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A ortodoxia do sistema acusatório no processo penal
brasileiro: uma falácia (*)
Sergio
Demoro Hamilton (**)
“Quem tiver um juiz
por acusador precisa de Deus como defensor.
Mas, às vezes, isso não é suficiente.”
(***)
1. Nos idos de 1974, ao examinar o
anteprojeto de Código de Processo Penal[1][1], saudava eu, com euforia, a inovação nele contida,
ao consagrar a forma acusatória pura, rompendo com o inquisitorialismo até
então vigente em nosso processo penal (nos, atualmente, revogados arts. 26 e
531 do CPP). Com efeito, embora a
“Exposição de Motivos” do diploma legislativo dos anos 40 afirmasse que o
projeto atendia “ao princípio ne procedat
judex ex officio, que, ditado pela evolução do direito judiciário penal e
já consagrado pelo novo Código Penal, reclama a completa separação entre juiz e
o órgão de acusação, devendo caber exclusivamente a este a iniciativa da ação
penal ” (nº V), abria imensa brecha no sistema, mantendo o procedimento ex officio “só” em relação às contravenções (destaque meu). Posteriormente, a malfadada Lei 4.611/65
veio a ampliar, ainda mais, aquela anomalia, estendendo-a para os crimes dos
arts. 121 e 129 do Código Penal, quando culposos. Não será exagero afirmar que 50% dos feitos criminais, que
tramitavam no foro, filiavam-se ao inquisitorialismo. Mas isto são águas passadas.
O projeto, como tantos outros, abortou e, até hoje, não temos um novo
Código, optando o legislador, ao que se vê e se deplora, por proceder a
reformas setoriais e esparsas em nossa legislação processual. Vivemos, na atualidade, sob a égide de um
cipoal de leis, onde o sistema, há muito, deixou de existir. Assim, somente com o advento da Constituição
Federal de 1988 é que aqueles dispositivos (arts. 26 e 531 do CPP) se viram
extirpados da nossa legislação pelo fenômeno da não recepção (art. 129, I, da
CF) ou, como preferem outros, da revogação de lei ordinária por norma
constitucional superveniente.
2. Tais reflexões vêm à balha em função de
inúmeros dispositivos, que, de forma promíscua, sobrevivem em nossa legislação
processual penal, notadamente, no Código de Processo Penal, e que afrontam, não
há negar, o sistema acusatório consagrado em nossa Carta Política.
Geraldo
Prado[2][2], em seu substancioso e erudito estudo sobre o
sistema acusatório, assevera que, embora a Constituição da República não o diga
expressamente, não resta dúvida que ela adotou todas as elementares do
princípio acusatório, na medida em que conferiu ao Ministério Público a
privatividade do exercício da ação penal pública, consagrando o devido processo
legal, a ampla defesa e o contraditório, e assegurando, do mesmo passo, o
julgamento dos feitos por um juiz competente e, obviamente, imparcial.
Da mesma forma, o douto Promotor de
Justiça Marcellus Polastri Lima[3][3], de maneira taxativa e peremptória, afirma não
haver dúvida de “que constitucionalmente foi adotado no Brasil o sistema
acusatório” em razão dos princípios adotados na Lei Magna, tais como, entre
outros, o princípio do juiz natural e imparcial (arts. 5º, LIII, 92 e 126) e,
de forma especial, pelo fato de ser privativa do Ministério Público a promoção
da ação penal pública (art. 129, I).
Aliás, impõe-se a averbação, como não poderia deixar de ser, também nos
crimes de iniciativa privada, comete-se às pessoas enumeradas nos arts. 30 e 31
do CPP o jus persequendi in judicio,
qual noticia Tourinho[4][4].
Seria ideal que a Lex Maxima, no capítulo dos direitos e
garantias individuais, estipulasse regra expressa assegurando o sistema
acusatório. Porém, embora não o tenha
feito, parece-me assegurado o princípio.
3. No processo acusatório, como sabido, as
funções de acusar, defender e julgar integram a atribuição de órgãos distintos,
ao contrário do que se dá com o modelo inquisitório. É naquele que a clássica afirmação de Búlgaro (século XII), segundo a qual o juízo penal reside no actum trium personarum, encontra sua
verdadeira afirmação. Em conseqüência,
a acusação será, sempre, formulada por órgão diverso do juiz. Em outras palavras, em virtude do princípio
da inércia, não há “jurisdição sem ação”, para usar a conhecida expressão de Carnelutti[5][5], ao
designar o processo penal sem demanda, expungido do nosso ordenamento jurídico
pela Carta Magna de 1988, como já mencionado (1, supra).
Outra característica do processo
acusatório consiste no fato de o processo penal desenvolver-se através do
contraditório, sob a presidência de um juiz natural e imparcial. É, por tais motivos, a modalidade de processo
que guarda perfeita compatibilidade com o regime democrático.[6][6]
4. Colocadas algumas idéias básicas sobre
o que sejam o processo e o princípio acusatório, assim como a respeito do
tratamento que a matéria recebeu da nossa Lex
Legum, cabe, agora, com toda a pertinência, a seguinte indagação: nosso
processo penal adotou, mesmo, o sistema acusatório ou, ao contrário, nele
convivem inúmeros dispositivos que desafiam, abertamente, o princípio
acusatório?
Como explicar, então, a aplicação diuturna
e sem qualquer contestação, em nosso foro, dos artigos 5º, II, primeira parte,
10, §§ 1º e 3º, 13, II, 16, 28, 39,§§ 1º e 4º, 127, 133, 156, in fine, 311, 416 e outros do nosso CPP,
todos, sem exceção, em testilha com o sistema e o princípio acusatório?
Anote-se que a referência feita aos
aludidos dispositivos decorre de um exame superficial da nossa lei processual
básica, sem qualquer preocupação exaustiva, objetivando demonstrar,
tão-somente, e de forma meramente enunciativa, que diversos resquícios de
inquisitorialismo, apesar de decorrida mais de uma década da vigência da
Constituição Federal de 1988, ainda subsistem em nosso processo penal e – pior
que tudo! – não são, sequer, contestados, merecendo, até hoje, aplicação
tranqüila, inclusive em nossos tribunais superiores.
Tornaghi[7][7], muito antes da atual Constituição, já assinalara,
que, no processo penal brasileiro, há diversas formas inquisitoriais. Em função de tal entendimento, considera que
convivemos, na realidade, com um sistema misto.
Ocorre, porém, que, em razão da nova
Constituição Federal, aqueles provimentos
legislativos, nitidamente inquisitoriais, não mais poderão conviver, de
forma clandestina, em nosso processo penal, uma vez que não recepcionados pela
nossa Lei Maior. Aliás, nem mesmo antes
dela, aquela anomalia poderia subsistir em nosso código que proclamava a adoção
do sistema acusatório (1, supra).
5. O processo inquisitório, ao contrário
do que ocorre com o acusatório, tem como forma básica o fato de que se concentram em um só órgão as funções de
acusar, defender e julgar. Ao
contrário, no sistema acusatório, aquelas funções são cometidas a órgãos
diversos. Era acusatório o processo Romano
e de grande parte da Antigüidade. Em
Roma, a acusação era confiada ao ofendido (ação privada) ou a qualquer pessoa
do povo (ação popular), cabendo o julgamento ao juiz. Tornaghi[8][8] considera “errado” atribuir-se ao processo
inquisitório os característicos do sigilo e da escritura, pondo em relevo que
os autores, que se ocuparam ex professo
sobre a matéria, consideram a escritura e o sigilo como formas secundárias mas
não essenciais do processo inquisitório.
O renomado processualista ressalta, ainda, que o processo acusatório, em
diferentes fases do Direito Romano, foi escrito e sigiloso.
Na verdade, basta ler o nosso Código
para verificar que ele adotou um sistema misto: o inquisitório e o acusatório;
o primeiro, como será visto, observado na fase preliminar de investigação ao
passo que, com o ajuizamento da ação penal, ele assume o caráter
acusatório. Porém, como se verá, nem
mesmo naqueles dois momentos, há uma pureza sistemática. Na fase judicial, por exemplo, a publicidade
e a oralidade, formas históricas do processo acusatório, não são observadas
integralmente. Basta examinar os arts.
486 e 792 § 2º do CPP. Por outro lado,
o procedimento comum (arts. 394 e seguintes), reservado para os crimes mais graves,
conservou a forma escrita, enquanto a oralidade acabou adotada, em nossa
legislação, para o processo sumário.
6. Quando a Igreja, no século XIII, adota
o processo inquisitório, tinha por fim reprimir infrações penais praticadas por
hereges. Na lógica inflexível do
inquisidor a heresia constituía o pecado maior, resultando daí os amplos
poderes de investigação de que era dotado buscando obter a confissão, meta
final de todo o processo[9][9]. Manzini[10][10], com a habitual erudição, examina o processo
inquisitório em seus diversos aspectos, extrapolando os limites do presente
estudo uma análise mais aprofundada a respeito do interessante e rico
tema. Com o prestígio da Igreja,
dotada, então, de grande poder temporal, acabou o processo inquisitório por
alastrar-se pela Europa continental, passando a ser empregado, igualmente, por
tribunais civis. Tornaghi[11][11], por sinal, põe em relevo que muitas das graves
acusações feitas à Inquisição eclesiástica devem ser debitadas à Inquisição
Espanhola. Com efeito, o tribunal dos
reis Fernando e Isabel nada mais era que uma corte civil, embora dela também
fizessem parte clérigos. É bom ficar
registrado que o sistema inquisitório não foi criação da Igreja Católica; ela,
apenas, o difundiu. Muito antes,
durante séculos, ele coexistiu ao lado do acusatório[12][12] (vide,
também, o nº 05, supra).
7. Passa-se, no momento, ao exame do nosso
Código de Processo Penal, analisando alguns dos dispositivos acima indicados (4, supra),
todos em testilha manifesta com a nossa Carta Política e com o princípio
acusatório que ela adotou, finalidade precípua do presente estudo. Observe-se, ainda, que os mencionados
dispositivos brigam, há mais de meio século, com o sistema que o Código, pelo
menos em palavras, afirma haver adotado (1,
supra).
8. Analise-se, por primeiro, a fase
pré-processual em alguns dos seus artigos (arts. 5, II, proêmio, 10, §§ 1º e
3º, 13, II, (aqui, em termos), 16, 23, 28 e 39, §§ 1º e 4º, todos, do CPP).
A fase que antecede a ação penal
exige o completo afastamento do juiz da persecução criminal em um sistema que
pretenda ser acusatório. Em tal etapa
do procedimento, só encontra justificativa a presença do magistrado quando
pratica atos jurisdicionais que tenham por fim assegurar direitos fundamentais
não relacionados, diretamente, com o fato em apuração. É o caso, por exemplo, das cautelares de
natureza pessoal ou real, em que, por força do próprio princípio acusatório
assegurado pela Constituição, a presença do juiz se faz necessária. É o que ocorre, verbi gratia, quando da decretação de uma prisão preventiva, de um
arresto ou, ainda, por ocasião do arbitramento de uma fiança. Ao juiz, na fase preparatória da ação penal,
só compete a prática de atos de natureza jurisdicional, devendo, em razão
disso, ficar afastado da prática de providências que não lhe competem,
designadas, na doutrina, como atividades judiciárias em sentido estrito, ou,
ainda, pela expressão mais difundida, de funções judiciárias anômalas. Puro eufemismo, perdoem-me os doutos, para
indicar uma anomalia processual.
Perfeita a colocação do Professor Geraldo Prado[13][13], quando afirma haver afronta ao princípio
acusatório, manter sob o controle do juiz as diligências que devam ser
realizadas no inquérito policial ou, ainda, a fiscalização do princípio da
obrigatoriedade por parte do Ministério Público (art. 28 do CPP).
É certo que, em relação a esta
última providência, poder-se-ia adotar uma modalidade de controle interno a ser
exercida por um órgão colegiado do próprio Ministério Público, que determinaria
ou não o arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação,
retirando-se do Procurador-Geral a atribuição exclusiva, que, na atualidade,
lhe conferiu a lei. Da mesma forma, o
juiz não teria qualquer intervenção nesta fase do procedimento, cabendo-lhe
atuar, tão-somente, quando posta a demanda, recebendo ou rejeitando a exordial
de acusação[14][14].
Da mesma forma, não existe razão
para assegurar ao juiz a requisição no sentido da instauração de inquérito
policial (art. 5º, II). Bastaria ao
magistrado, ciente do fato criminoso, comunicá-lo ao Ministério Público, tal
como preconizado no art. 40 do CPP, mas sem exercer qualquer atividade
persecutória direta. A providência
alvitrada limitava-se ao dar ciência ao Ministério Público de um fato que, em
tese, seria uma infração penal de ação penal pública incondicionada, deixando
ao Parquet a realização de um prévio
juízo de valor sobre o mesmo.
Caberia, então, ao Ministério
Público requisitar a abertura do inquérito policial (art. 5º, II, do CPP),
arquivar o expediente respectivo ou oferecer, desde logo, denúncia, se o caso
permitisse. Ocorreria, assim mesmo, uma
intervenção mínima do juiz, porém, indispensável, pois, do contrário, o fato
não chegaria ao conhecimento do Parquet.[15][15]
Que dizer dos parágrafos primeiro e
terceiro do art. 10 do CPP?
O inquérito policial não tem que ser
remetido ao juiz competente, salvo, repita-se à exaustão, se o caso exigir
alguma providência jurisdicional (decretação de prisão preventiva, arbitramento
de fiança ou ainda quando se fizer exigível uma providência cautelar de natureza
real).
Quando da entrada em vigor do Ato
Executivo Conjunto de nº 01/97, de 01-XII-97, firmado pelo então
Corregedor-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e pelo Secretário de
Segurança Pública do mesmo Estado, fui indicado pelo Órgão Especial do Colégio
de Procuradores de Justiça para, como relator, integrar uma Comissão[16][16] destinada a examinar o ato normativo em
questão. As conclusões dos estudos
então elaborados pela Comissão foram encaminhadas ao Procurador Geral de
Justiça da época, Dr. Hamilton Carvalhido,
aos 23 de dezembro de 1997.
O Ato Executivo Conjunto em tela,
que constituía verdadeiro retrocesso no iter
procedimental dos inquéritos policiais, fazia ressurgir, sob a invocação dos
arts. 10, § 1º, 19 e 23 do CPP, a necessidade da remessa, pela autoridade
policial, do inquérito policial ao juiz competente, sob a herética afirmação da
necessidade da interveniência da autoridade judiciária na fase inquisitiva em qualquer caso, e não somente para a
prática de atos jurisdicionais. A
providência em questão revogou o Provimento de nº 255/91, da Egrégia
Corregedoria-Geral da Justiça-RJ, de 09.04.91, que vigorou durante quase 07
anos, servindo, até hoje, de modelo para outras unidades da Federação, e que
mereceu o aplauso de incontáveis doutrinadores. O Provimento em questão foi ab-rogado pelo aludido Ato Executivo
Conjunto. No regime anterior,
obedecia-se, com rigor, a ortodoxia acusatória, pois, de acordo com o que ele
dispunha, somente seriam admitidos para distribuição os inquéritos policiais
(ou peças de informação), quando houvesse:
a)
denúncia ou queixa;
b)
pedido de arquivamento;
c)
na hipótese do art. 19 do CPP;
d)
requerimento de providências cautelares de natureza pessoal ou real;
e)
comunicação de prisão em flagrante ou qualquer outra forma de constrangimento
aos direitos fundamentais elencados na Constituição Federal, como, à guisa de
exemplo, o direito à fiança. (art. 5º,
LXVI).
Pelo que se lia do ato normativo revogado,
somente os atos jurisdicionais típicos seriam, como não poderia deixar de
ocorrer, exercidos pelo juiz na fase pré-processual, excluindo-se da apreciação
judicial tudo aquilo que escapasse à sua esfera de competência nos moldes da
vigente Constituição Federal.
É interessante observar o absurdo
lógico contido no parágrafo 3º do art. 10 do CPP, independentemente de qualquer
outra consideração jurídica, ao estabelecer que o juiz fixará o prazo para a
realização de diligências na fase do inquérito policial. Como pode ele fixar um prazo relativo a
providências, que ele ignora, pois de difícil elucidação, mesmo para quem está
investigando?
Tudo o que ficou dito acima encontra
aplicação em relação ao art. 13, II, proêmio, da lei processual básica. Diga-se o mesmo no que respeita ao art. 16,
uma vez que o Juízo a respeito da imprescindibilidade das diligências é do Parquet, pois, certo ou errado, a ele
incumbe ajuizar a demanda; a autoridade judiciária, se for o caso, que a
rejeite, no momento oportuno (art. 43 do CPP).
Em relação ao art. 13, II, primeira parte, eventualmente, o juiz poderá
requisitar providências, desde que tenham por fim o cumprimento de atos
jurisdicionais típicos. Da mesma
maneira, não cabe ao Juiz ser destinatário da representação, como,
equivocadamente, consta dos parágrafos 1º e 4º do art. 39. Para que? Se ele, juiz, não pode investigar
e, muito menos, agir, inexiste razão para que a ele seja dirigida a notitia criminis postulatória. Somente a autoridade policial (art. 39 c/c
art. 5º, § 4º do CPP) e o Ministério Público (art. 39, § 5º do CPP) é que
poderão receber aquela condição de procedibilidade. Cumpre destacar que, em relação ao Parquet, não se justifica a observação constante da parte final do
§1º do art. 39 em
comento. A representação, pura e
simplesmente, será direcionada ao Ministério Público, quando a ele for dirigida.
9. As violações ao sistema acusatório
prosseguem, agora, na fase processual, contidas em inúmeros dispositivos do
nosso Código. Cabe, aqui, ressaltar
alguns casos gritantes de indevida intervenção judicial, onde o princípio
acusatório[17][17] vê-se relegado a um flatus vocis, despido de qualquer conteúdo prático.
No campo das cautelares, sejam elas
pessoais, sejam elas reais, ignora-se, por completo, o sistema acusatório.
Assim, à guisa de exemplo, no art.
127 permite-se ao juiz, de ofício,
ordenar o seqüestro dos bens do indiciado no curso do processo ou antes dele, na fase do inquérito.
Na oportunidade, impõe-se breve
digressão a respeito da existência de um processo cautelar em nosso Código de
Processo Penal. Ao contrário do que
ocorre na lei processual civil fundamental, inexiste na penal um processo
cautelar, tal como disciplinado no Código de Processo Civil (Livro III, Título
único, arts. 796 a 889). Apesar da
omissão, não paira dúvida a respeito da presença de incontáveis providências de
índole cautelar, de natureza real ou pessoal, presentes na fase do inquérito e
no decorrer do processo, que deveriam, sempre, subordinar-se às exigências do
princípio acusatório. Falta apenas, uma
organização sistemática da matéria, disposta de forma esparsa em um Código de
técnica pouco apurada, como é notório[18][18].
Feito o parêntese, resta retomar o
fio da meada.
No campo das cautelares de natureza
pessoal, permite-se, por exemplo, ao juiz decretar a prisão preventiva de
ofício (art. 311 do CPP), fato que mereceu interessante e severa crítica por
parte do Promotor de Justiça-RJ, Dr. Dennis
Aceti Brasil Ferreira[19][19]. Salienta,
por sinal, o ilustre Professor a evolução do legislador quando da edição da Lei
nº 7.960/89 (que trata da prisão temporária).
Com efeito, em seu art. 2º, “textualmente condiciona a prestação
jurisdicional – mesmo com decisão inaudita
altera pars – à efetiva provocação por parte do Ministério Público” ou da
autoridade policial[20][20].
10. No procedimento do júri verifica-se outra
aberração: a vinculação do libelo à pronúncia.
Sem meias palavras: a acusação que o Ministério vai sustentar em
Plenário, perante os jurados, não é sua, mas do Poder Judiciário (art. 416 do
CPP).
Haverá maior despautério?
Justifica-se tamanha misologia?
11. Ainda no Júri permite-se ao juiz
verdadeira ação penal ex officio no
art. 408, § 4º do CPP. Ali está dito, com
todas as letras, fazendo corar um frade de pedra, que “o juiz não ficará adstrito à classificação do crime, feita na
queixa ou na denúncia, embora fique o réu sujeito à pena mais grave, atendido,
se for o caso, o disposto no art. 410 e seu parágrafo”. É certo que se poderá argumentar que a
pronúncia não passa de mera decisão processual, pois, não condena nem absolve o
réu. É verdade. Porém, a pronúncia, uma vez preclusa a
decisão, irá vincular o libelo que o Ministério Público terá que sustentar perante
o juiz natural do feito.
Quid
juris?
A conseqüência será a de que o réu
poderá ser condenado por uma acusação partida do juiz, uma vez que a denúncia
(ou queixa) não foi aditada no momento oportuno. E, mais grave que tudo, a uma pena mais severa. Trata-se de nova distorção da lei
processual, violando o sistema e o princípio acusatório.
12. No Título da sentença (XII), que encerra o
Livro I do CPP, vamos encontrar a hipótese de mutatio libelli (art. 384, parágrafo único do CPP).
Registre-se, desde logo, a má
colocação da matéria no título reservado à sentença.
Em boa técnica, o aditamento da
denúncia só poderia ser postulado, até a fase de alegações finais, pelo
Ministério Público (ou, quando cabível, pelo querelante, na hipótese do art. 29
do CPP), após concluída a instrução criminal.
Não tem o mínimo sentido o juiz tomar tal providência sem violar, ainda
uma vez mais, o sistema acusatório. É,
novamente, o juiz atuando de ofício para agravar a situação do réu. Este se verá diante de uma imputação
alternativa, caso o Ministério Público, provocado pelo juiz, entenda ser
cabível o aditamento.
É certo que o Ministério Público não
estará obrigado a aditar a inicial.
Porém, o equívoco reside em dar ao juiz a iniciativa daquela providência.
Até aqui, venho usando a designação
procedimento ex officio, para
traduzir a atuação inquisitorial do juiz, por mera fidelidade ao uso correntio
que dela faz a doutrina tradicional.
Na verdade, ex officio significa aquilo que se faz “por ofício”[21][21], isto é, aquilo “que é feito em virtude da função
ou cargo”[22][22]. Já
anotara, faz muito[23][23], a impropriedade da expressão, quando usada para
indicar a atuação do juiz ao exercer atividade persecutória criminal, como
sendo própria ex officio iudicis. Na verdade, ao juiz compete julgar, ao passo
que às partes incumbe promover a ação penal.
Atribuir tal nomenclatura para definir função anômala exercida pela
autoridade judiciária em um sistema que, pelo menos na aparência, se diz
acusatório, constitui equivocada postura doutrinária. Quando o juiz julga, aí sim, ele atua de ofício. Melhor dizendo: este é o seu ofício; não a
iniciativa de demandar.
A Polícia Civil e o Ministério
Público é que atuam de ofício quando exercem atividade de persecução criminal.
13. No campo da legislação esparsa, isto é,
das leis especiais recentemente editadas, todas posteriores à vigência da Carta
Constitucional de 1988, da mesma forma, o sistema acusatório vem sendo
supinamente ignorado[24][24].
É o caso, por exemplo, da Lei do Crime
Organizado (nº 9034/95), bem como o da recente Lei nº 9.296/96, que trata da
interceptação telefônica, ambas situando o juiz em posição investigatória na
fase do inquérito policial, ferindo, com tal regulamentação, sua indispensável
imparcialidade e violando, no particular, de forma iniludível, a Carta Magna em
vigor.
Com efeito, o art. 3º da Lei nº
9.034/95 autoriza, expressamente, o juiz a realizar pessoalmente diligências
investigatórias, ainda na fase pré-processual, consagrando, ao assim proceder,
atos típicos do sistema inquisitivo.
Da mesma forma, a Lei de
Interceptação Telefônica (9.296/96) estabelece a possibilidade de que as
interceptações das comunicações telefônicas possam ser determinadas pelo juiz, de ofício, na fase do inquérito policial
(art. 3º). É o velho ranço
inquisitorial, mais uma vez, a fazer tábula rasa do sistema acusatório.
Aliás, a vetusta Lei de Falências
(Decreto-lei nº 7.661/45), ao que eu saiba, não mereceu, até hoje, contestação,
embora nela subsista um monstrengo judicial, destinado a apurar a prática de
crime falimentar. Tal inquérito é
presidido por um juiz, que, dessa maneira, exerce função persecutória penal, em
nova violação ao sistema acusatório.
Não discrepa de tal linha de conduta
o art. 294 do Código de Trânsito Brasileiro ao prever a decretação de medida
cautelar de ofício pela autoridade judiciária no curso do inquérito policial,
subvertendo-se, mais uma vez, a ordem processual, e comprometendo-se a
indispensável imparcialidade do juiz, pela ausência de provocação[25][25].
A Comissão constituída para estudo
do CTB, no âmbito interno do Ministério Público do Rio de Janeiro, em sua
conclusão de nº 05, firmou o seguinte entendimento:
“É
inconstitucional a atribuição de poder o juiz decretar de ofício as medidas
previstas no art. 294 do CTB, porque não existe jurisdição no inquérito,
violando-se o princípio acusatório e, conseqüentemente, ferindo-se a
imparcialidade do juiz”[26][26].
De igual forma, a Lei nº 9.099/95,
tão logo entrou em vigor, ensejou sérias controvérsias no campo doutrinário e
jurisprudencial a respeito da possibilidade de iniciativa do juiz no que
respeita à oferta de transação e de suspensão do processo. Não faltaram vozes autorizadas do processo
penal que defenderam a possibilidade de o juiz tomar a iniciativa daquelas
providências despenalizadoras quando o Ministério Público não o fizesse.
Posteriormente, a jurisprudência de
nossos tribunais superiores, acertadamente, firmou-se no sentido de que constitui
faculdade exclusiva do Ministério Público, para fins de política criminal,
propor a suspensão condicional do processo, admitindo-se, quando muito, em caso
de recusa do Promotor de Justiça em propor aquela medida, que a matéria seja
submetida ao Procurador-Geral de Justiça, vedando-se ao juiz proferir decisão a
respeito (cf. HC 75.743-MG – Pleno – em 12. XI.77, RHC 77.255-DF, de 23.2.99, in “Informativo STF nº 139 e HC
76.619-MS, in Clipping do D.J. de 19.2.99, HC 76.439-SP e HC 74.153-SP (DJU - 21.3.97), HC 77.723-RS em
15.9.98, os três últimos referidos no “Informativo STF” , de nº 123).
No campo da doutrina, Afrânio Silva Jardim[27][27] bem ressalta que não é papel do juiz, no sistema
acusatório, a iniciativa da transação penal ou da suspensão condicional do
processo. Do mesmo sentir, o
ensinamento de Marcellus Polastri Lima[28][28] ao registrar que é vedada a atuação do juiz ex officio, pois tal comportamento
“implicaria em ferir o princípio acusatório, considerando que a transação se dá
entre partes, e o juiz não é parte”.
Inobjetável, sem sobra de dúvida, o magistério daqueles dois eminentes
membros do Ministério Público do Rio de Janeiro.
14. Deixei, muito a propósito, para a parte
final do presente trabalho, o estudo de um tema extremamente delicado, qual
seja o de examinar os limites do juiz no que respeita à iniciativa de
prova. Para tanto, vejo-me forçado a
voltar ao Código de Processo Penal.
Na verdade, dispõe o art. 156
daquele diploma legislativo, que a prova da alegação incumbirá a quem a fizer;
mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença,
determinar, de ofício, diligências
para dirimir dúvida sobre ponto relevante (destaque meu). É assim que o ônus da prova resulta
disciplinado em nossa lei processual.
Posteriormente, o Código em comento contém outros dispositivos, todos
ociosos, que reiteram a norma geral
contida no art. 156, autorizando o juiz a determinar diligências probatórias,
independentemente de provocação das partes.
É o caso dos arts. 168, 209, 234 e 242 do CPP, aqui referidos à ventura
e sem qualquer preocupação com a dicção exaustiva de todos os casos em que a
lei previu aquela iniciativa judicial.
Tal repetição decorre da precária técnica do Código, como, em outra
oportunidade e para fins outros, já tive a oportunidade de anotar[29][29].
A iniciativa do juiz na busca de
provas está intimamente ligada ao princípio da verdade real, que não admite
possa o juiz ficar refém das partes em razão da natureza pública do processo e
do fim social a que ele se destina.
Tais considerações encontram eco em
nosso processo em função da vinculação do Direito brasileiro ao sistema
romano-germânico, próprio da Europa continental e dos países por ela
influenciados[30][30].
Eugenio
Florian[31][31], por todos, sintetiza, muito bem, tal poder do
juiz, ao salientar que “il giudice há la
facoltà d’introdurre, per la ricerca della veritá, oggetti ed organi di prova ex officio, senza attendere le proposte
delle parti”.
Na doutrina brasileira, Ada Pellegrini Grinover[32][32], da mesma forma, defende a ampla iniciativa
instrutória do juiz no processo penal, registrando que o sistema acusatório
moderno em nada impede a efetiva participação do magistrado no que diz respeito
à iniciativa das provas. Para a ilustre
professora, resta firme o princípio da demanda, segundo o qual incumbe à parte
a propositura da ação, porém, a partir daí, o processo se desenvolve por
impulso oficial. Critica, ainda, o
“mito” da verdade real (específico do processo penal), pondo em destaque que o
conceito de verdade real não é ontológico, uma vez que o juiz busca a verdade
processual (aquela mais próxima da certeza) e, como tal, aquela verdade não
pode ficar à mercê da influência das partes, subtraindo-se do julgador os
poderes instrutórios necessários para o seu alcance. A assertiva, no seu pensar, vale para o processo penal e para o
processo civil. Concede, porém, a douta
jurista, limites àquela atividade instrutória do juiz na fase de investigação,
sob pena de ressurgimento da figura do juiz-inquisidor do processo de
antanho. Neste momento do procedimento
admite, apenas, um juiz dotado de poderes para determinadas medidas cautelares.
José
Carlos Barbosa Moreira[33][33] é do mesmo sentir, ao enfatizar sua “pouca ou
nenhuma simpatia pela compulsória redução do papel atribuído ao juiz penal em
matéria de iniciativa probatória”, destacando o contraste no sentido dos
itinerários que vão percorrendo, na atualidade, o processo civil e o
penal. Enquanto o primeiro tende a
“publicizar-se”, cada vez mais, o segundo dá sinais de “privatizar-se”. Tal fato, salienta o eminente
processualista, decorre da “tendência ao esvaziamento das atribuições do juiz
penal como agente propulsor da instrução probatória, cuja ativação passa a
depender fundamentalmente da iniciativa das partes”.
15. O direito Processual herdado da Common Law, ao contrário, segue caminhos
radicalmente diversos ao do modelo originário da Europa continental. Lá, “a responsabilidade pela produção das
provas recai exclusivamente sobre as partes”.
Tal fato resulta de que o “processo penal nos Estados Unidos tem um caráter marcadamente acusatório, em
função do papel preponderante do promotor público, o prosecutor, em detrimento do papel do juiz de direito (que,
portanto, tem suas funções inquisitoriais praticamente anuladas)” [destaques
meus].As razões de tal procedimento são facilmente explicáveis. É que na Common
Law praticamente inexiste a figura do juiz “como agente gerador de impulsos
processuais”. Lá, pode-se dizer que o
processo é “coisa das partes”, autor e réu, no processo civil, e public prosecutor e réu no processo
criminal. Afasta-se, assim, de maneira
inconciliável, do nosso modelo (civil law),
herança do processo canônico medieval, marcadamente inquisitorial. Predomina, assim, o caráter adversary no cível e accusatory, no criminal[34][34].
16. Colocadas as posições antagônicas dos
sistemas da Common Law e da Civil Law, incumbe examinar se nosso
Código de Processo Penal, tal como alega em sua “Exposição de Motivos” e, como
ficou visto (nºs 1 e 2, supra),
prevê o Texto Magno, efetivamente, em matéria de prova, guardou fidelidade com
o princípio acusatório. Diga-se o
mesmo, quando cabível, a respeito de algumas das leis especiais, muitas delas
editadas após o advento da Constituição Federal de 1988 (nº 13, supra).
A resposta, necessariamente, terá
que ser negativa.
A simples leitura do art. 156, in fine, do CPP está a demonstrar que o
juiz penal detém amplos (amplos, não, imensos!) poderes investigatórios na fase
judicial. Tal afirmação encontra sua
razão de ser em face do princípio da verdade real, que se pretende intocável no
campo do processo penal[35][35] Aliás, a
parte final do aludido dispositivo da lei processual torna a primeira não de
todo inútil mas de valor relativo, quebrando, queiram ou não, a imparcialidade
do juiz e a ortodoxia acusatória.
Averbe-se que não se trata de mera faculdade do juiz a busca de
provas. O “poderá”, ali inscrito, por
força do princípio da verdade real, tem sido interpretado como um dever do juiz
suprir a omissão da parte em matéria probatória, mesmo que se trate de prova da acusação. É caso de dizer-se que a lei disse menos do que pretendia
afirmar. Aliás, a Exposição de Motivos
do CPP, ao abordar as provas, (item VII), deixa claro que “o juiz deixará de
ser mero expectador inerte da produção de provas. Sua intervenção na atividade processual é permitida, não somente
para dirigir a marcha da ação penal e julgar a final, mas também para ordenar, de ofício, as provas que lhe parecem
úteis ao esclarecimento da verdade.
Para a indagação desta, não estará sujeito a preclusões. Enquanto não estiver averiguada a matéria da
acusação ou da defesa, e houver uma
fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o in dubio pro reo ou o non liquet”. (destaques meus). Aqui
estamos, sem dúvida, no campo do princípio da verdade real levado à outrance.
Aliás, quer se veja como mera
faculdade, quer se veja como dever jurídico do juiz a busca ex officio das provas, em nada ficaria
afetada a violação ao sistema acusatório, pois, de uma forma ou de outra, o
julgador deixaria de atuar superpartes, comprometendo, a partir daí, a sua
imparcialidade.
Giovanni
Conso[36][36], ao examinar o sistema acusatório, entre outros
aspectos, frisa a necessidade de exclusão
da iniciativa judicial no recolhimento das provas.
Não procede, de forma alguma, a
alegação no sentido de que a iniciativa judicial no campo probatório não
compromete a imparcialidade do juiz.
Soa-me evidente que o magistrado, ao tomar a iniciativa da produção de
determinada prova em favor da acusação antevê determinado resultado, pois do
contrário não teria sentido a providência.
Geraldo Prado[37][37] usa uma feliz expressão para definir tal atitude,
ao designá-la como refletindo indiscutível “comprometimento psicológico” do
julgador, pois, ele mesmo, juiz, irá julgar a prova carreada aos autos em razão
de sua iniciativa e, portanto, no seu entendimento, relevante para o julgamento da causa penal. Prova, assinale-se, que não fora cogitada
pela acusação e que, em tese, pode resultar na condenação do réu.
17. Resulta evidente que toda a crítica em
relação à iniciativa probatória do juiz está dirigida somente quando ela é tomada no sentido de prover subsídios para a
acusação.
No campo da ação penal pública,
dispomos de um Ministério Público qualificado, intelectual e moralmente, para
atuar a contento, sem a necessidade do auxílio do juiz, desequilibrando a
balança em favor do autor da ação penal.
Por que, então, o bis in idem em detrimento do réu?
Por que dois órgãos do Estado (o
Ministério Público e o juiz) devem alinhar-se na persecução criminal em
desfavor do réu?
Sem dúvida, em um processo que se
pretenda acusatório, sabe-me absurda a providência que enseja ao juiz enveredar na busca de provas que
possam, no menos em tese, incriminar o réu.
Quem procura busca achar o que se propõe encontrar.
Ou tratar-se-ia de providência
imotivada?
Não dá para entender a histórica
desconfiança do legislador para com o Ministério Público, tão empenhado quanto
o juiz na realização de um processo
justo.
Não se deve, na análise da quaestio, fazer qualquer comparação com
o processo civil. Nele predomina o
interesse da parte em ver acolhida a sua pretensão. Tal observação mostra como é perigosa a assemelhação entre os
dois processos. No cível, o autor não
ingressa em juízo com o objetivo nobre de ver reintegrada a ordem jurídica
violada. O autor não é promotor de justiça; é promotor, isto sim, dos seus
interesses pessoais ou patrimoniais, que podem ou não coincidir com o ideal de
justiça. Seu interesse de agir é bem
diverso daquele que motiva a atuação do Ministério Público.
Como admitir-se, no campo do
processo civil, que uma parte apele em favor de outra? No entanto, não se discute
que o Ministério Público pode recorrer em favor do réu ou impetrar habeas corpus para proteger o imputado
(art. 654, do CPP).
Não se pode imaginar, no processo
civil, uma regra como a que consta do art. 385 do CPP. É certo que lá pode haver a transação ou a
desistência da ação. Porém, quando tal
se dá, as partes pretendem satisfazer seus próprios interesses da maneira mais
satisfatória possível, compondo a lide em função de uma solução que, no caso
concreto, lhes parece mais favorável.
Não se admite, assim, possa o
Ministério Público ser concebido como uma espécie de quinta roda do carro,
incumbindo ao juiz socorrê-lo, ao obrar como uma espécie de longa manus da acusação, promovendo
medidas no objetivo de complementá-la, ainda que o faça em caráter supletivo.
No campo da ação privada, o tema,
quero crer, não merece maior indagação.
Vigorando, ali, o princípio da disponibilidade da ação, torna-se patente
que a parte final do art. 156 do CPP, nela, não pode merecer aplicação, mesmo
para aqueles defensores extremados da ampla intervenção do juiz em matéria
probatória. Nunca o juiz, ainda que
supletivamente, poderá intervir para buscar prova que incumbia ao querelante
produzir. Nos casos de exclusiva ação
privada, a atuação do juiz só de dará em favor do querelado, quando este, não
importa a razão, deixe de produzir prova que, eventualmente, possa
beneficiá-lo. Justifica-se tal atuar em
razão do princípio do favor libertatis.
Aliás, é bom que fique assinalado
que a participação secundária do
juiz não se limita à busca de prova em favor do querelado.
Em qualquer outra matéria, como
decorrência do princípio do favor rei,
o juiz deverá, sempre que necessário, intervir pro reo. Suponha-se, por
exemplo, um caso de uma prisão ilegal.
Cabe ao magistrado, de ofício, conceder liberdade independentemente do
requerimento do indiciado ou do réu (art. 654, § 2º, do CPP). Por mera aplicação do salutar princípio da
proporcionalidade, sobreleva o direito à liberdade em detrimento do sistema
acusatório.
Ao revés, quando estiver em jogo a
decretação da prisão, de acordo com a linha de pensamento defendida no presente
estudo, o magistrado, ao contrário do que consta da nossa lei processual,
jamais deverá atuar de ofício, dependendo, sempre, de requerimento do Ministério
Público ou do querelante, conforme o caso.
O assistente da acusação, por exemplo, jamais estará legitimado a
postular aquela medida coercitiva, tendo em conta os limites impostos pelo art.
271 do CPP, que deve ser interpretado restritivamente.
Aliás, como posto em destaque no
decorrer da exposição, em qualquer medida cautelar, seja ela de caráter pessoal
seja ela de natureza real, desde que observado o sistema acusatório de forma
ortodoxa, será vedada a atuação de ofício do magistrado. A providência dependerá, sempre e sempre, da
iniciativa do Ministério Público ou do querelante, em função, evidentemente, da
hipótese em exame.
Do contrário, teremos, como ainda
ocorre em nossa legislação, um simulacro de sistema acusatório.
http://www.amperj.org.br/associados/dalla/artigo41.htm
(*) Estudo concluído na Quinta-Feira das
Endoenças – Anno Domini de nº 2000.
(**) Sergio
Demoro Hamilton é Procurador de Justiça no Estado do Rio de Janeiro.
(***) Ditado irônico proveniente da
Idade Média, referido por Geraldo Prado
em seu erudito estudo sobre o Sistema Acusatório, pág. 157, Editora Lumen
Juris, 1999.
[1][1] Sergio
Demoro Hamilton, “A Forma Acusatória Pura, uma Conquista do
Anteprojeto”, in Revista de Direito Penal nº 13, págs.
64/67, Janeiro-Junho de 1974, Rio de Janeiro, Revista dos Tribunais, 1974.
[2][2] Geraldo
Prado, Sistema Acusatório,
pág. 171, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 1999.
[3][3] Marcellus
Polastri Lima, Ministério Público
e Persecução Criminal, págs. 124/125, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro,
1997.
[4][4] Fernando
da Costa Tourinho Filho, Processo
Penal, vol. 01, pág. 90, Saraiva, 18ª edição.
[5][5] Francesco
Carnelluti, Leciones sobre el
Proceso Penal, Trad. Santigo S. Melendo, Buenos Aires,
Bosch, 1950.
[6][6] O “devido processo legal”, como
observa Afrânio Silva Jardim,,
“está vinculado diretamente à depuração do sistema acusatório”, in Direito
Processual Penal, pág. 465, 4ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1991.
[7][7] Hélio
Tornaghi, Instituições de Processo
Penal, vol. 02, págs. 20/21, São Paulo, Saraiva, 1977.
[8][8] Hélio
Tornaghi, Instituições de Processo
Penal, vol. 02, pág. 21, São Paulo, Saraiva, 1977.
[9][9] Sergio
Demoro Hamilton, “A Disciplina Legislativa da Prova Penal”, in Doutrina,
nº 07, págs. 276/293, nº 22.
[10][10] Vincenzo
Manzini, Trattato di Diritto
Processuale Penale, Volume Primo,
pág. 31, Torino, Unione Tipografica Editrice Porinese, 1931-IX, salienta que il processo inquisitorio, nella sua forma
tipica di processo segreto e scritto compiuto da magistrati, proveniva dalle
regole processuali di Innocenzo III.
[11][11] Hélio
Tornaghi, Instituições de Processo
Penal, vol. 02, pág. 17, Editora Saraiva, 1977.
[12][12] O leitor interessado no estudo
cuidadoso do processo acusatório e do processo inquisitório, abrangendo suas
origens e seus diversos aspectos no decorrer dos séculos, deve consultar Vincenzo Manzini (Trattato, vol. 01, págs. 23 e seguintes) e o nosso Tornaghi, (Instituições, vol. 02, pág. 01 e seguintes). Sobre o processo e a
forma de agir da Inquisição, consulte-se, ainda, o Diretorium Inquisitorum (Manual dos Inquisidores) escrito pelo
inquisidor Pe. Nicolau Eymerich O.P. (1376) e atualizado pelo Pe. Francisco de La Peña O.P. (1585). Nesta
publicação dá-se como origem da Inquisição o ano de 1232, quando o imperador
Frederico II lançou éditos de perseguição aos hereges. Por seu turno, o Papa
Gregório IX, temendo as ambições político-religiosas do imperador, reividicou
para si essa tarefa e instituiu os inquisidores papais, recrutados entre os
religiosos da Ordem dos Dominicanos.
[13][13] Geraldo Prado, Sistema Acusatório, pág. 153, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro,
1999.
[14][14] Não foi esta a orientação seguida pela
Comissão constituída pelo Procurador-Geral de Justiça-RJ, que tive a honra de
integrar e presidir, para examinar a reforma do Código de Processo Penal.
Repensando melhor a matéria, entendo, agora, que o art. 28 do CPP afronta o
sistema acusatório. Para um exame das sugestões então ofertadas ao
Procurador-Geral de Justiça veja-se o trabalho “A Reforma do Processo Penal”,
de minha autoria, in Ensaios Jurídicos, vol. 06, págs.
102/123. As propostas da Comissão foram adotadas, como sugestões oficiais do
Ministério Público do Rio de Janeiro, pelo Procurador-Geral de Justiça, Dr. Hamilton Carvalhido, que as remeteu aos
Exmos. Srs. Ministros da Justiça, Iris Rezende, e Marco Aurélio, do Supremo
Tribunal Federal. A referida Comissão
viu-se integrada pelos Procuradores de Justiça, Sergio Demoro Hamilton e José Muiñoz
Piñeiro Filho, e pelos Promotores de Justiça, Afrânio Silva Jardim, Alexandre
Viana Schott e Rogério Pacheco Alves, cabendo ao primeiro presidi-la.
[15][15] Sergio
Demoro Hamilton, “A Forma Acusatória Pura, uma conquista do Anteprojeto”
in Revista de Direito Penal, nº 13/14, págs. 64/67, Jan-Jun, 1974,
Revista do Tribunais.
[16][16] Compunham a Comissão os Procuradores
de Justiça Elio Gitelman Fischberg, Helcio Alves de Assumpção, Ronaldo de Medeiros e Albuquerque e Sergio Demoro Hamilton, cabendo ao
último presidi-la.
[17][17] “Há de se acrescentar, por oportuno,
que se o princípio de paridade de armas não integra o princípio acusatório,
reduzido este, como ressaltamos, à divisão tricotômica de funções, é, todavia,
importante para a implementação da justa solução do conflito de interesses
penal, a ponto de ser considerado
integrante de um sistema cuja fase é a acusatoriedade (novamente aí a distinção
entre sistema e princípio, entre continente e conteúdo)” apud Geraldo Prado, Sistema Acusatório, pág. 131, Editora
Lumen Juris, Rio de Janeiro, 1999.
[18][18] Franco
Cordero, Procedura Penale,
pág. 07 e seguintes, Giuffré-Editore,– 1966. Anota o renomado processualista
que il processo penale era ancora materia
di considerazione empirica, quando la scienza del processo civile già raggiunto
una rica fioritura. No Brasil, não houve diferença em relação ao
desenvolvimento dos dois processos.
[19][19] Dennis
Aceti Brasil Ferreira, “A prisão preventiva de ofício e o processo penal
tipo acusatório”, in Revista do Ministério Público-RJ, nº 08,
3ª fase, págs. 137 a 141, 1998.
[20][20] Dennis
Aceti Brasil Ferreira, “A prisão preventiva de ofício e o processo penal
tipo acusatório”, in Revista do Ministério Público-RJ, nº 08,
3ª fase, págs. 137 a 141, 1998.
[21][21] Eduardo
Pessôa, Brocardos Jurídicos,
pág. 101, Editorial Dimensão, 1998.
[22][22] Amilcare
Carletti, Dicionário de Latim Forense, pág. 102, nº 990, Livraria e Editora
Universitária de Direito Ltda, LEUD, 1997, 7ª edição.
[23][23] Sergio
Demoro Hamilton, “A Forma Acusatória Pura, Uma Conquista do
Anteprojeto”, in Revista de Direito do Ministério Público do
Estado da Guanabara, págs. 63 a 67, nº 20, 1974.
[24][24] Paulo
Rangel, Direito Processual Penal,
págs. 38/41, 2ª edição, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2000. Anote-se, a
propósito, interessante resumo a respeito do tema na obra daquele douto
Promotor de Justiça e Professor Universitário.
[25][25] Sobre a matéria, veja-se a severa
crítica do promotor de Justiça, Dr. Marcellus
Polastri Lima, no trabalho doutrinário “Aspectos Processuais dos Crimes
de Trânsito”, in Revista do Ministério Público-RJ, nº 08,
1998, 3ª fase, págs. 223/262. No aludido trabalho, o ilustre jurista assinala
que, quando da discussão do projeto de lei, o dispositivo acabou sendo
modificado, retirando-se a decretação de ofício de providência cautelar na fase
do inquérito. Porém, no texto final o legislador voltou a inserir a anomalia.
[26][26] Apud
Marcellus Polastri Lima,
“Aspectos Processuais dos Crimes de Trânsito”, in Revista do Ministério
Público-RJ, nº 08, 1998, 3ª fase, págs. 223/262. Compunham a aludida
Comissão os seguintes membros do Parquet
fluminense: Dra. Maria Aparecida Moreira
de Araújo (Presidente), Dra. Claudia
Maria Macedo Perlingeiro dos Santos, Dr. Marcellus Polastri Lima, Dr. Ricardo
Ribeiro Martins e Dra. Simone Benício Ferolla Guida.
[27][27] Afrânio
Silva Jardim, “Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95)”, in Revista
do Ministério Público-RJ nº 05, 3ª fase, págs. 33/51.
[28][28] Marcellus
Polastri Lima, “A Lei 9.099/95 – Questões Controvertidas”, in Revista
do Ministério Público-RJ, 3ª fase, nº 05, págs. 128/147,1997.
[29][29] Sergio
Demoro Hamilton, “A Disciplina Legislativa da Prova Penal”, in Doutrina,
nº 07, págs. 276/293, 1999.
[30][30] René
David, Os Grandes Sistemas do
Direito Contemporâneo: Direito Comparado, tradução de Hermínio A. de
Carvalho, 2ª edição, 1978, Lisboa, Meridiano, apud Common Law, Guido Fernando Silva Soares, pág. 25,
Editora Revista dos Tribunais, 1999. Observe-se que o Direito Comparado agrupou
os diversos sistemas jurídicos em grandes famílias, variando, segundo os
autores, os métodos para a divisão dos mesmos. Aqui seguiu-se, por critérios
meramente utilitários, a classificação do Prof. René David: sistema romano-germânico, sistema da common law, sistema dos direitos
socialistas e sistemas teocráticos. Cada um deles mereceria análise detalhada
em suas particularidades, tema que escapa à finalidade do presente estudo.
[31][31] Eugênio
Florian, Delle Prove Penali,
vol II, pág. 238, Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, Milano, 1921.
[32][32] Ada
Pellegrini Grinover, “A
Iniciativa Instrutória do Juiz do Processo Penal Acusatório”, in Doutrina
nº 07, págs. 188/199, passim.
[33][33] José
Carlos Barbosa Moreira, “Processo Civil e Processo Penal: Mão e
Contramão?” in Revista do Ministério Público-RJ, nº 08, 3ª fase, págs. 199/211,
1998, passim.
[34][34] Para um estudo mais acurado do sistema
americano, recomenda-se, de modo especial, a leitura de Guido Fernando Silva Soares, Common Law, Editora Revista dos Tribunais, 1990, passim.
[35][35] O princípio da verdade real não é um
dogma do processo penal. Basta ver-se, só para exemplificar, que a revisão
criminal não é admitida quando pro
societate.
[36][36] Giovanni
Conso, Istituzioni di Diritto
Processuale Penale, pág. 08, apud
Sistema Acusatório, Geraldo Prado, pág. 113, Lumen Juris,
1999. Na opinião do ilustre professor, Conso
é um dos autores que mais se aprofundaram no estudo da matéria.
[37][37] Geraldo
Prado, Sistema Acusatório,
pág. 129, Lumen Juris, 1999.