® BuscaLegis.ccj.ufsc.Br

 

A Certidão de Óbito Falsa como Causa Extintiva da Punibilidade

Ruth Duarte, Patrícia Teixeira Guimarães
Simone Disconsi de Sá e Karine Susan Oliveira Gomes

1. DA PRÁTICA USUAL

Consta dos anais forenses a prática usual de indiciados ou acusados que forjam atestado de óbito com o intuito de extinguir o processo, face ao reconhecimento da extinção da punibilidade.

Deste modo, assegura-se a impunidade do delito perpetrado, diante da consagrada impossibilidade de transcender a coisa julgada quando em confronto com o direito de liberdade do indivíduo.

Vence, assim, a perspicácia dos advogados, que não raras vezes orientam seus clientes no sentido da simulação da morte, na certeza da imutabilidade da coisa julgada.

Assim, a coisa julgada serve de escudo protetivo à prática criminosa, na medida em que o criminoso age na certeza da não aplicação das sanções penais.

2. A DISCIPLINA JURÍDICA DA MORTE DO SUJEITO ATIVO DO ILÍCITO

A morte do agente é um fato jurídico em sentido estrito, relevante ao mundo jurídico, na medida em que traz conseqüências previamente estabelecidas na lei.

Extinguir a punibilidade diz respeito a impossibilidade do Estado aplicar a sanção penal ao infrator da norma penal.

Sujeito ativo é aquele contra quem se deduz a pretensão punitiva.

Assim, a extinção da punibilidade não permite que o Estado processe o criminoso por meio da persecução penal, haja vista o princípio da intranscendência.

Com efeito, nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente, de forma que a sanção penal é eminentemente personalíssima, impedindo que recaia sobre os sucessores do infrator, nos moldes do contido no artigo 5º, incisos XLV, 1ª parte, da Constituição Federal.

O aludido aspecto personalíssimo da pena representa uma vitória conquistada através dos séculos, consagradora da responsabilidade penal subjetiva.

A responsabilidade penal exige a configuração da culpa ou do dolo (imputatio delicti), imprimindo uma diretriz à relação causal, eliminando, deste modo, os eventos desprovidos de subjetividade.

Com efeito, para que o resultado jurídico seja atribuído ao sujeito ativo, deve o mesmo entrar na sua esfera de previsibilidade.

Cabe destacar que alguns autores asseveram que a rixa qualificada (artigo 137, parágrafo único, do Código Penal), a adoção responsabilidade sucessiva da Lei de Imprensa (artigo 37, da Lei Imprensa) e a embriaguez voluntária completa são resquícios da responsabilidade objetiva.

No que concerne à responsabilidade cível, esta subsiste frente ao reconhecimento da extinção da punibilidade, incumbindo ao interessado acionar o Poder Judiciário com vistas à indenização (actio judicati ou actio civilis ex deliti).

Por outro lado, o artigo 62, do Código de Processo Penal, disciplina que a morte do agente deve ser provada por intermédio da certidão de óbito.

A propósito. A título de ilustração:

EMENTA : "Ação Penal. Extinção da punibilidade. Morte do agente. Comprovada a morte do agente, através da competente certidão de óbito, impõe-se a declaração de extinção da punibilidade."
(TJGO, 2ª Câmara Criminal, RECURSO : Ação Penal n 148-9/212, DJ n 12063 de 15/05/1995 p 13).

EMENTA : "MORTE DO RÉU. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. CERTIDÃO DE ÓBITO: IMPRESCINDIBILIDADE. - Impedido está o Julgador de decretar extinta a punibilidade do Réu, com a juntada apenas do laudo de exame cadavérico do mesmo aos autos, posto exigir, expressamente, o artigo 62, Código de Processo Penal, a certidão de óbito lavrada no cartório competente. - Recurso provido".
(TJGO, 2ª Câmara Criminal, Recurso em Sentido Estrito, DJ n 12912 de 19/10/1998 p 12).

3. AUSÊNCIA DO EFEITO NEGATIVO DA COISA JULGADA.

A coisa julgada é garantida no âmbito da Constituição Federal, sob o fundamento da necessidade da estabilidade nas relações jurídicas.

Um dos escopos da jurisdição é a pacificação social, de modo que os litígios não fiquem pendentes no tempo.

Assegura-se, pois, a segurança jurídica, estabilizando a justiça como um todo.

Questiona-se:

Há segurança jurídica se o criminoso, que se dizia morto, está vivo?

Até que ponto esse valores podem conviver harmoniosamente juntos?

O processo não é apenas instrumento técnico, mas meio idealizador, dependente diretamente das escolhas axiológicas da Magna Carta.

O processo deve efetivar o direito material e os direitos que estão na Constituição.

Nesse diapasão, a Constituição Federal em momento algum autoriza a impunidade, nem obriga as autoridades a serem coniventes com falcatruas.

Que Justiça haveria se a máquina judiciária não pudesse ser acionada devido a falsidade da prova do óbito?

Parte da doutrina brasileira, considerando o sistema penal, acentua que o reconhecimento da extinção da punibilidade em Juízo, devido à produção de prova documental falsa da certidão do assento do óbito, impede o cabimento de qualquer remédio processual em face da res judicate.

Com efeito, até mesmo a Revisão Criminal, que é uma forma de sobrepujar a coisa julgada, com previsão no artigo 621 e seguinte do Código de Processo Penal, resta repelida, na medida em que falta a possibilidade jurídica do pedido.

Justifica-se.

Tal como a ação rescisória, a revisão criminal não é recurso, porquanto instaura outra relação jurídica processual.

Ocorre que o remédio em tela somente é admitido no direito brasileiro quando pro reo e, nunca pro societate, exigindo, pois, a existência de sentença condenatória, bem como a configuração de uma das hipóteses taxativas do artigo 621, do Código de Processo Penal.

Deste modo, o pedido somente é juridicamente possível diante da prolação de uma sentença condenatória transitada em julgado.

Assim, se no processo o magistrado declara extinta a punibilidade pela morte do agente, ocasionando o transito em julgado da sentença, apenas restaria o caminho da abertura de novo procedimento relativamente aos autores da falsidade.

Cabe destacar, por oportuno, que situação diferente seria o caso da decisão não transitar em julgado, sendo que então caberia ao Ministério Público interpor Recurso em Sentido Estrito, nos termos do artigo 581, inciso VIII, do Código de Processo Penal.

Tais inferências significam o reconhecimento do fracasso da Justiça, frustando o princípio da inderrogabilidade, ou seja, a certeza da aplicação da sanção penal.

Porém, tendo em vista que inexiste a morte, em realidade não há formação da coisa julgada, podendo o processo prosseguir.

Enfim, não há o efeito negativo da coisa julgada, isto é, a proibição de se voltar a discutir o que foi decidido na decisão irrecorrível, qualquer que seja a ação futura.

Ex vi, não se trata de exceção a revisão criminal, mas do acolhimento da ausência da res judicati.

No processo penal, todos os meios de prova são admitidos, ainda que não previstos em lei.

Meios de prova são os instrumentos trazidos ao processo para formar a livre convicção do magistrado a respeito de um fato.

Para que sejam admitidos, os meios de prova não podem estar contaminados pela ilicitude ou ilegitimidade.

Provas ilícitas são aquelas produzidas em desrespeito as regras de direito material, enquanto que as provas ilegítimas violam uma vedação de ordem processual.

Considerando que a lei processual penal aponta uma restrição relativamente à comprovação da morte do agente, na medida em que exige prova documental, o agente que falsifica o atestado de óbito, realizou uma prova proibida pelo ordenamento jurídico, ou seja, prova ilegítima.

E mais, atentou contra os princípios da moralidade e lealdade.

Pelo exposto, não há a formação da coisa julgada. De fato, o que ocasiona a extinção da punibilidade é a morte e sendo que esta inexiste, a coisa julgada não pode constituir-se validamente.

4. SANÇÃO JURÍDICA PELO DESCUMPRIMENTO DAS NORMAS DO PROCESSO.

A decisão que declara extinta a punibilidade com base em certidão de óbito falsa não é sentença, mais sim decisão interlocutória mista, a qual não examina o mérito da causa, sendo, portanto, incapaz de gerar conseqüências jurídicas, haja vista tratar-se de um ato inexistente.

A extinção da punibilidade pela morte do agente se dá independente de qualquer conteúdo decisório (mors omnia solvit). A propósito, a improsseguibilidade da ação penal deriva da morte, e não da autoridade da coisa julgada.

No âmbito das nulidades processuais, insere-se a categoria dos atos inexistentes, que são aqueles que, embora materialmente possam existir, juridicamente não existem.

A validade da sentença subordina-se à sua conformidade com a lei, e também como a veracidade dos fatos.

Assim, inexistente a morte (fato jurídico inexistente), não há a formação da coisa julgada e, via de conseqüência à ação penal pode ter seguimento.

É importante frisar o seguinte posicionamento:

"O pressuposto da declaração da extinção da punibilidade é a morte, e como esta inexiste, a decisão não adquire a força de coisa julgada. Assim, o processo pode prosseguir, salvo a ocorrência de outra causa de extinção, como a superveniente prescrição".
(Delmanto in Código Penal Comentado, citando Florêncio de Abreu, Comentários ao Código de Processo Penal, 1945, v. V, p. 422, baseado no antigo Código de Processo Penal italiano, art. 69 do atual (reforma de 1988); STF, RTJ 104/1063, 93/986, RT 573/445; HC 60.095, DJU 17.12.82, P. 13203; TJSP, RJTJSP 98/485. TAMG, RJTAMG 54-55/526)

A forma de dar continuidade do processo dar-se-ia através de uma ação declaratória de inexistência.

Seria uma espécie de incidente de falsidade documental tardio, nos termos dos artigos 145 e seguinte do Código de Processo Penal.

O incidente de falsidade documental serve para a impugnação da validade de um documento, com a finalidade do seu desentranhamento e, posterior, apuração da falsidade documental.

Nesse contexto, o próprio Juízo de primeiro grau poderá anular o processo, determinando a continuidade do feito, com oitiva das testemunhas arroladas na exordial acusatória.

Assim, a segurança jurídica restaria observada, na medida em que a paz social é mantida, através da efetiva punição e ressocialização dos infratores.

A disciplina jurídica precisa aprimorar-se, com o escopo de diminuir a delinqüência, que a cada dia mais aperfeiçoa técnicas, com a capacidade ainda de contratação de advogados capacitados.

Não se trata de aprimoramento inútil, como o preconizado pelo Movimento da Lei e Ordem, que a pretexto da manutenção da paz social, utilizou o direito penal simbolicamente, isto é, acentuando a necessidade do aumento da produção legislativa.

Logo, vale o princípio de que é inadmissível que o autor de um delito venha a ser beneficiado em razão da própria conduta criminosa.

CONCLUSÃO

De todo o exposto, extraem-se as seguintes conclusões:
1) O que extingue a punibilidade do agente é o fato natural morte, motivo pelo qual a certidão de óbito falsa não tem o condão de produzir tal efeito, eis que não exprime a verdade;
2) A decisão que extingue a punibilidade do agente tem natureza jurídica de interlocutória mista, uma vez que não analisa o mérito e, portanto, não produz coisa julgada material;
3) Ademais, no caso, considerando que a extinção da punibilidade está fulcrada tão somente na certidão de óbito, a constatação de sua falsidade acarretaria a inexistência da própria decisão;
4) A forma de dar continuidade ao processo dar-se-ia através de uma ação declaratória de inexistência, a qual seria uma espécie de incidente de falsidade documental tardio, nos termos do artigo 145 e seguintes do Código de Processo Penal.

1) Promotoras de Justiça no Estado de Goiás

 

Retirado de: http://www.conamp.org.br/eventos/teses/tese020.htm