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PRIMEIRO SALTO:
Dizer que o aborto em caso
de estupro não é crime.
O
Ministro se apoiou no artigo 128 do Código Penal, que assim se exprime:
"Não se pune o aborto
praticado por médico:
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento
da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal."
A
redação é clara. Não está escrito "não constitui crime" mas
tão-somente "não se pune". O médico que pratica aborto nesses
dois casos comete crime, embora esteja isento de punição.
É o
que explica muito bem o juiz de Direito no Distrito Federal Dr. Marco Antônio
Silva Lemos.
"Demais
disso, convém lembrar, logo de imediato, que o art. 128, CP, e seus incisos,
não compõem hipóteses de descriminalização do aborto. Naquele artigo,
não está afirmado que "não constitui crime" o aborto praticado
por médico nas situações dos incisos I e II. O que lá está dito é que "não
se pune" o aborto nas circunstâncias daqueles incisos. Portanto, em
nossa legislação penal, o aborto é e continua crime, mesmo se praticado
por médico para salvar a vida da gestante e em caso de estupro, a pedido da
gestante ou de seu responsável legal. Apenas - o que a legislação
infraconstitucional pode e deve fazer, porque a Constituição, como irradiação
de grandes normas gerais, não é código e nem pode explicitar tudo - não será
punido penalmente, por razões de política criminal" (MARCO ANTÔNIO
SILVA LEMOS, Juiz de Direito no Distrito Federal, O alcance da PEC
25/A/95, publicado no Correio Braziliense, 18/12/1995, Caderno Direito
e Justiça, página 6; os grifos são do original).
Ingenuamente,
o Ministro argumentou que, se tal aborto não é punível, então não é crime.
Certamente ele deve ignorar a existência de outros crimes que não são puníveis
em circunstâncias especiais, por razões que os juristas chamam de escusas
absolutórias.
Diz,
por exemplo, o artigo 181 do Código Penal:
"É isento de pena quem
comete qualquer dos crimes previstos neste título (crimes contra o patrimônio)
em prejuízo:
I - do cônjuge, na constância da sociedade conjugal;
II - de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo,
seja civil ou natural"
Em
outras palavras, não se punem o furto, o estelionato, a fraude..., se forem
praticados contra os pais, contra os avós, contra os filhos, contra os netos,
contra o esposo ou a esposa... embora continuem sendo crimes. Para preservar a
intimidade da família, a lei preferiu nestes casos não intervir com penas.
Um
outro exemplo; o artigo 348 do Código Penal assim define o crime de favorecimento
pessoal:
"Auxiliar
alguém a subtrair-se à ação de autoridade pública autor de crime a que é
cominada pena de reclusão".
Quem,
portanto, ajuda um assassino (autor de um crime punível com 6 a 20 anos de
reclusão) a não ser preso pela polícia, comete crime. A pena para este crime é
a detenção de um a seis meses, e multa. No entanto, diz o parágrafo 2º do mesmo
artigo 348: "Se quem presta o auxílio é ascendente, descendente,
cônjuge ou irmão do criminoso, fica isento de pena".
Isto
significa que, se a mãe ajudar o filho assassino a não ser preso, ela fica
isenta de pena. É claro que a mãe não tem o direito de fazer isso. Mas, se
fizer, a lei perdoa, tendo em vista os laços afetivos que unem a mãe a seu
filho. Trata-se de uma circunstância especial, em que o crime (favorecimento
pessoal) sem deixar de ser crime, fica isento de pena.
Peço
licença ao ilustre Dr. José Geraldo Barreto Fonseca, Desembargador do Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo, para mencionar o genial argumento que dele
ouvi. Diz o jurista que o simples fato de o Código Penal mencionar o aborto
como meio para salvar a vida da gestante ou quando a gravidez resulta de
estupro, já indica que tal aborto é crime. Jocosamente ele explica que o Código
não diz, por exemplo: "não se pune a mãe que amamenta o filho". Pois,
como amamentar o filho não é crime, não há razão para se dizer que "não se
pune". Qualquer conduta descrita no Código Penal é, portanto, crime, a
menos que se diga explicitamente o contrário.
SEGUNDO SALTO:
Dizer que o aborto em caso de estupro não é um ilícito.
Mesmo
que, por hipótese, o aborto em caso de estupro não fosse crime, o Ministro
ainda estaria bem longe de poder baixar uma "Norma Técnica"
autorizando sua prática nos hospitais públicos. Pois há vários atos que violam
alguma lei (e são, portanto, ilícitos) sem que, porém, tenham sido
definidos como crimes.
Isto
é muito bem ilustrado pelo Dr. Walter Moraes, desembargador do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo (falecido em 18/11/1997), a maior autoridade
brasileira em direitos da personalidade, em sua palestra proferida na Câmara
dos Deputados em Brasília, no seminário "A farsa do aborto legal"
(24/09/1997):
"Um bom exemplo de
ilícito que não é crime pode ser encontrado no próprio artigo da Constituição
que proíbe a violação da vida.
Alguns incisos adiante (X), o artigo 5º proclama, com a mesma solenidade do
direito à vida, que é inviolável a imagem das pessoas.
É uma proibição grave; senão, não estaria na Constituição.
Mas violar a imagem não é crime.
Vou dizer que imagem é a aparência física, seja no original, seja representada
em retrato, busto etc.; e que violar a imagem é utilizá-la sem o consentimento
da pessoa representada".
Mais
adiante, continua o jurista:
"O que faz uma proibição
legal tornar-se crime?
Simplificando, de novo: é a lei.
A lei descreve um comportamento humano e diz: isto é crime.
Então, aquele ilícito é crime".
Ele
então cita o art. 5º inciso XXXIX da Constituição Federal, que diz:
"Não
há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal".
Portanto,
ainda que um ato viole diretamente um direito garantido por lei, este ato só
será crime se for definido como tal pela lei. Um exemplo, que não foi dado pelo
Dr. Walter Moraes, mas que agora está muito candente, é o do descarte de
embriões concebidos in vitro. É claro que isto viola o direito
constitucional à vida, garantido no artigo 5º da Constituição. No entanto, tal
prática não é crime. Por quê? Simplesmente porque não houve (até hoje) lei que
a definisse como tal. Em 1940, quando o Código Penal foi promulgado, não havia
fertilização in vitro. O legislador penal, portanto, incriminou o
aborto, mas não tipificou como crime a morte deliberada de embriões originados
em laboratório, nem fixou uma pena para tal ilícito.
Continua
o Dr. Walter Moraes:
"Se
o aborto que o Código Penal chama de necessário, ou o por causa de um estupro
(art. 128), não fosse crime, ainda assim seria um ilícito jurídico, pois é
justamente uma forma de homicídio proibido na fórmula constitucional
‘inviolabilidade do direito à vida’".
Vários
anos antes, o mesmo autor já havia escrito:
"Certamente,
a grande maioria dos ilícitos jurídicos que se cometem no embate da vida
social, não são crimes.
Então, dizer que o aborto terapêutico (ou o de honra) é legal ou lícito só
porque não configura crime, seria incidir em formidável simplismo"
(WALTER MORAES, O problema da autorização judicial para o aborto,
Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
março/abril de 1986, p. 23).
Para
que o aborto em caso de estupro não fosse um ilícito, seria preciso revogar
todas as leis que protegem a vida humana, sobretudo as do nascituro:
Seria
preciso retirar do "caput" do art. 5º da Constituição Federal a
"inviolabilidade do direito à vida" (mas seria estranho que
permanecessem invioláveis os direitos à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, garantidos no mesmo artigo; pois como um morto poderia gozar de
tais direitos?).
Seria
preciso retirar o inciso XLV do art. 5º da Constituição Federal, que diz:
"nenhuma pena passará da pessoa do condenado", uma vez que o
que a Norma Técnica pretende é punir com a morte a criança por causa do crime
de estupro cometido pelo seu pai.
Seria
preciso retirar o art. 227 da Constituição Federal que diz: "É dever da
família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente com absoluta
prioridade, o direito à vida".
Seria
preciso revogar o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), sobretudo
o seu art. 7º, que diz: "A criança e o adolescente têm direito a
proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas públicas que
permitam o seu nascimento".
Seria
preciso revogar o Código Civil, com todos os direitos assegurados ao nascituro
desde a sua concepção, conforme diz seu art. 4º: "a lei põe a salvo desde
a concepção os direitos do nascituro".
Em
resumo, para que o aborto em caso de estupro deixasse de ser ilícito, seria
preciso fazer uma verdadeira revolução na legislação brasileira. Nem sequer uma
emenda constitucional que abolisse o direito à vida seria possível, pois diz o
art. 60 § 4º da Constituição Federal:
"Não
será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
IV - os direitos e as garantias individuais".
Pode-se
ver então a grandiosidade deste segundo salto do Ministro José Serra.
TERCEIRO SALTO:
Dizer que o aborto em caso de estupro deve ser oferecido pelo Estado.
Ainda
que, por absurdo, o aborto em caso de estupro não fosse crime e nem fosse um
ilícito, mesmo assim o Ministro deveria pensar duas vezes antes de assinar uma
Norma que favorecesse sua prática. Pois nem tudo aquilo que é lícito fazer, é
desejável pelo Estado que se faça.
Por
exemplo, diz o art. 5, inciso XV da Constituição Federal:
"É
livre a locomoção em território nacional em tempo de paz, podendo qualquer
pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens".
Assim,
é lícito que os moradores do campo abandonem sua terra e venham procurar abrigo
na cidade. No entanto, este fenômeno, conhecido como êxodo rural, está longe de
ser desejável, por causar desemprego, inchaço urbano e proliferação de favelas.
Por isso, o Estado não procura favorecê-lo. Ao contrário, estimula a fixação da
população rural em suas terras.
É
lícito, ainda, que qualquer brasileiro deixe o país com seus bens. No entanto,
nem por isso, o Estado favorece a emigração, oferecendo, por exemplo, passagens
aéreas gratuitas para os que quiserem definitivamente abandonar o Brasil e
fixar residência no estrangeiro.
Logo,
mesmo que matar um nascituro concebido em um estupro fosse um ato lícito, o
Ministro deveria perguntar a si mesmo: tal ato deve ser estimulado? O
Ministério da Saúde (que existe para cuidar da saúde) deve instruir os
hospitais a matar bebês?
Retirado de: http://www.providaanapolis.org.br/salto1.htm
Palavras chaves: aborto estupro crime 128 ilícito Estado