lo pelas circunstâncias). Não se faz enumeração taxativa das moléstias venéreas (segundo a lição cientifica, são elas a sífilis, a blenorragia, o ulcus molle e o linfogranuloma inguinal), pois isso e mais próprio de regulamento sanitário. Segundo dispõe o projeto (que, neste ponto, diverge do seu modelo), a ação penal, na espécie, depende sempre de reprentação (e não apenas no caso em que o ofendido seja cônjuge do agente). Este critério e justificado pelo raciocínio de que, na repressão do crime de que se trata, o strepitus judicii, em certos casos, pode ter consequências gravíssimas, em desfavor da própria vítima e de sua família.

45. É especialmente prefigurado, para o efeito de majoração da pena, o caso em que o agente tenha procedido com intenção de transmitir a moléstia venérea. É possível que o rigor técnico exigisse a inclusão de tal hipótese no capitulo das lesões corporais, desde que seu elemento subjetivo e o dolo de dano, mas como se trata, ainda nessa modalidade, de um crime para cuja consumação basta o dano potencial, pareceu a Comissão revisora que não havia despropósito em classificar o fato entre os crimes de perigo contra a pessoa. No caso de dolo de dano, a incriminação e extensiva a criação do perigo de contagio de qualquer moléstia grave.

46. No art. 132, é igualmente prevista uma entidade criminal estranha a lei atual: "expor a vida ou saúde de outrem a perigo direto e iminente", não constituindo o fato crime mais grave. Trata-se de um crime de caráter eminentemente subsidiário. Não o informa o animus necandi ou o animus laedendi, mas apenas a consciência e vontade de expor a vítima a grave perigo. O perigo concreto, que constitui o seu elemento objetivo, e limitado a determinada pessoa, não se confundindo, portanto, o crime em questão com os de perigo comum ou contra a incolumidade pública. O exemplo frequente e típico dessa espécies criminal e o caso do empreiteiro que, para poupar-se ao dispêndio com medidas técnicas de prudência, na execução da obra, expõe o operário ao risco de grave acidente. Vem dai que Zurcher, ao defender, na espécie, quando da elaboração do Código Penal suíço, um dispositivo incriminador, dizia que este seria um complemento da legislação trabalhista ("Wir háben geglaubt, dieser Artikel werde einen Eil der Arbeiterschutzgesetzgebung bilden"). Este pensamento muito contribuiu para que se formulasse o art. 132; mas este não visa somente proteger a indenidade do operário, quando em trabalho, senão também a de qualquer outra pessoa. Assim, o crime de que ora se trata não pode deixar de ser reconhecido na ação por exemplo, de quem dispara uma arma de fogo contra alguém, não sendo atingido o alvo, nem constituindo o fato tentativa de homicídio.

Ao definir os crimes de abandono (art. 133) e omissão de socorro (art. 135), o projeto, diversamente da lei atual, não limita a proteção penal aos menores, mas aténdendo ao ubi eadem ratio, ibi eadem dispositio, amplia-a aos incapazes em geral, aos enfermos, inválidos e feridos.

47. Não contem o projeto dispositivo especial sobre o duelo. Sobre tratar-se de um fato inteiramente alheio aos nossos costumes, não há razão convincente para que se veja no homicídio ou ferimento causado em duelo um crime privilegiado: com ou sem as regras cavalheirescas, a destruição da vida ou lesão da integridade física de um homem não pode merecer transigência alguma do direito penal. Pouco importa o consentimento reciproco dos duelistas, pois, quando estão em jogo direitos inalienáveis, o mutuus consensus não e causa excludente ou sequer minorativa da pena. O desafio para o duelo e a aceitação dele são, em si mesmos, fatos penalmente indiferentes; mas, se não se exaurem como simples jatância, seguindo-se-lhes efetivamente o duelo, os contendores responderão, conforme o resultado, por homicídio (consumado ou tentado) ou lesão corporal.

DA RIXA

48. Ainda outra inovação do projeto, em matéria de crimes contra a pessoa, e a incriminação da rixa, por si mesma, isto e, da luta corporal entre varias pessoas. A ratio essendi da incriminação e dupla: a rixa concretiza um perigo a incolumidade pessoal (e nisto se assemelha aos "crimes de perigo contra a vida e a saúde") e é uma perturbação da ordem e disciplina da convivência civil.

A participação na rixa e punida independentemente das conseqüências desta. Se ocorre a morte ou lesão corporal grave de algum dos contendores, dá-se uma condição de maior punibilidade, isto e, a pena cominada ao simples fato de participação na rixa e especialmente agravada. A pena cominada a rixa em si mesma e aplicável separadamente da pena correspondente ao resultado lesivo (homicídio ou lesão corporal), mas serão ambas aplicadas cumulativamente (como no caso de concurso matérial) em relação aos contendores que concorrerem para a produção desse resultado.

Segundo se vê do art. 137, in fine, a participação na rixa deixara de ser crime se o participante visa apenas separar os contendores. É claro que também não haverá crime se a intervenção constituir legítima defesa, própria ou de terceiro.

DOS CRIMES CONTRA A HONRA

49. O projeto cuida dos crimes contra a honra somente quando não praticados pela imprensa, pois os chamados "delitos de imprensa" (isto é, os crimes contra honra praticados por meio da imprensa) continuam a ser objeto de legislação especial.

São definidos como crimes contra a honra a "calunia", a "injuria" (compreensiva da injuria "por violência ou vias de fato" ou com emprego de meios aviltantes, que a lei atual prevê parcialmente no capitulo das "lesões corporais") e a "difama são" (que, de modalidade da injuria, como na lei vigente, passa a constituir crime autônomo).

No tratamento do crime de injuria, foi adotado o critério de que a injusta provocação do ofendido ou a reciprocidade das injurias, se não exclui a pena, autoriza, entretanto, o juiz, conforme as circunstâncias, a abster-se de aplica-la, ou no caso de reciprocidade, a aplicá-la somente a um dos injuriadores.

A fides veri ou exceptio veritatis e admitida, para exclusão de crime ou de pena tanto no caso de calunia (salvo as exceções enumeradas no § 3° do art. 138), quanto no de difamação, mas, neste último caso, somente quando o ofendido e agente ou depositário da autoridade pública e a ofensa se refere ao exercício de suas funções, não se tratando do "Presidente da República, ou chefe de Governo estrangeiro em visita ao país".

Exceção feita da "injuria por violência ou vias de fato", quando dela resulte lesão corporal, a ação penal, na espécie, depende de queixa, bastando, porem, simples representação, quando o ofendido e qualquer das pessoas indicadas nos ns. I e II do art. 141.

Os demais dispositivos coincidem, mais ou menos, com os do direito vigente.

DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE INDIVIDUAL

50. Os crimes contra a liberdade individual são objeto do Capitulo VI do titulo reservado aos crimes contra a pessoa. Subdividem-se em: a) crimes contra a liberdade pessoal; b) crimes contra a inviolabilidade do domicilio; c) crimes contra a inviolabilidade da correspondência; d) crimes contra a inviolabilidade de segredos.

O projeto não considera contra a liberdade individual os chamados crimes eleitorais: estes, por isso mesmo que afetam a ordem política, serão naturalmente insertos, de futuro, no catalogo dos crimes políticos, deixados a legislação especial (art. 360).

DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE PESSOAL

51. O crime de constrangimento ilegal é previsto no art. 146, com uma fórmula unitária. Não há indagar, para diverso tratamento penal, se a privação da liberdade de agir foi obtida mediante violência, física ou moral, ou com o emprego de outro qualquer meio, como, por exemplo, se o agente, insidiosamente, faz a vítima ingerir um narcótico. A pena relativa ao constrangimento ilegal, como crime sui generis, e sempre a mesma. Se há emprego da vis corporalis, com resultado lesivo a pessoa da vítima, dá-se um concurso matérial de crimes.

A pena e especialmente agravada (inovação do projeto), quando, para a execução do crime, se houverem reunido mais de três pessoas ou tiver havido emprego de armas. É expressamente declarado que não constituem o crime em questão o "tratamento medico arbitrário", se justificado por iminente perigo de vida, e a "coação exercida para impedir suicídio".

Na conceituação do crime de ameaça (art. 147), o projeto diverge, em mais de um ponto, da lei atual. Não é preciso que o "mal prometido" constitua crime, bastando do que seja injusto e grave. Não se justifica o critério restritivo do direito vigente, pois a ameaça de um mal injusto e grave, embora penalmente indiferente, pode ser, as vezes, mais intimidante que a ameaça de um crime.

Não somente e incriminada a ameaça verbal ou por escrito, mas, também, a ameaça real (isto e, por gestos, v.g.: apontar uma arma de fogo contra alguém) ou simbólica (ex.: afixar a porta da casa de alguém o emblema ou sinal usado por uma associação de criminosos).

Os crimes de cárcere privado e seqüestro, salvo sensível majoração da pena, são conceituados como na lei atual.

No art. 149, é prevista uma entidade criminal ignorada do Código vigente: o fato de reduzir alguém, por qualquer meio, a condição análoga a de escravo, isto é, suprimir-lhe, de fato, o status libertatis, sujeitando-o o agente ao seu completo e discricionário poder. É o crime que os antigos chamavam plagium. Não é desconhecida a sua prática entre nos, notadamente em certos pontos remotos do nosso hinterland.

DOS CRIMES CONTRA A INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO

52. Com ligeiras diferenças, os dispositivos referentes ao crime de violação de domicílio repetem critérios da lei atual. Do texto do art. 150 se depreende, a contrario, que a entrada na casa alheia ou suas dependências deixa de constituir crime, não somente quando precede licença expressa, mas também quando haja consentimento tácito de quem de direito. E especialmente majorada a pena, se o crime e praticado: a) durante a noite; b) em lugar despovoado; c) com emprego de violência ou de armas; d) por duas ou mais pessoas.

Para maior elucidação do conteúdo do crime, e declarado que a expressão "casa" e compreensiva de "qualquer compartimento habitado", "aposento ocupado de uma habitação coletiva" e "qualquer compartimento, não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade".

DOS CRIMES CONTRA A INVIOLABILIDADE DE CORRESPONDÊNCIA

53. O projeto trata a violação de correspondência separadamente da violação de segredos, divergindo, assim, do Código atual, que as engloba num mesmo capitulo. A inviolabilidade da correspondência e um interesse que reclama a tutela penal independentemente dos segredos acaso confiados por esse meio. Na configuração das modalidades do crime de violação de correspondência, são reproduzidos os preceitos da legislação vigente e acrescentados outros, entre os quais o que incrimina especialmente o fato de abusar da condição de sócio, empregado ou preposto, em estabelecemto comercial ou industrial, desviando, sonegando, subtraindo, suprimindo, no todo ou em parte, correspondência, ou revelando a estranho o seu conteúdo. Salvo nos casos em que seja atingido interesse da administração pública, só se procedera, em relação a qualquer das modalidades do crime, mediante representação.

DOS CRIMES CONTRA A INVIOLABILIDADE DOS SEGREDOS

54. Ao incriminar a violação arbitrária de segredos, o projeto mantém-se fiel aos "moldes" do Código em vigor, salvo uma ou outra modificação. Deixa a margem da proteção penal somente os segredos obtidos por confidencia oral e não necessária. Não foi seguido o exemplo do Código italiano, que exclui da orbita do ilícito penal até mesmo a violação do segredo obtido por confidencia escrita. Não e convincente a argumentação de Rocco: "Entre o segredo confiado oralmente e o confiado por escrito não há diferença substancial, e como a violação do segredo oral não constitui crime, nem mesmo quando o confidente se tenha obrigado a não revela-lo, não se compreende porque a diversidade do meio usado, isto e, o escrito, deva tornar punível o fato". Ora, é indisfarçável a diferença entre divulgar ou revelar a confidência que outrem nos faz verbalmente e a que recebemos por escrito: no primeiro caso, a veracidade da comunicação pode ser posta em dúvida, dada a ausência de comprovação matérial; ao passo que, no segundo, há um corpus, que se impõe a credulidade geral. A traição da confiança, no segundo caso, e evidentemente mais grave do que no primeiro.

Diversamente da lei atual, e incriminada tanto a publicação do conteúdo secreto de correspondência epistolar, por parte do destinatário, quanto o de qualquer outro documento particular, por parte do seu detentor, e não somente quando dai advenha efetivo dano a alguém (como na lei vigente), senão também quando haja simples possibilidade de dano.

55. Definindo o crime de ''violação do segredo profissional", o projeto procura dirimir qualquer incerteza acerca do que sejam confidentes necessários. Incorrera na sanção penal todo aquele que revelar segredo, de que tenha ciência em razão de "função, ministério, oficio ou profissão". Assim, já não poderá ser suscitada, como perante a lei vigente, a dúvida sobre se constitui ilícito penal a quebra do "sigilo do confessionário".

DOS CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO

56. Varias são as inovações introduzidas pelo projeto no setor dos crimes patrimôniais. Não se distingue, para diverso tratamento penal, entre o maior ou menor valor da lesão patrimonial; mas, tratando-se de furto, apropriado indébita ou estelionato, quando a coisa subtraída, desviada ou captada e de pequeno valor, e desde que o agente e criminoso primário, pode o juiz substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminui-la de um até dois terços, ou aplicar somente a de multa (arts. 155, § 2°, 170, 171, § 1°). Para afastar qualquer dúvida, e expressamente equiparada a coisa móvel e, consequentemente, reconhecida como possível objeto de furto a "energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico". Toda energia economicamente utilizável e suscetível de incidir no poder de disposição matérial e exclusiva de um indivíduo (como, por exemplo, a eletricidade, a radioatividade, a energia genética dos reprodutores etc.) pode ser incluída, mesmo do ponto de vista técnico, entre as coisas moveis, a cuja regulamentação jurídica, portanto, deve ficar sujeita.

Somente quando há emprego de força, grave ameaça ou outro meio tendente a suprimir a resistência pessoal da vítima, passa o furto a ser qualificado roubo. No caso de violência contra a coisa, bem como quando o crime e praticado com escalada ou emprego de chaves falsas, não perde o furto seu nomen juris, embora seja especialmente aumentada a pena. Também importa majoração de pena o furto com emprego de destreza ou de meio fraudulento, com abuso de confiança ou concurso de duas ou mais pessoas. O furto com abuso de confiança não deve ser confundido com a apropriado indébita, pois nesta a posse direta e desvigiada da coisa e precedentemente concedida ao agente pelo próprio dominus. É prevista como agravante especial do furto a circunstância de ter sido o crime praticado "durante o período do sossego noturno".

A violência como elementar do roubo, segundo dispõe o projeto, não e somente a que se emprega para o efeito da apprehensio da coisa, mas também a exercida post factum, para assegurar o agente, em seu proveito, ou de terceiro, a detenção da coisa subtraída ou a impunidade.

São declaradas agravantes especiais do roubo as seguintes circunstâncias: ter sido a violência ou ameaça exercida com armas, o concurso de mais de duas pessoas e achar-se a vítima em serviço de transporte de dinheiro, "conhecendo o agente tal circunstância".

57. A extorsão e definida numa formula unitária, suficientemente ampla para abranger todos os casos possíveis na prática. Seu tratamento penal e idêntico ao do roubo; mas, se e praticada mediante seqüestro de pessoa, a pena e sensivelmente aumentada. Se do fato resulta a morte do seqüestrado, e cominada a mais rigorosa sanção penal do projeto: reclusão por 20 (vinte) a 30 (trinta) anos e multa de vinte a cinquenta contos de réis. Esta excepcional severidade da pena e justificada pelo caráter brutal e alarmante dessa forma de criminalidade nos tempos atuais.

É prevista no art. 160, cominando-se-lhe pena de reclusão por 1 (um) a 3 (três) anos e multa de dois a cinco contos de réis, a extorsão indireta, isto e, o fato de "exigir ou receber, como garantia de divida, abusando da situação de alguém, documento que pode dar causa a procedimento criminal contra a vítima ou contra terceiro". Destina-se o novo dispositivo a coibir os torpes e opressivos expedientes a que recorrem, por vezes, os agentes de usura, para garantir-se contra o risco do dinheiro mutuado.

São bem conhecidos esses recursos como, por exemplo, o de induzir o necessitado cliente a assinar um contrato simulado de deposito ou a forjar no titulo de divida a firma de algum parente abastado, de modo que, não resgatada a divida no vencimento, ficara o mutuário sob a pressão da ameaça de um processo por apropriação indébita ou falsidade.

58. Sob a rubrica "Da usurpação", o projeto incrimina certos fatos que a lei penal vigente conhece sob diverso nomen juris ou ignora completamente, deixando-os na orbita dos delitos civis. Em quase todas as suas modalidades, a usurpação e uma lesão ao interesse jurídico da inviolabilidade da propriedade imóvel. Assim, a "alteração de limites" (art. 161), a "usurpação de águas" (art. 161, § 1°, I) e o "esbulho possessório", quando praticados com violência a pessoa, ou mediante grave ameaça, ou concurso de mais de duas pessoas (art. 161, § 1°, II). O emprego de violência contra a pessoa, na modalidade da invasão possessório, e condição de punibilidade, mas, se dele resulta outro crime, haverá um concurso matérial de crimes, aplicando-se, somadas, as respectivas penas (art. 161, § 2°).

Também constitui crime de usurpação o fato de suprimir ou alterar marca ou qualquer sinal indicativo de propriedade em gado ou rebanho alheio, para dele se apropriar, no todo ou em parte. Não se confunde esta modalidade de usurpação com o abigeato, isto e, o furto de animais: o agente limita-se a empregar um meio fraudulento (supressão ou alteração de marca ou sinal) para irrogar-se a propriedade dos animais. Se esse meio fraudulento e usado para dissimular o anterior furto dos animais, já não se tratara de usurpação: o crime continuara com o seu nomen juris, isto é, furto.

59. Ao cuidar do crime de dano, o projeto adota uma formula genérica ("destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia") e, a seguir, prevê agravantes e modalidades especiais do crime. Estas ultimas, mais ou menos estranhas a lei vigente, são a "introdução ou abandono de animais em propriedade alheia", o "dano em coisa de valor artístico, arqueológico ou histórico" e a "alteração de local especialmente protegido".

Certos fatos que a lei atual considera variantes de dano não figuram, como tais, no projeto. Assim, a destruição de documentos públicos ou particulares (art. 326, e seu parágrafo único, da Consolidação das Leis Penais) passa a constituir crime de falsidade (art. 305 do projeto) ou contra a administração pública (arts. 314 e 356).

60. A apropriação indébita (furtum improprium) e conceituada, em suas modalidades, da mesma forma que na lei vigente; mas o projeto contem inovações no capítulo reservado a tal crime. A pena (que passa a ser reclusão por um a quatro anos e multa de quinhentos mil-réis a dez contos de réis) e aumentada de um terço, se ocorre infidelidade do agente como depositário necessário ou judicial, tutor, curador, sindico, liquidatário, inventariante ou testamenteiro, ou no desempenho de oficio, emprego ou profissão. Diversamente da lei atual, não figura entre as modalidades da apropriação indébita o abigeato, que e, indubitavelmente, um caso de furtum proprium e, por isso mesmo, não especialmente previsto no texto do projeto.

É especialmente equiparado a apropriação indébita o fato do inventor do tesouro em prédio alheio que retém para si a quota pertencente ao proprietário deste.

61. O estelionato é assim definido: "Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artificio, ardil ou outro meio fraudulento". Como se vê, o dispositivo corrige em três pontos a formula genérica do inciso 5 do art. 338 do Código atual: contempla a hipótese da capitação de vantagem para terceiro, declara que a vantagem deve ser ilícita e acentua que a fraude elementar do estelionato não e somente a empregada para induzir alguém em erro, mas também a que serve para manter (fazer subsistir, entreter) um erro preexistente.

Com a formula do projeto, já não haverá dúvida que o próprio silencio, quando malicioso ou intencional, acerca do preexistente erro da vítima, constitui meio fraudulento característico do estelionato. Entre tais crimes, são incluídos alguns não contemplados na lei em vigor, como, exempli gratia, a fraude relativa a seguro contra acidentes (art. 171, § 2°, V) e a "frustração de pagamento de cheques" (art. 171, § 2°, VI).

A incriminação deste último fato, de par com a da emissão de cheque sem fundo, resulta do raciocínio de que não há distinguir entre um e outro caso: tão criminoso e aquele que emite cheque sem provisão como aquele que, embora dispondo de fundos em poder do sacado, maliciosamente os retira antes da apresentação do cheque ou, por outro modo, ilude o pagamento, em prejuízo do portador. O "abuso de papel em branco", previsto atualmente como modalidade do estelionato, passa, no projeto, para o setor dos crimes contra a fé pública (art. 299).

62. A "duplicata simulada" e o "abuso de incapazes" são previstos em artigos distintos. Como forma especial de fraude patrimonial, e também previsto o fato de "abusar, em proveito próprio ou alheio, da inexperiência ou da simplicidade ou inferioridade mental de outrem, induzindo-o a prática de jogo ou aposta, ou a especulação com títulos ou mercadorias, sabendo ou devendo saber que a operação e ruinosa".

63. Com a rubrica de "fraude no comercio", são incriminados vários fatos que a lei atual não prevê especialmente. Entre eles figura o de "vender, como verdadeira ou perfeita, mercadoria falsificada ou deteriorada", devendo entender-se que tal crime constitui "fraude no comercio" quando não importe crime contra a saúde pública, mais severamente punido.

São destacadas, para o efeito de grande aténuação da pena, certas fraudes de menor gravidade, como sejam a "usurpação de alimentos" gilouterie d'aliments ou grivelerie, dos franceses; scrocco, dos italianos, ou Zechprellerei, dos alémaes), a pousada em hotel e a utilização de meio de transporte, sabendo o agente ser-lhe impossível efetuar o pagamento. É expressamente declarado que, em tais casos, dadas as circunstâncias, pode o juiz abste-se de aplicação da pena, ou substituí-la por medida de segurança. As "fraudes e abusos na fundação e administração das sociedades por ações" (não constituindo qualquer dos fatos crime contra a economia popular definido na legislaçao especial, que continua em vigor) são minuciosamente previstos, afeiçoando-se o projeto a recente lei sobre as ditas sociedades.

O projeto absteve-se de tratar dos crimes de falência, que deverão ser objeto de legislação especial, já em elaboração.

Na sanção relativa a fraudulenta insolvência civil e adotada a alternativa entre a pena privativa de liberdade (detenção) e a pecuniária (multa de quinhentos mil-réis a cinco contos de réis), e a ação penal dependera de queixa.

64. Em capítulo especial, como crime sui generis contra o patrimônio, e com pena própria, e prevista a receptação (que o Código vigente, na sua parte geral, define como forma de cumplicidade post factum, resultando dai, muitas vezes, a aplicação de penas desproporcionadas). O projeto distingue, entre a receptação dolosa e a culposa, que a lei atual injustificadamente equipara. É expressamente declarado que a receptação e punível ainda que não seja conhecido ou passível de pena o autor do crime de que proveio a coisa receptada. Tratando-se de criminoso primário, poderá o juiz, em face das circunstâncias, deixar de aplicar a pena, ou substitui-la por medida de segurança.

Os dispositivos do projeto em relação a circunstância de parentesco entre os sujeitos ativo e passivo, nos crimes patrimoniais, são mais amplos do que os do direito atual, ficando, porem, explicito que o efeito de tal circunstância não aproveita aos co-participes do parente, assim como não se estende aos casos de roubo, extorsão e, em geral, aos crimes patrimoniais praticados mediante violência contra a pessoa.

DOS CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE IMATÉRIAL

65. Sob esta rubrica e que o projeto alinha os crimes que o direito atual denomina "crimes contra a propriedade literária, artística, industrial e comercial". São tratados como uma classe autônoma, que se reparte em quatro subclasses: "crimes contra a propriedade intelectual", "crimes contra o privilegio de invenção, "crimes contra as marcas de industria e comercio" e "crimes de concorrência desleal". Tirante uma ou outra alteração ou divergência, são reproduzidos os critérios e formulas da legisla são vigente.

DOS CRIMES CONTRA A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO

66. O projeto consagra um título especial aos "crimes contra a organização do trabalho", que o Código atual, sob o rotulo de "crimes contra a liberdade do trabalho", classifica entre os "crimes contra o livre gozo e exercício dos direitos individuais" (isto e, contra a liberdade individual). Este critério de classificação, enjeitado pelo projeto, afeiçoa-se a um postulado da economia liberal, atualmente desacreditado, que Zanardelli, ao tempo da elaboração do Código Penal italiano de 1889, assim fixava: "A lei deve deixar que cada um proveja aos próprios interesses pelo modo que melhor lhe pareça, e não pode intervir senão quando a livre ação de uns seja lesiva do direito de outros. Não pode ela vedar aos operários a combinada abstenção de trabalho para aténder a um objetivo econômico, e não pode impedir a um industrial que feche, quando Ihe aprouver, a sua fabrica ou oficina. O trabalho e uma mercadoria, da qual, como de qualquer outra, se pode dispor à vontade, quando se faça uso do próprio direito sem prejudicar o direito de outrem". A tutela exclusivista da liberdade individual abstraia, assim, ou deixava em plano secundário o interesse da coletividade, o bem geral. A greve, o lockout, todos os meios incruentos e pacíficos na luta entre o proletariado e o capitalismo eram, permitidos e constituíam mesmo o exercício de líquidos direitos individuais. O que cumpria assegurar, antes de tudo, na esfera econômica, era o livre jogo das iniciativas individuais. Ora, semelhante programa, que uma longa experiência demonstrou errôneo e desastroso, já não e mais viável em face da Constituição de 37. Proclamou esta a legitimidade da intervenção do Estado no domínio econômico, "para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento do interesse da Nação". Para dirimir as contendas entre o trabalho e o capital, foi instituída a justiça do trabalho, tornando-se incompativel com a nova ordem política o exercício arbitrário das próprias razões por parte de empregados e empregadores.

67. A greve e o lockout (isto é, a paralisação ou suspensão arbitraria do trabalho pelos operários ou patrões) foram declarados "recursos anti-sociais, nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional". Já não e admissível uma liberdade de trabalho entendida como liberdade de iniciativa de uns sem outro limite que igual liberdade de iniciativa de outros. A proteção jurídica já não e concedida a liberdade do trabalho, propriamente, mas a organização do trabalho, inspirada não somente na defesa e no ajustamento dos direitos e interesses individuais em jogo, mas também, e principalmente, no sentido superior do bem comum de todos. Aténtatória, ou não, da liberdade individual, toda ação perturbadora da ordem jurídica, no que concerne ao trabalho, e ilícita e esta sujeita a sanções repressivas, sejam de direito administrativo, sejam de direito penal. Dai, o novo critério adotado pelo projeto, isto e, a trasladação dos crimes contra o trabalho, do setor dos crimes contra a liberdade individual para uma classe autônoma, sob a já referida rubrica. Não foram, porem, trazidos para o campo do ilícito penal todos os fatos contrários a organização do trabalho: são incriminados, de regra, somente aqueles que se fazem acompanhar da violência ou da fraude. Se falta qualquer desses elementos, não passará o fato, salvo poucas exceções, de ilícito administrativo. E o ponto de vista já fixado em recente legislação trabalhista. Assim, incidirão em sanção penal o cerceamento do trabalho pela forca ou intimidação (art. 197, I), a coação para o fim de greve ou de lockout (art. 197, II), a boicotagem violenta (art. 198), o aténtado violento contra a liberdade de associação profissional (art. 199), a greve seguida de violência contra a pessoa ou contra a coisa (art. 200), a invasão e arbitraria posse de estabelecimento de trabalho (art. 202, 1a parte), a sabotagem (art. 202, in fine), a frustração, mediante violência ou fraude, de direitos assegurados por lei trabalhista ou de nacionalização do trabalho (arts. 203 e 204). Os demais crimes contra o trabalho, previstos no projeto, dispensam o elemento violência ou fraude (arts. 201, 205, 206, 207), mas explica-se a exceção: e que eles, ou atentam imediatamente contra o interesse público, ou imediatamente ocasionam uma grave perturbação da ordem econômica. E de notar-se que a suspensão ou abandono coletivo de obra pública ou serviço de interesse coletivo somente constituíra o crime previsto no art. 201 quando praticado por "motivos pertinentes as condições do trabalho", pois, de outro modo, o fato importara o crime definido no art. 18 da Lei de Segurança, que continua em pleno vigor.

DOS CRIMES CONTRA O SENTIMENTO RELIGIOSO E CONTRA O RESPEITO AOS MORTOS

68. São classificados como espécies do mesmo genus os "crimes contra o sentimento religioso" e os "crimes contra o respeito aos mortos". E incontestável a afinidade entre uns e outros. O sentimento religioso e o respeito aos mortos são valores ético-sociais que se assemelham. O tributo que se rende aos mortos tem um fundo religioso. Idêntica, em ambos os casos, e a ratio essendi da tutela penal.

O projeto divorcia-se da lei atual, não só quando deixa de considerar os crimes referentes aos cultos religiosos como subclasse dos crimes contra a liberdade individual (pois o que passa a ser, precipuamente, objeto da proteção penal e a religião como um bem em si mesmo), como quando traz para o catalogo dos crimes (lesivos do respeito aos mortos) certos fatos que o Código vigente considera simples contravenções, como a violatio sepulchri e a profanação de cadáver. Entidades criminais desconhecidas da lei vigente são as previstas nos arts. 209 e 211 do projeto: impedimento ou perturbação de enterro ou cerimonia fúnebre e supressão de cadáver ou de alguma de suas partes.

DOS CRIMES CONTRA OS COSTUMES

69. Sob esta epígrafe, cuida o projeto dos crimes que, de modo geral, podem ser também denominados sexuais. São os mesmos crimes que a lei vigente conhece sob a extensa rubrica "Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor". Figuram eles com cinco subclasses, assim intitulados:

"Dos crimes contra a liberdade sexual", "Da sedução e da corrupção de menores", "Do rapto", "Do lenocínio e do trafico de mulheres" e "Do ultraje público ao pudor".

O crime de adultério, que o Código em vigor contempla entre os crimes sexuais, passa a figurar no setor dos crimes contra a família.

70. Entre os crimes contra a liberdade sexual, de par com as figuras clássicas do estupro e do aténtado violento ao pudor, são incluídas a "posse sexual mediante fraude" e o "aténtado ao pudor mediante fraude". Estas duas entidades criminais, na amplitude com que as conceitua o projeto, são estranhas a lei atual. Perante esta, afraude e um dos mefos morais do crime de defloramento, de que só a mulher menor de 21 (vinte e um) anos e maior de 16 (dezesseis) pode ser sujeito passivo. Segundo o projeto, entretanto, existe crime sempre que, sendo a vítima mulher honesta, haja emprego de meio fraudulento (v. g.: simular casamento, substituir-se ao marido na escuridão da alcova). Não importa, para a existência do crime, que a ofendida seja, ou não, maior ou virgo intacta. Se da copula resulta o desvirginamento da ofendida, e esta e menor de 18 (dezoito) anos e maior de 14 (quatorze), a pena e especialmente aumentada.

Na identificação dos crimes contra a liberdade sexual e presumida a violência (art. 224) quando a vítima: a) não e maior de 14 (quatorze) anos; b) e alienada ou débil mental, conhecendo o agente esta circunstância, ou c) acha-se em estado de inconsciência (provocado, ou não, pelo agente), ou, por doença ou outra causa, impossibilitada de oferecer resistência. Como se vê, o projeto diverge substancialmente da lei atual: reduz, para o efeito de presunção de violência, o limite de idade da vítima e amplia os casos de tal presunção (a lei vigente presume a violência no caso único de ser a vítima menor de dezesseis anos). Com a redução do limite de idade, o projeto aténde a evidencia de um fato social contemporâneo, qual seja a precocidade no conhecimento dos fatos sexuais. O fundamento da ficção legal de violência, no caso dos adolescentes, e a innocentia consilii do sujeito passivo, ou seja, a sua completa insciência em relação aos fatos sexuais, de modo que não se pode dar valor algum ao seu consentimento. Ora, na época atual, seria abstrair hipocritamente a realidade o negar-se que uma pessoa de 14 (quatorze) anos completos já tem uma noção teórica, bastante exata, dos segredos da vida sexual e do risco que corre se presta a lascívia de outrem. Estendendo a presunção de violência aos em que o sujeito passivo é alienado ou débil mental, o projeto obedece ao raciocínio de que, também aqui, há ausência de consentimento válido, e ubi eadem ratio, ibi eadem dispositio.

Por outro lado, se a incapacidade de consentimento faz presumir a violência, com maioria de razão deve ter o mesmo efeito o estado de inconsciência da vítima ou sua à incapacidade de resistência, seja esta resultante de causas mórbidas (enfermidade, grande debilidade orgânica, paralisia etc.), ou de especiais condições físicas (como quando o sujeito passivo e um indefeso aleijado, ou se encontra acidentalmente tolhido de movimentos).

71. Sedução e o nomen juris que o projeto da ao crime atualmente denominado defloramento. Foi repudiado este título, porque faz supor como imprescindível condição material do crime a ruptura do hímen (flos virgineum), quando, na realidade, basta que a copula seja realizada com mulher virgem, ainda que não resulte essa ruptura, como nos casos de complacência himenal.

O sujeito passivo da sedução e a mulher virgem, maior de 14 (quatorze) e menor de 18 (dezoito) anos. No sistema do projeto, a menoridade, do ponto de vista da proteção penal, termina aos 18 (dezoito) anos. Fica, assim, dirimido o ilogismo em que incide a legislação vigente, que, não obstante reconhecer a maioridade política e a capacidade penal aos 18 (dezoito) anos completos (Constituição, art. 117, e Código Penal, modificado pelo Código de Menores), continua a pressupor a imaturidade psíquica, em matéria de crimes sexuais, até os 21 (vinte e um) anos.

Para que se identifique o crime de sedução é necessário que seja praticado "com abuso da inexperiência ou justificável confiança" da ofendida. O projeto não protege a moça que se convencionou chamar emancipada, nem tampouco aquela que, não sendo de todo ingênua, se deixa iludir por promessas evidentemente insinceras.

Ao ser fixada a fórmula relativa ao crime em questão, partiu-se do pressuposto de que os fatos relativos a vida sexual não constituem na nossa época matéria que este já subtraída, como no passado, ao conhecimento dos adolescentes de 18 (dezoito) anos completos. A vida, no nosso tempo, pelos seus costumes e pelo seu estilo, permite aos indivíduos surpreender, ainda bem não atingida a maturidade, o que antes era o grande e insondável mistério, cujo conhecimento se reservava apenas aos adultos.

Certamente, o direito penal não pode abdicar de sua função ética, para acomodasse ao afrouxamento dos costumes; mas, no caso de que ora se trata, muito mais eficiente que a ameaça da pena aos sedutores, será a retirada da tutela penal a moca maior de 18 (dezoito) anos, que, assim, se fará mais cautelosa ou menos acessível.

Em abono do critério do projeto, acresce que, hoje em dia, dados os nossos costumes e formas de vida, não são raros os casos em que a mulher não e a única vítima da sedução.

Já foi dito, com acerto, que "nos crimes sexuais, nunca o homem e tão algoz que não possa ser, também, um pouco vítima, e a mulher nem sempre e a maior e a única vítima dos seus pretendidos infortúnios sexuais" (Filipo Manci, Delitti sessuali).

72. Ao configurar o crime de corrupção de menores, o projeto não distingue, como faz a lei atual, entre corrupção efetiva e corrupção potencial: engloba as duas espécies e comina a mesma pena. O mefo executivo do crime tanto pode ser a prática do ato libidinoso com a vítima (pessoa maior de quatorze e menor de dezoito anos), como o induzimento desta a praticar (ainda que com outrem, mas para a satisfação.

73. O rapto para fim libidinoso e conservado entre os crimes sexuais, rejeitado o critério do projeto Sá Pereira, que o trasladava para a classe dos crimes contra a liberdade. Nem sempre o meio executivo do rapto e a violência. Ainda mesmo se tratando; de rapto violento, deve-se aténder a que, segundo a melhor técnica, o que especializa um crime não e o meio, mas o fim. No rapto, seja violento, fraudulento ou consensual, o fim do agente e a posse da vítima para fim sexual ou libidinoso. Trata-se de um crime dirigido contra o interesse da organização ético-social da família—interesse que sobreleva o da liberdade pessoal. Seu justo lugar, portanto, e entre os crimes contra os costumes.

O projeto não se distancia muito da lei atual, no tocante aos dispositivos sobre o rapto. Ao rapto violento ou próprio (vi aut minis) e equiparado o rapto per fraudem (compreensivo do rapto per insídias). No rapto consensual (com ou sem sedução), menos severamente punido, a paciente só pode ser a mulher entre os 14 (quatorze) e 21 (vinte e um) anos (se a raptada e menor de quatorze anos, o rapto se presume violento), conservando-se, aqui, o limite da menoridade civil, de vez que essa modalidade do crime e, principalmente, uma ofensa ao pátrio poder ou autoridade tutelar (in parentes vel tutores).

A pena, em qualquer caso, e diminuída de um terço se o crime e praticado para fim de casamento, e da metade, se da a restitutio in integrum da vítima e sua reposição in loco tuto ac libero.

Se ao rapto se segue outro crime contra a raptada, aplica-se a regra do concurso matérial. Fica, assim, modificada a lei vigente, segundo a qual, se o crime subsequente e o defloramento ou estupro (omitida referencia a qualquer outro crime sexual), a pena do rapto e aumentada da sexta parte.

74. O projeto reserva um capitulo especial as disposições comuns aos crimes sexuais até aqui mencionados. A primeira delas se refere as formas qualificadas de tais crimes, isto e, aos casos em que, tendo havido emprego de violência, resulta lesão corporal grave ou a morte da vítima: no primeiro caso, a pena será reclusão por 4 (quatro) a 12 (doze) anos; no segundo, a mesma pena, de 8 (oito) a 20 (vinte) anos.

A seguir, vem os preceitos sobre a violência ficta, de que acima já se tratou; sobre a disciplina da ação penal na espécie e sobre agravantes especiais. Cumpre notar que uma disposição comum aos crimes em questão não figura na "parte especial", e pois se achou que ficaria melhor colocada no titulo sobre a extinção da punibilidade, da "parte geral": e o que diz respeito ao subsequens matrimonium (art. 108, VIII), que, antes ou depois da condenação, exclui a imposição da pena.

75. Ao definir as diversas modalidades do lenocínio, o projeto não faz depender o crime de especial meio executivo, nem da habitualidade, nem do fim de lucro. Se há emprego de violência, intimidação ou fraude, ou se o agente procede lucri faciendi causa, a pena e especialmente agravada. Tal como na lei atual, o lenocínio qualificado ou familiar e mais severamente punido que o lenocínio simples. Na prestação de local a encontros para fim libidinoso, e taxativamente declarado que o crime existe independentemente de mediação direta do agente para esses encontros ou de fim de lucro. São especialmente previstos o ruf anismo alphonsisme, dos franceses; mantenutismo, dos italianos; Zuhalterei, dos alemães) e o tráfico de mulheres.

Na configuração do ultraje público ao pudor, o projeto excede de muito em previdência a lei atual.

DOS CRIMES CONTRA A FAMÍLIA

76. O título consagrado aos crimes contra a família divide-se em quatro capítulos, que correspondem, respectivamente, aos "crimes contra o casamento", "crimes contra o estado de filiasfio", "crimes contra a assistência familiar" e "crimes contra o pátrio poder, tutela ou curatéla". O primeiro entre os crimes contra o casamento e a bigamia—nomen juris que o projeto substitui ao de poligamia, usado pela lei atual. Seguindo-se o mesmo critério desta, distingue-se, para o efeito de pena, entre aquele que, sen do casado, contrai novo casamento e aquele que, sendo solteiro, se casa com pessoa que sabe casada. Conforme expressamente dispõe o projeto, o crime de bigamia existe desde que, ao tempo do segundo casamento, estava vigente o primeiro; mas, se este, a seguir, e judicialmente declarado nulo, o crime se extingue, pois que a declaração de nulidade retroage ex tunc. Igualmente não subsistira o crime se vier a ser anulado o segundo casamento, por motivo outro que não o próprio impedimento do matrimonio anterior (pois a bigamia não pode excluir-se a si mesma). Releva advertir que na "parte geral" (art. 111, e) se determina, com inovação da lei atual, que, no crime de bigamia, o prazo de prescrição da ação penal se conta da data em que o fato se tornou conhecido.

77. O projeto mantém a incriminação do adultério, que passa, porem, a figurar entre os crimes contra a família, na subclasse dos crimes contra o casamento. Não há razão convincente para que se deixe tal fato a margem da lei penal. É incontestável que o adultério ofende um indeclinável interesse de ordem social, qual seja o que diz com a organização eticojuridica da vida familiar. O exclusivismo da reciproca posse sexual dos cônjuges e condição de disciplina, harmonia e continuidade do núcleo familiar. Se deixasse impune o adultério, o projeto teria mesmo contrariado o preceito constitucional que coloca a família "sob a proteção especial do Estado". Uma notável inovação contém o projeto: para que se configure o adultério do marido, não e necessário que este tenha e mantenha concubina, bastando, tal como no adultério da mulher, a simples infidelidade conjugal.

Outra inovação apresenta o projeto, no tocante ao crime em questão: a pena e sensivelmente diminuída, passando a ser de detenção por 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses; e de 1 (um) mês, apenas, o prazo de decadência do direito de queixa (e não prescrição da ação penal), e este não pode ser exercido pelo cônjuge desquitado ou que consentiu no adultério ou o perdoou expressa ou tacitamente. Além disso, o juiz pode deixar de aplicar a pena, se havia cessado a vida em comum dos cônjuges ou se o querelante havia praticado qualquer dos atos previstos no art. 317 do Código Civil.

De par com a bigamia e o adultério, são previstas, no mesmo capitulo, entidades criminais que a lei atual ignora. Passam a constituir ilícito penal os seguintes fatos, até agora deixados impunes ou sujeitos a meras sanções civis: contrair casamento, induzindo em erro essencial o outro contraente, ou ocultando-lhe impedimento que não seja o resultante de casamento anterior (pois, neste caso, o crime será o de bigamia); contrair casamento, conhecendo a existência de impedimento que acarrete sua nulidade absoluta; fingir de autoridade para celebração do casamento e simular casamento. Nestas duas ultimas hipóteses, trata-se de crimes subsidiários: só serão punidos por si mesmos quando não constituam participação em crime mais grave ou elemento de outro crime.

78. Ao definir os crimes contra o estado de filiação, adota o projeto formulas substancialmente idênticas as do Código atual, que os conhece sob a rubrica de "parto suposto e outros fingimentos".

79. É reservado um capitulo especial aos "crimes contra a assistência familiar", quase totalmente ignorados da legislação vigente. Seguindo o exemplo dos Códigos e projetos de codificação mais recentes, o projeto faz incidir sob a sanção penal o abandono de família. O reconhecimento desta nova espécies criminal e, atualmente, ponto incontroverso. Na "Semana Internacional de Direito", realizada em Paris, no ano de 1937, Ionesco-Doly, o representante da Romênia, fixou, na espécie, com acerto e precisão, a ratio da incriminação: "A instituição essencial que e a família atravessa atual mente uma crise bastante grave. Dai, a firme, embora recente, tendência no sentido de uma intervenção do legislador, para substituir as sanções civis, reconhecidamente ineficazes, por sanções penais contra a violação dos deveres jurídicos de assistência que a consciência jurídica universal considera como o assento básico do status familiae. Vira isso contribuir para, em complemento de medidas que se revelaram insuficientes para a proteção da família, conjurar um dos aspectos dolorosos da crise por que passa essa instituição. É, de todo em todo, necessário que desapareçam certos fatos profundamente lamentáveis, e desgraçadamente cada vez mais frequentes, como seja o dos maridos que abandonam suas esposas e filhos, deixando-os sem meios de subsistência, ou o dos filhos que desamparam na miséria seus velhos pais enfermos ou inválidos".

É certo que a vida social no Brasil não oferece, tão assustadoramente como em outros países, o fenômeno da desintegração e desprestigio da família; mas a sanção penal contra o "abandono de família", inscrita no futuro Código, vira contribuir, entre nos, para atalhar ou prevenir o mal incipiente.

Para a conceituação do novo crime, a legislação comparada oferece dois modelos: o francês, demasiadamente restrito, e o italiano, excessivamente amplo. Segundo a lei francesa, o crime de abandono de família e constituído pelo fato de, durante um certo período (três meses consecutivos), deixar o agente de pagar a pensão alimentar decretada por uma decisão judicial passada em julgado. É o chamado abandono pecuniário. Muito mais extensa, entretanto, e a formula do Código Penal italiano, que foi até a incriminação do abandono moral, sem critérios objetivos na delimitação deste. O projeto preferiu a formula transacional do chamado abandono matérial. Dois são os métodos adotados na incriminação: um direto, isto e, o crime pode ser identificado diretamente pelo juiz penal, que devera verificar, ele próprio, se o agente deixou de prestar os recursos necessários; outro indireto, isto e, o crime existira automaticamente se, reconhecida pelo juiz do cível a obrigação de alimentos e fixado o seu quantum na sentença, deixar o agente de cumpri-la durante 3 (três) meses consecutivos. Não foi, porem, deixado inteiramente a margem o abandono moral. Deste cuida o projeto em casos especiais, precisamente definidos, como, alias, já faz o atual Código de Menores. É até mesmo incriminado o abandono intelectual, embora num caso único e restritissímo (art. 246): deixar, sem justa causa, de ministrar ou fazer ministrar instrução primaria a filho em idade escolar.

Segundo o projeto, só é punível o abandono intencional ou doloso, embora não se indague do motivo determinante: se por egoísmo, cupidez, avareza, ódio etc. Foi rejeitado o critério de fazer depender a ação penal de previa queixa da vítima, pois isso valeria, na prática, por tornar letra morta o preceito penal. Raro seria o caso de queixa de um cônjuge contra o outro, de um filho contra o pai ou de um pai contra o filho. Não se pode deixar de ter em aténção o que Marc Ancel chama pudor familial, isto e, o sentimento que inibe o membro de uma família de revelar as faltas de outro, que, apesar dos pesares, continua a merecer o seu respeito e talvez o seu afeto. A pena cominada na espécie e alternativa: detenção ou multa. Além disso, ficará o agente sujeito, na conformidade da regra geral sobre as "penas acessórias" (Capiítulo V, do Titulo V, da Parte Geral), a privação definitiva ou temporária de poderes que, em relação a vítima ou vitimas, lhe sejam atribuídos pela lei civil, em conseqüência do status famileae.

Cuidando dos crimes contra o patrío poder, tutela ou curatéla, o projeto limita-se a reivindicar para o futuro Código Penal certos preceitos do atual Código de Menores, apenas ampliados no sentido de abranger na proteção penal, além dos menores de 18 (dezoito) anos, os interditos.

DOS CRIMES CONTRA A INCOLUMIDADE PÚBLICA

80. Sob este titulo, são catalogados, no projeto, os crimes que a lei atual denomina contra a tranqüilidade pública. Estão eles distribuídos em três subclasses: crimes de perigo comum (isto é, aqueles que, mais nítida ou imediatamente que os das outras subclasses, criam uma situação de perigo de dano a um indefinido número de pessoas), crimes contra a segurança dos meios de comunicação e transporte e outros serviços públicos e crimes contra a saúde pública. Além de reproduzir, com ligeiras modificações, a lei vigente, o projeto supre omissões desta, configurando novas entidades criminais, tais como: "uso perigoso de gases tóxicos", o "desabamento ou desmoronamento" (isto é, o fato de causar, em prédio próprio ou alheio, desabamento total ou parcial de alguma construção, ou qualquer desmoronamento, expondo a perigo a vida, integridade física ou patrimônio de outrem), "subtração, ocultação ou inutilização de matérial de salvamento", "difusão de doença ou praga", "periclitação de qualquer meio de transporte público" (a lei atual somente cuida da periclitação de transportes ferroviários ou marítimos, não se referindo, sequer, a do transporte aéreo, que o projeto equipara aqueles), "aténtado contra a segurança de serviços de utilidade pública", "provocação de epidemia", "violação de medidas preventivas contra doenças contagiosas" etc.

Relativamente as formas qualificadas dos crimes em questão, e adotada a seguinte regra geral (art. 258): no caso de dolo, se resulta a alguém lesão corporal de natureza grave, a pena privativa da liberdade e aumentada de metade, e, se resulta morte, e aplicada em dobro; no caso de culpa, se resulta lesão corporal (leve ou grave), as penas são aumentadas de metade e, se resulta morte, e aplicada a de homicídio culposo, aumentada de um terso.

DOS CRIMES CONTRA A PAZ PÚBLICA

81. É esta a denominação que o projeto atribui ao seguinte grupo de crimes: "incitação de crime", "apologia de crime ou criminoso" e "quadrilha ou bando" (isto e, associação de mais de três pessoas para o fim de prática de crimes comuns). É bem de ver que os dispositivos sobre as duas primeiras entidades criminais citadas não abrangem a provocação ou apologia de crimes político-sociais, que continuarão sendo objeto de legislação especial, segundo dispõe o art. 360.

DOS CRIMES CONTRA A REPÚBLICA

82. O título reservado aos crimes contra a republica divide-se em quatro capítulos, com as seguintes epígrafes "Da moeda falsa", "Da falsidade de títulos e outros papéis públicos", "Da falsidade documental" e " De outras falsidades". Os crimes de testemunho falso e denunciação caluniosa, que, no Código atual, figuram entre os crimes lesivos da má fé pública, passam para o seu verdadeiro lugar, isto e, para o setor dos crimes contra a administração da justiça (subclasse dos crimes contra a administração pública).

83. Ao configurar as modalidades do crimenfalsi, o projeto procurou simplificar a lei penal vigente, evitando superfluidades ou redundâncias, e, no mesmo passo, suprir lacunas de que se ressente a mesma lei. A casuística do falsum são acrescentados os seguintes fatos: emissão de moeda com titulo ou peso inferior ao determinado em lei; desvio e antecipada circulação de moeda; reprodução ou adulteração de selos destinados a filatélia; supressão ou ocultação de documentos (que a lei atual prevê como modalidade de dano); falsificação do sinal empregado no contraste de metal precioso ou na fiscalização aduaneira ou sanitária, ou para autenticação ou encerramento de determinados objetos, ou comprovação do cumprimento de formalidades legais; substituição de pessoa e falsa identidade (não constituindo tais fatos elemento de crime mais grave). Para dirimir as incertezas que atualmente oferece a identificação da falsidade ideológica, foi adotada uma formula suficientemente ampla e explicita: "Omitir, em documento público ou particular, declarações que dele deviam constar, ou inserir ou fazer inserir nele declarações falsas ou diversas das que deviam ser escritas, com o fim de prejudicar um direito, criar uma obrigações ou alterar a verdade de fatos juridicamente relevantes".

DOS CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

84. Em último lugar, cuida o projeto dos crimes contra a administração pública, e repartidos em três subclasses: "crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral", "crimes praticados por particular contra a administração em geral" e "crimes contra a administração da justiça". Varias são as inovações introduzidas, no sentido de suprir omissões ou retificar formulas da legislação vigente. Entre os fatos incriminados como lesivos do interesse da administração pública, figuram os; seguintes, até agora, injustificadamente, deixados a margem da nossa lei penal: emprego irregular de verbas e rendas publicas; advocacia administrativa (isto é, "patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado junto a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário"); violação do sigilo funcional; violação do sigilo de proposta em concorrência pública; exploração de prestigio junto a autoridade administrativa ou judiciaria (venditio fumi); obstáculo ou fraude contra concorrência ou hasta pública; inutilização de editais ou sinais oficiais de identificação de objetos; motim de presos; falsos avisos de crime ou contravenção; auto-acusação falsa; coação no curso de processo judicial; fraude processual; exercício arbitrário das próprias razões; favorecimento post factum a criminosos (o que a lei atual só parcialmente incrimina como forma de cumplicidade); tergiversação do procurador judicial; reingresso de estrangeiro expulso.

85. O art. 327 do projeto fixa, para os efeitos penais, a noção de funcionário público: "Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública". Ao funciona rio público e equiparado o empregado de entidades paraestatais. Os conceitos da concus são, da corrupção (que a lei atual chama peita ou suborno), da resistência e do desacato são ampliados. A concussão não se limita, como na lei vigente, ao crimen super exactionis (de que o projeto cuida em artigo especial), pois consiste, segundo o projeto, em "exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, mesmo fora das funções ou antes de assumi-las, mas em razão delas, qualquer retribuição indevida".

A corrupção e reconhecível mesmo quando o funcionário não tenha ainda assumido o cargo. Na resistência, o sujeito passivo não e exclusivamente o funcionário público, mas também qualquer pessoa que lhe esteja, eventualmente, prestando assistência.

O desacato se verifica não só quando o funcionário se acha no exercício da função (seja, ou não, o ultraje infligido propter offcium), senão também quando se acha extra offcium, desde que a ofensa seja propter offcium.

CONCLUSÃO

86. É este o projeto que tenho a satisfação e a honra de submeter a apreciação de Vossa Excelência.

O trabalho de revisão do projeto Alcântara Machado durou justamente 2 (dois) anos. Houve tempo suficiente para exame e meditação da matéria em todas as suas minúcias e complexidades. Da revisão resultou um novo projeto. Não foi este o propósito inicial. O novo projeto não resultou de plano preconcebido; nasceu, naturalmente, a medida que foi progredindo o trabalho de revisão. Isto em nada diminui o valor do projeto revisto. Este constituiu uma etapa útil e necessária a construção do projeto definitivo.

A obra legislativa do Governo de Vossa Excelência e, assim, enriquecida com uma nova codificação, que nada fica a dever aos grandes monumentos legislativos promulgados recentemente em outros países. A Nação ficará a dever a Vossa Excelência, dentre tantos que já lhe deve, mais este inestimável serviço a sua cultura.

Acredito que, na perspectiva do tempo, a obra de codificação do Governo de Vossa Excelência há de ser lembrada como um dos mais importantes subsídios trazidos pelo seu Governo, que tem sido um governo de unificação nacional, a obra de unidade política e cultural do Brasil.

Não devo encerrar esta exposição sem recomendar especialmente a Vossa Excelência todos quantos contribuíram para que pudesse realizar-se a nova codificação penal no Brasil: Dr. Alcântara Machado, Ministro A. J. da Costa e Silva, Dr. Vieira Braga, Dr. Nelson Hungria, Dr. Roberto Lira, Dr. Narcélio de Queiroz. Não estaria, poremi, completa a lista se não acrescentasse o nome do Dr. Abgar Renault, que me prestou os mais valiosos serviços na redação final do projeto.

Aproveito o ensejo, Senhor Presidente, para renovar a Vossa Excelência os protestos do meu mais profundo respeito.

 

Francisco Campos

 

Retirado de: http://www.crystalnet.com.br/codigos/f0000003.html

Palavras chaves: exposição motivos parte especial código penal