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A relevância das arras e da cláusula penal no Direito Contratual Moderno

 

Thiago Luis Santos Sombra

 

1. Conceituação, classificação e distinção das arras

O vetusto instituto das arras, do latim arrha, encerra a idéia de garantia, penhor. Sinônimo de sinal, sua origem está assentada no Direito de Família, muito embora tenha sido no Direito das Obrigações o alcance de seu vasto desenvolvimento conceitual.

Em verdade, as arras correspondem à quantia paga ou ao bem entregue, por um dos contratantes ao outro, como sinal de confirmação do contrato, ou como forma de permitir, eventualmente, o arrependimento das partes. O sinal, como sua denominação indica, representa um meio de prova da vontade séria e firme de contratar.

Mister que se advirta, pois, que o sinal somente possui respaldo legal nos contratos bilaterais, ou seja, aqueles que produzem efeitos para ambas as partes.

Persistente é a controvérsia na doutrina e nas legislações no tocante à finalidade das arras.

Para a doutrina alemã, bem como a suíça e a brasileira, o sinal importa em um pacto acessório de caráter real, cujo objetivo é provar que o contrato principal está concluído e, por conseguinte, encontram-se as partes reciprocamente vinculadas. São as denominadas arras confirmatórias. Destarte, para a referida corrente, uma vez dada as arras (confirmatórias), essas tem o poder de garantir que o contrato será cumprido. Com efeito, possuem o condão de tornar obrigatório o contrato, de modo que são empregados justamente com o escopo de dificultar ou impedir que qualquer das partes se arrependa. Caio Mário da Silva Pereira lembra que as arras confirmatórias vislumbram, sobretudo, motivos de ordem altamente moral, de modo que "não deixam a seriedade dos negócios à mercê de um direito de arrependimento comprado e pago antecipadamente."

Valioso ressaltar, outrossim, que uma das características essenciais das arras refere-se a acessoriedade e caráter real, a saber, o sinal só é válido após efetiva tradição do valor ou bem.

De outra forma, para a doutrina francesa, o sinal (penitencial) consiste na entrega efetiva e inequívoca de valor ou bem, com a garantia de potencial arrependimento de qualquer um dos contratantes. Pontes de Miranda acrescenta que "para que haja o direito de arrependimento, é preciso que se altere a concepção regular da eficácia das arras: tem de ser estipulado que o doador das arras pode arrepender-se, ou que o tem o recebedor". Em verdade, as arras penitenciais representam o valor da indenização, devida em razão da utilização do direito de arrependimento, que deve constar expressamente do pactuado. No entanto, a faculdade concedida aos contratantes somente sobrevive até a execução integral da obrigação.

O Código Civil brasileiro, utilizando uma conceituação mista, fugiu aos extremismos da doutrina alemã e francesa e conjugou as duas modalidades de arras. No entanto, para que se afigure possível o aspecto penitencial das arras, necessário se faz a sua estipulação expressa. Ao revés, prevalecerá o caráter confirmatório.

A doutrina acrescenta ao rol das arras uma terceira classificação, qual seja, as arras assecuratórias. Caracterizam-se como um sinal entregue com o intuito de garantir a formação definitiva do contrato, no momento em que as partes ainda se encontram nas negociações preliminares ou período das tratativas. Guardam pequena semelhança em seus efeitos com a proposta, tendo em vista que visam vincular, ainda que de modo mais sutil e frágil, as partes.

Aspecto de relevante discussão doutrinária circunscreve-se ao objeto das arras. Para Pontes de Miranda, "o objeto das arras pode ser qualquer bem patrimonial, de que se possa dar posse ao figurante do pacto, ainda quando por endôsso, ou registro, ou constituto possessório, traditio brevi manu ou longa manu(...)." Ao que tudo indica e, nesse mister, a posição do mencionado autor parece ser a mais acertada, o dispositivo do art. 1096, em sua 1ª parte, concede a propriedade ao recebedor das arras – hipótese em que se restringe a bens fungíveis - e, a 2ª parte, determina que devem ser restituídas quando o contrato for concluído – caso de bens infungíveis.

No que pertine aos efeitos produzidos pelas arras penitenciais e confirmatórias, e a respectiva distinção entre as duas modalidades, peço vênia para transcrever as palavras do eminente Min. Eduardo Ribeiro, no voto proferido no REsp n° 1.267/RJ:

"Com efeito, as arras hão de reputar-se, em princípio confirmatórias, fazendo presumir acordo final e tornando obrigatório o contrato (art. 1094). Não haverão de propiciar margem a arrependimento, posto que sua função é exatamente evitá-lo. Para isso são utilizadas. Não se exclui, entretanto, disponham as partes de modo diverso, desde que assim convencionem. Estabelecendo que poderão arrepender-se, a parte que se valer dessa faculdade perderá o sinal ou, conforme o caso, haverá de restituí-lo em dobro(art. 1095). Nessa hipótese, afasta-se a possibilidade de que se pleiteiem perdas e danos.

Estabelece, entretanto, o artigo 1.097, que perderá as arras, em benefício do outro contratante, aquele que, as havendo dado, ocasionar se impossibilite a prestação ou rescinda o contrato. Se apenas à perda das arras cingir-se a sanção, deixam elas, a rigor, de ser confirmatórias, tendo tratamento igual ao das penitenciais. Não importando se avençado ou não o direito de arrependimento, as conseqüências seriam as mesmas de quem dá as arras. (...) Não existindo esta (arra penitencial), a perda das arras não excluiria a possibilidade de indenização, ao menos quando o dano resultante lhes superasse o valor."

Portanto, na hipótese em que o comprador desiste do contrato, que envolve sinal penitencial, perderá, apenas, o valor do sinal. Se, ao contrário, for o vendedor o desistente, esse terá que restituir o valor inicialmente pago, somado-se a isso o mesmo valor que lhe cabe no contrato, qual seja, o valor pago pelo comprador. Pragmaticamente, deverá o vendedor restituir o dobro do valor. Dessarte, o sinal penitencial não passa, verdadeiramente, de uma prefixação de perdas e danos. Quiçá, este seja o motivo pelo qual inúmeros doutrinadores o confundem com a cláusula penal. Orlando Gomes e Caio Mário da Silva Pereira restringem a distinção entre cláusula penal e arras, tão-somente, às arras penitenciais. Em que pesem as razões esposadas pelos renomados autores, não compartilhamos da referida restrição, uma vez que os argumentos utilizados para distinguir a cláusula penal das arras, não são intrínsecos apenas as arras penitenciais, todavia relacionam-se com o instituto das arras em sua generalidade.

Obtempere-se, ainda, que a Súmula 412 do excelso Supremo Tribunal Federal, em termos, dispõe que "quando se configurar cláusula de arrependimento (sinal penitencial), a restituição em dobro do sinal, devidamente corrigido, pelo promitente devedor (promessa de compra e venda), exclui indenização maior a título de perdas e danos" (cf. REsp n° 34.793/SP, Rel. Min. Barros Monteiro). Ante tais circunstâncias, resta trazer a lume o emprego dos argumentos apagógico, a coherentia e sistemático, para que se possa afirmar, sem hesitar, que a interpretação da Súmula 412 permite a conclusão de que o sinal penitencial ou cláusula de arrependimento, não podem ser cumulados, em regra, com perdas e danos. A contrario, somente o sinal confirmatório admite a cumulação do sinal e perdas e danos. Tal lição já havia sido colacionada pelo eminente Min. Eduardo Ribeiro, no voto anteriormente citado, e encontra guarida na pacífica jurisprudência do egrégio Superior Tribunal de Justiça, conforme se depreende dos seguintes arestos:

"ARRAS PENITENCIAIS. SÚMULA N. 412 DO COLENDO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PRECEDENTES DA CORTE. SUCUMBÊNCIA.

1.Tratando-se de arras penitenciais, prevista no contrato a cláusula de arrependimento, impõe-se a perda do valor a tal título pago, aplicando-se a Súmula n° 412 do colendo Supremo Tribunal Federal.

2. Omissis.

3. Omissis."

(REsp n° 115.155/RG, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito).

"ARRAS.

A Súmula 412 do Supremo Tribunal Federal refere-se aos compromissos com cláusula de arrependimento, não se aplicando àqueles em que as arras sejam apenas confirmatórias.

O artigo 1097 do Código Civil não há de ser interpretado como tratando as arras sempre como penitenciais, equiparando as hipóteses em que se avença a faculdade a parte poder arrepender-se àquelas em que existe em que inexiste tal cláusula. Inaplicáveis, de qualquer sorte, quando o descumprimento deveu-se a quem recebeu o sinal."

(REsp n° 1.267/RJ, Rel. Min. Eduardo Ribeiro).

Entretanto, se o sinal for confirmatório, como já se assinalou acima, o valor pago mediante arras representa apenas uma quantia mínima da indenização. Na espécie, o arrependimento não se torna possível, visto que a parte que se negar a cumprir a obrigação ou se arrepender, não estará atuando em conformidade com o estipulado, mas descumprindo o contrato. Em suma, além da repetição do valor entregue – a título de arras - é possível a exigência das perdas e danos, referente, justamente, a infringência do contrato. As arras devem ser consideradas como um meio de facilitação e, não necessariamente, limitação da responsabilidade pelas perdas e danos.

2. Conceituação e classificação da cláusula penal

A definição que melhor encerra os elementos estruturais e ontológicos da cláusula penal foi elaborada pelo saudoso professor Rubens Limongi França nos seguintes termos, verbis:

"é um pacto acessório, ao contrato ou a outro ato jurídico, efetuado na mesma declaração de vontade, ou em declaração à parte, por meio do qual se estipula uma pena, em dinheiro ou outra utilidade, a ser cumprida pelo devedor, ou por terceiro, cuja finalidade precípua é garantir, alternativa ou cumulativamente, conforme o caso, em benefício do credor ou de outrem, o fiel cumprimento da obrigação principal, bem assim, ordinariamente, constitua-se pré-avaliação das perdas e danos e punição do devedor inadimplente."

Assim, a cláusula penal encontra percalço legal para que as partes, dispondo de sua liberdade contratual ou livre arbítrio, assegurem o implemento da obrigação e a possível antecipação das perdas e danos. É o ato pelo qual o devedor promete ao credor uma prestação, para o caso de inadimplemento ou o não cumprimento devido de uma obrigação, a qual denomina-se principal. Sua finalidade primordial, segundo o escólio de Caio Mário, é o incentivo, o estímulo, o reforço ao vínculo obrigacional:

"o devedor, que já o era em razão da obligatio, reforça o dever de prestar com o ajuste da multa, que lhe pode exigir o credor, se vem a faltar ao cumprimento do obrigado. Simultaneamente com esta finalidade, a lei admite que a inexecução faculte ao credor a percepção da cláusula penal, que figura conseguintemente como a liquidação antecipada das perdas e danos, em que normalmente se converteria o inadimplemento".

Toda espécie de obrigação pode ser aderida por uma cláusula penal, desde que, de forma expressa e inequívoca.

A cláusula penal pode ser estipulada para a eventualidade de o devedor deixar de cumprir a obrigação na sua totalidade ou para o caso de inadimplemento no prazo fixado. Aquela recebe o nome de compensatória, essa, moratória.

Cumpre salientar que o artigo 920, do Código Civil, veda que o valor da cláusula penal exceda ao da obrigação principal, de sorte que se isso ocorrer, tal cláusula será passível de anulação.

As características da cláusula penal são a acessoriedade, obrigatoriedade (desde que não sejam leoninas ou cujo valor não seja superior ao da obrigação principal) e condicionalidade/potencialidade.

Seus feitos, conforme Caio Mário, são variados:

a)se a obrigação for a termo, automaticamente incorrerá em pena convencional, o devedor que não a cumpre no prazo estipulado. Entretanto, se a obrigação não possuir prazo certo, o credor precisa constituir o devedor em mora para que daí possa pleitear a pena. Por outro lado, b) se o inadimplemento decorrer em função do descumprimento total ou parcial da obrigação (pena compensatória), ao credor é facultado uma escolha: ou o cumprimento efetivo da obrigação ou a pena convencional, que visa a compensar o dano sofrido.

Portanto, no momento da escolha, caso o credor opte pelo recebimento da cláusula penal compensatória, não mais poderá ingressar em juízo com o escopo de pleitear as perdas e danos e, tampouco, a execução do contrato. Todavia, poderá ocorrer a cumulação da cláusula penal moratória com a execução do contrato.

O grande benefício da pena convencional, conforme dispõe a inteligência do art. 921, do CC, é sua exigibilidade de pleno jure. O ilustre Desembargador Ênio Santarelli alerta que "a cláusula penal substitui a propositura de uma ação para compelir o infrator a pagar os prejuízos". Não fica o credor subordinado a provar a ocorrência, efetiva ou não, de prejuízo pela inexecução da obrigação para que o devedor incorra na pena.

3. Diferenciação dos institutos da cláusula penal e arras

Dessa forma, uma vez estabelecidos os marcos teóricos de cada um dos institutos, cabe versar sobre suas distinções.

Na lição do saudoso Washington de Barros Monteiro, "o sinal ou arras tem grande afinidade com a cláusula penal. (...) Não obstante a presença de pontos comuns, a verdade é que elas se distinguem de modo nítido" .

(1) As arras consistem em uma convenção acessória e de caráter real, ou seja, somente se configura com a entrega efetiva do valor ou do bem. A cláusula penal, ao revés, possui natureza pessoal.

O (2) sinal também se distingue da cláusula penal em seu aspecto cronológico. O sinal é transferido no momento em que firmado o contrato. A cláusula penal só é devida e transferida em razão da inexecução do contrato, ou seja, posterior a sua celebração. "A cláusula penal torna-se devida se houver infração do ajuste, e, se não houver ou enquanto não houver, seu valor é potencial ou latente; as arras são transferidas desde logo, e seu valor é efetivo para a hipótese de futuro arrependimento".

(3) A cláusula penal, por um lado, visa a reforçar o cumprimento do contrato, enquanto que o sinal confirmatório tem a finalidade de torná-lo obrigatório. O sinal penitencial objetiva permitir o possível arrependimento.

(4) As arras só podem ser estipuladas nos contratos bilaterais, ao passo que a cláusula penal pode ser estabelecida para qualquer obrigação.

Conforme dispõe o art. 1094, (5) o sinal confirmatório se presume, de sorte que o sinal penitencial, bem como a cláusula penal precisam ser pactuados, de forma expressa e inequívoca, pelos contraentes.

Outro traço que pode ser citado como distintivo dos dois institutos estudados refere-se a (6) possibilidade de redução, pelo juiz, da cláusula penal leonina (art. 924, do CC), ao passo que o mesmo não pode se dar com as arras.

Ressalve-se, por fim, que é plenamente possível que um contratante previdente queira cumular, em um mesmo contrato, o emprego de cláusula penal e arras (e.g. REsp n° 49.933/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo), com o intuito de resguardar e assegurar o cumprimento da prestação avençada. É o caso, por exemplo, do artigo 1097. Aquele que der arras perde-las-á em benefício daquele que as recebeu, caso venha tornar impossível a prestação. Se os contratantes estipularam a cláusula penal, o contratante responsável pela obstacularização perderá as arras e, ainda, incorrerá no descumprimento do contrato, devendo, portanto, o valor a título de cláusula penal.

 

4. Bibliografia

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Thiago Luis Santos Sombra

Acadêmico de Direito do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB

Acadêmico de Ciência Política da Universidade de Brasília – UnB

Estagiário na Defensoria Pública do Distrito Federal

Estagiário no Superior Tribunal de Justiça - STJ

Estudante - Brasília-DF data 10 de junho de 2001.

Fonte:http://www.apriori.com.br/artigos/arras_e_clausula_penal.shtml