® BuscaLegis.ccj.ufsc.br

A ortodoxia do sistema acusatório no processo penal brasileiro: uma falácia (*)

 

Sergio Demoro Hamilton (**)

 

“Quem tiver um juiz por acusador precisa de Deus como defensor.  Mas, às vezes, isso não é suficiente.”  (***)

 

 

1.         Nos idos de 1974, ao examinar o anteprojeto de Código de Processo Penal[1][1], saudava eu, com euforia, a inovação nele contida, ao consagrar a forma acusatória pura, rompendo com o inquisitorialismo até então vigente em nosso processo penal (nos, atualmente, revogados arts. 26 e 531 do CPP).  Com efeito, embora a “Exposição de Motivos” do diploma legislativo dos anos 40 afirmasse que o projeto atendia “ao princípio ne procedat judex ex officio, que, ditado pela evolução do direito judiciário penal e já consagrado pelo novo Código Penal, reclama a completa separação entre juiz e o órgão de acusação, devendo caber exclusivamente a este a iniciativa da ação penal ” (nº V), abria imensa brecha no sistema, mantendo o procedimento ex officio “só” em relação às contravenções (destaque meu).  Posteriormente, a malfadada Lei 4.611/65 veio a ampliar, ainda mais, aquela anomalia, estendendo-a para os crimes dos arts. 121 e 129 do Código Penal, quando culposos.  Não será exagero afirmar que 50% dos feitos criminais, que tramitavam no foro, filiavam-se ao inquisitorialismo.  Mas isto são águas passadas.  O projeto, como tantos outros, abortou e, até hoje, não temos um novo Código, optando o legislador, ao que se vê e se deplora, por proceder a reformas setoriais e esparsas em nossa legislação processual.  Vivemos, na atualidade, sob a égide de um cipoal de leis, onde o sistema, há muito, deixou de existir.  Assim, somente com o advento da Constituição Federal de 1988 é que aqueles dispositivos (arts. 26 e 531 do CPP) se viram extirpados da nossa legislação pelo fenômeno da não recepção (art. 129, I, da CF) ou, como preferem outros, da revogação de lei ordinária por norma constitucional superveniente.

2.         Tais reflexões vêm à balha em função de inúmeros dispositivos, que, de forma promíscua, sobrevivem em nossa legislação processual penal, notadamente, no Código de Processo Penal, e que afrontam, não há negar, o sistema acusatório consagrado em nossa Carta Política.

            Geraldo Prado[2][2], em seu substancioso e erudito estudo sobre o sistema acusatório, assevera que, embora a Constituição da República não o diga expressamente, não resta dúvida que ela adotou todas as elementares do princípio acusatório, na medida em que conferiu ao Ministério Público a privatividade do exercício da ação penal pública, consagrando o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, e assegurando, do mesmo passo, o julgamento dos feitos por um juiz competente e, obviamente, imparcial.

            Da mesma forma, o douto Promotor de Justiça Marcellus Polastri Lima[3][3], de maneira taxativa e peremptória, afirma não haver dúvida de “que constitucionalmente foi adotado no Brasil o sistema acusatório” em razão dos princípios adotados na Lei Magna, tais como, entre outros, o princípio do juiz natural e imparcial (arts. 5º, LIII, 92 e 126) e, de forma especial, pelo fato de ser privativa do Ministério Público a promoção da ação penal pública (art. 129, I).  Aliás, impõe-se a averbação, como não poderia deixar de ser, também nos crimes de iniciativa privada, comete-se às pessoas enumeradas nos arts. 30 e 31 do CPP o jus persequendi in judicio, qual noticia Tourinho[4][4].

            Seria ideal que a Lex Maxima, no capítulo dos direitos e garantias individuais, estipulasse regra expressa assegurando o sistema acusatório.  Porém, embora não o tenha feito, parece-me assegurado o princípio.

3.         No processo acusatório, como sabido, as funções de acusar, defender e julgar integram a atribuição de órgãos distintos, ao contrário do que se dá com o modelo inquisitório.  É naquele que a clássica afirmação de Búlgaro (século XII), segundo a qual o juízo penal reside no actum trium personarum, encontra sua verdadeira afirmação.  Em conseqüência, a acusação será, sempre, formulada por órgão diverso do juiz.  Em outras palavras, em virtude do princípio da inércia, não há “jurisdição sem ação”, para usar a conhecida expressão de Carnelutti[5][5], ao designar o processo penal sem demanda, expungido do nosso ordenamento jurídico pela Carta Magna de 1988, como já mencionado (1, supra).

            Outra característica do processo acusatório consiste no fato de o processo penal desenvolver-se através do contraditório, sob a presidência de um juiz natural e imparcial.  É, por tais motivos, a modalidade de processo que guarda perfeita compatibilidade com o regime democrático.[6][6]

4.         Colocadas algumas idéias básicas sobre o que sejam o processo e o princípio acusatório, assim como a respeito do tratamento que a matéria recebeu da nossa Lex Legum, cabe, agora, com toda a pertinência, a seguinte indagação: nosso processo penal adotou, mesmo, o sistema acusatório ou, ao contrário, nele convivem inúmeros dispositivos que desafiam, abertamente, o princípio acusatório?

            Como explicar, então, a aplicação diuturna e sem qualquer contestação, em nosso foro, dos artigos 5º, II, primeira parte, 10, §§ 1º e 3º, 13, II, 16, 28, 39,§§ 1º e 4º, 127, 133, 156, in fine, 311, 416 e outros do nosso CPP, todos, sem exceção, em testilha com o sistema e o princípio acusatório?

            Anote-se que a referência feita aos aludidos dispositivos decorre de um exame superficial da nossa lei processual básica, sem qualquer preocupação exaustiva, objetivando demonstrar, tão-somente, e de forma meramente enunciativa, que diversos resquícios de inquisitorialismo, apesar de decorrida mais de uma década da vigência da Constituição Federal de 1988, ainda subsistem em nosso processo penal e – pior que tudo! – não são, sequer, contestados, merecendo, até hoje, aplicação tranqüila, inclusive em nossos tribunais superiores.

            Tornaghi[7][7], muito antes da atual Constituição, já assinalara, que, no processo penal brasileiro, há diversas formas inquisitoriais.  Em função de tal entendimento, considera que convivemos, na realidade, com um sistema misto.

            Ocorre, porém, que, em razão da nova Constituição Federal, aqueles provimentos  legislativos, nitidamente inquisitoriais, não mais poderão conviver, de forma clandestina, em nosso processo penal, uma vez que não recepcionados pela nossa Lei Maior.  Aliás, nem mesmo antes dela, aquela anomalia poderia subsistir em nosso código que proclamava a adoção do sistema acusatório (1, supra).

5.         O processo inquisitório, ao contrário do que ocorre com o acusatório, tem como forma básica o fato de que se concentram em um só órgão as funções de acusar, defender e julgar.  Ao contrário, no sistema acusatório, aquelas funções são cometidas a órgãos diversos.  Era acusatório o processo Romano e de grande parte da Antigüidade.  Em Roma, a acusação era confiada ao ofendido (ação privada) ou a qualquer pessoa do povo (ação popular), cabendo o julgamento ao juiz.  Tornaghi[8][8] considera “errado” atribuir-se ao processo inquisitório os característicos do sigilo e da escritura, pondo em relevo que os autores, que se ocuparam ex professo sobre a matéria, consideram a escritura e o sigilo como formas secundárias mas não essenciais do processo inquisitório.  O renomado processualista ressalta, ainda, que o processo acusatório, em diferentes fases do Direito Romano, foi escrito e sigiloso.

            Na verdade, basta ler o nosso Código para verificar que ele adotou um sistema misto: o inquisitório e o acusatório; o primeiro, como será visto, observado na fase preliminar de investigação ao passo que, com o ajuizamento da ação penal, ele assume o caráter acusatório.  Porém, como se verá, nem mesmo naqueles dois momentos, há uma pureza sistemática.  Na fase judicial, por exemplo, a publicidade e a oralidade, formas históricas do processo acusatório, não são observadas integralmente.  Basta examinar os arts. 486 e 792 § 2º do CPP.  Por outro lado, o procedimento comum (arts. 394 e seguintes), reservado para os crimes mais graves, conservou a forma escrita, enquanto a oralidade acabou adotada, em nossa legislação, para o processo sumário.

6.         Quando a Igreja, no século XIII, adota o processo inquisitório, tinha por fim reprimir infrações penais praticadas por hereges.  Na lógica inflexível do inquisidor a heresia constituía o pecado maior, resultando daí os amplos poderes de investigação de que era dotado buscando obter a confissão, meta final de todo o processo[9][9].  Manzini[10][10], com a habitual erudição, examina o processo inquisitório em seus diversos aspectos, extrapolando os limites do presente estudo uma análise mais aprofundada a respeito do interessante e rico tema.  Com o prestígio da Igreja, dotada, então, de grande poder temporal, acabou o processo inquisitório por alastrar-se pela Europa continental, passando a ser empregado, igualmente, por tribunais civis.  Tornaghi[11][11], por sinal, põe em relevo que muitas das graves acusações feitas à Inquisição eclesiástica devem ser debitadas à Inquisição Espanhola.  Com efeito, o tribunal dos reis Fernando e Isabel nada mais era que uma corte civil, embora dela também fizessem parte clérigos.  É bom ficar registrado que o sistema inquisitório não foi criação da Igreja Católica; ela, apenas, o difundiu.  Muito antes, durante séculos, ele coexistiu ao lado do acusatório[12][12] (vide, também, o nº 05, supra).

7.         Passa-se, no momento, ao exame do nosso Código de Processo Penal, analisando alguns dos dispositivos acima indicados (4, supra), todos em testilha manifesta com a nossa Carta Política e com o princípio acusatório que ela adotou, finalidade precípua do presente estudo.  Observe-se, ainda, que os mencionados dispositivos brigam, há mais de meio século, com o sistema que o Código, pelo menos em palavras, afirma haver adotado (1, supra).

8.         Analise-se, por primeiro, a fase pré-processual em alguns dos seus artigos (arts. 5, II, proêmio, 10, §§ 1º e 3º, 13, II, (aqui, em termos), 16, 23, 28 e 39, §§ 1º e 4º, todos, do CPP).

            A fase que antecede a ação penal exige o completo afastamento do juiz da persecução criminal em um sistema que pretenda ser acusatório.  Em tal etapa do procedimento, só encontra justificativa a presença do magistrado quando pratica atos jurisdicionais que tenham por fim assegurar direitos fundamentais não relacionados, diretamente, com o fato em apuração.  É o caso, por exemplo, das cautelares de natureza pessoal ou real, em que, por força do próprio princípio acusatório assegurado pela Constituição, a presença do juiz se faz necessária.  É o que ocorre, verbi gratia, quando da decretação de uma prisão preventiva, de um arresto ou, ainda, por ocasião do arbitramento de uma fiança.  Ao juiz, na fase preparatória da ação penal, só compete a prática de atos de natureza jurisdicional, devendo, em razão disso, ficar afastado da prática de providências que não lhe competem, designadas, na doutrina, como atividades judiciárias em sentido estrito, ou, ainda, pela expressão mais difundida, de funções judiciárias anômalas.  Puro eufemismo, perdoem-me os doutos, para indicar uma anomalia processual.

            Perfeita a colocação do Professor Geraldo Prado[13][13], quando afirma haver afronta ao princípio acusatório, manter sob o controle do juiz as diligências que devam ser realizadas no inquérito policial ou, ainda, a fiscalização do princípio da obrigatoriedade por parte do Ministério Público (art. 28 do CPP).

            É certo que, em relação a esta última providência, poder-se-ia adotar uma modalidade de controle interno a ser exercida por um órgão colegiado do próprio Ministério Público, que determinaria ou não o arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação, retirando-se do Procurador-Geral a atribuição exclusiva, que, na atualidade, lhe conferiu a lei.  Da mesma forma, o juiz não teria qualquer intervenção nesta fase do procedimento, cabendo-lhe atuar, tão-somente, quando posta a demanda, recebendo ou rejeitando a exordial de acusação[14][14].

            Da mesma forma, não existe razão para assegurar ao juiz a requisição no sentido da instauração de inquérito policial (art. 5º, II).  Bastaria ao magistrado, ciente do fato criminoso, comunicá-lo ao Ministério Público, tal como preconizado no art. 40 do CPP, mas sem exercer qualquer atividade persecutória direta.  A providência alvitrada limitava-se ao dar ciência ao Ministério Público de um fato que, em tese, seria uma infração penal de ação penal pública incondicionada, deixando ao Parquet a realização de um prévio juízo de valor sobre o mesmo.

            Caberia, então, ao Ministério Público requisitar a abertura do inquérito policial (art. 5º, II, do CPP), arquivar o expediente respectivo ou oferecer, desde logo, denúncia, se o caso permitisse.  Ocorreria, assim mesmo, uma intervenção mínima do juiz, porém, indispensável, pois, do contrário, o fato não chegaria ao conhecimento do Parquet.[15][15]

            Que dizer dos parágrafos primeiro e terceiro do art. 10 do CPP?

            O inquérito policial não tem que ser remetido ao juiz competente, salvo, repita-se à exaustão, se o caso exigir alguma providência jurisdicional (decretação de prisão preventiva, arbitramento de fiança ou ainda quando se fizer exigível uma providência cautelar de natureza real).

            Quando da entrada em vigor do Ato Executivo Conjunto de nº 01/97, de 01-XII-97, firmado pelo então Corregedor-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e pelo Secretário de Segurança Pública do mesmo Estado, fui indicado pelo Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça para, como relator, integrar uma Comissão[16][16] destinada a examinar o ato normativo em questão.  As conclusões dos estudos então elaborados pela Comissão foram encaminhadas ao Procurador Geral de Justiça da época, Dr. Hamilton Carvalhido, aos 23 de dezembro de 1997.

            O Ato Executivo Conjunto em tela, que constituía verdadeiro retrocesso no iter procedimental dos inquéritos policiais, fazia ressurgir, sob a invocação dos arts. 10, § 1º, 19 e 23 do CPP, a necessidade da remessa, pela autoridade policial, do inquérito policial ao juiz competente, sob a herética afirmação da necessidade da interveniência da autoridade judiciária na fase inquisitiva em qualquer caso, e não somente para a prática de atos jurisdicionais.  A providência em questão revogou o Provimento de nº 255/91, da Egrégia Corregedoria-Geral da Justiça-RJ, de 09.04.91, que vigorou durante quase 07 anos, servindo, até hoje, de modelo para outras unidades da Federação, e que mereceu o aplauso de incontáveis doutrinadores.  O Provimento em questão foi ab-rogado pelo aludido Ato Executivo Conjunto.  No regime anterior, obedecia-se, com rigor, a ortodoxia acusatória, pois, de acordo com o que ele dispunha, somente seriam admitidos para distribuição os inquéritos policiais (ou peças de informação), quando houvesse:

 

a) denúncia ou queixa;

b) pedido de arquivamento;

c) na hipótese do art. 19 do CPP;

d) requerimento de providências cautelares de natureza pessoal ou real;

e) comunicação de prisão em flagrante ou qualquer outra forma de constrangimento aos direitos fundamentais elencados na Constituição Federal, como, à guisa de exemplo, o direito à fiança.  (art. 5º, LXVI).

 

            Pelo que se lia do ato normativo revogado, somente os atos jurisdicionais típicos seriam, como não poderia deixar de ocorrer, exercidos pelo juiz na fase pré-processual, excluindo-se da apreciação judicial tudo aquilo que escapasse à sua esfera de competência nos moldes da vigente Constituição Federal.

            É interessante observar o absurdo lógico contido no parágrafo 3º do art. 10 do CPP, independentemente de qualquer outra consideração jurídica, ao estabelecer que o juiz fixará o prazo para a realização de diligências na fase do inquérito policial.  Como pode ele fixar um prazo relativo a providências, que ele ignora, pois de difícil elucidação, mesmo para quem está investigando?

            Tudo o que ficou dito acima encontra aplicação em relação ao art. 13, II, proêmio, da lei processual básica.  Diga-se o mesmo no que respeita ao art. 16, uma vez que o Juízo a respeito da imprescindibilidade das diligências é do Parquet, pois, certo ou errado, a ele incumbe ajuizar a demanda; a autoridade judiciária, se for o caso, que a rejeite, no momento oportuno (art. 43 do CPP).  Em relação ao art. 13, II, primeira parte, eventualmente, o juiz poderá requisitar providências, desde que tenham por fim o cumprimento de atos jurisdicionais típicos.  Da mesma maneira, não cabe ao Juiz ser destinatário da representação, como, equivocadamente, consta dos parágrafos 1º e 4º do art. 39.  Para que? Se ele, juiz, não pode investigar e, muito menos, agir, inexiste razão para que a ele seja dirigida a notitia criminis postulatória.  Somente a autoridade policial (art. 39 c/c art. 5º, § 4º do CPP) e o Ministério Público (art. 39, § 5º do CPP) é que poderão receber aquela condição de procedibilidade.  Cumpre destacar que, em relação ao Parquet, não se justifica a observação constante da parte final do §1º do art. 39 em comento.  A representação, pura e simplesmente, será direcionada ao Ministério Público, quando a ele for dirigida.

9.         As violações ao sistema acusatório prosseguem, agora, na fase processual, contidas em inúmeros dispositivos do nosso Código.  Cabe, aqui, ressaltar alguns casos gritantes de indevida intervenção judicial, onde o princípio acusatório[17][17] vê-se relegado a um flatus vocis, despido de qualquer conteúdo prático.

            No campo das cautelares, sejam elas pessoais, sejam elas reais, ignora-se, por completo, o sistema acusatório.

            Assim, à guisa de exemplo, no art. 127 permite-se ao juiz, de ofício, ordenar o seqüestro dos bens do indiciado no curso do processo ou antes dele, na fase do inquérito.

            Na oportunidade, impõe-se breve digressão a respeito da existência de um processo cautelar em nosso Código de Processo Penal.  Ao contrário do que ocorre na lei processual civil fundamental, inexiste na penal um processo cautelar, tal como disciplinado no Código de Processo Civil (Livro III, Título único, arts. 796 a 889).  Apesar da omissão, não paira dúvida a respeito da presença de incontáveis providências de índole cautelar, de natureza real ou pessoal, presentes na fase do inquérito e no decorrer do processo, que deveriam, sempre, subordinar-se às exigências do princípio acusatório.  Falta apenas, uma organização sistemática da matéria, disposta de forma esparsa em um Código de técnica pouco apurada, como é notório[18][18].

            Feito o parêntese, resta retomar o fio da meada.

            No campo das cautelares de natureza pessoal, permite-se, por exemplo, ao juiz decretar a prisão preventiva de ofício (art. 311 do CPP), fato que mereceu interessante e severa crítica por parte do Promotor de Justiça-RJ, Dr. Dennis Aceti Brasil Ferreira[19][19].  Salienta, por sinal, o ilustre Professor a evolução do legislador quando da edição da Lei nº 7.960/89 (que trata da prisão temporária).  Com efeito, em seu art. 2º, “textualmente condiciona a prestação jurisdicional – mesmo com decisão inaudita altera pars – à efetiva provocação por parte do Ministério Público” ou da autoridade policial[20][20].

10.      No procedimento do júri verifica-se outra aberração: a vinculação do libelo à pronúncia.  Sem meias palavras: a acusação que o Ministério vai sustentar em Plenário, perante os jurados, não é sua, mas do Poder Judiciário (art. 416 do CPP).

            Haverá maior despautério?

            Justifica-se tamanha misologia?

11.      Ainda no Júri permite-se ao juiz verdadeira ação penal ex officio no art. 408, § 4º do CPP.  Ali está dito, com todas as letras, fazendo corar um frade de pedra, que  “o juiz não ficará adstrito à classificação do crime, feita na queixa ou na denúncia, embora fique o réu sujeito à pena mais grave, atendido, se for o caso, o disposto no art. 410 e seu parágrafo”.  É certo que se poderá argumentar que a pronúncia não passa de mera decisão processual, pois, não condena nem absolve o réu.  É verdade.  Porém, a pronúncia, uma vez preclusa a decisão, irá vincular o libelo que o Ministério Público terá que sustentar perante o juiz natural do feito.

            Quid juris?

            A conseqüência será a de que o réu poderá ser condenado por uma acusação partida do juiz, uma vez que a denúncia (ou queixa) não foi aditada no momento oportuno.  E, mais grave que tudo, a uma pena mais severa.  Trata-se de nova distorção da lei processual, violando o sistema e o princípio acusatório.

12.      No Título da sentença (XII), que encerra o Livro I do CPP, vamos encontrar a hipótese de mutatio libelli (art. 384, parágrafo único do CPP).

            Registre-se, desde logo, a má colocação da matéria no título reservado à sentença.

            Em boa técnica, o aditamento da denúncia só poderia ser postulado, até a fase de alegações finais, pelo Ministério Público (ou, quando cabível, pelo querelante, na hipótese do art. 29 do CPP), após concluída a instrução criminal.  Não tem o mínimo sentido o juiz tomar tal providência sem violar, ainda uma vez mais, o sistema acusatório.  É, novamente, o juiz atuando de ofício para agravar a situação do réu.  Este se verá diante de uma imputação alternativa, caso o Ministério Público, provocado pelo juiz, entenda ser cabível o aditamento.

            É certo que o Ministério Público não estará obrigado a aditar a inicial.  Porém, o equívoco reside em dar ao juiz a iniciativa daquela providência.

            Até aqui, venho usando a designação procedimento ex officio, para traduzir a atuação inquisitorial do juiz, por mera fidelidade ao uso correntio que dela faz a doutrina tradicional.

            Na verdade, ex officio significa aquilo que se faz “por ofício”[21][21], isto é, aquilo “que é feito em virtude da função ou cargo”[22][22].  Já anotara, faz muito[23][23], a impropriedade da expressão, quando usada para indicar a atuação do juiz ao exercer atividade persecutória criminal, como sendo própria ex officio iudicis.  Na verdade, ao juiz compete julgar, ao passo que às partes incumbe promover a ação penal.  Atribuir tal nomenclatura para definir função anômala exercida pela autoridade judiciária em um sistema que, pelo menos na aparência, se diz acusatório, constitui equivocada postura doutrinária.  Quando o juiz julga, aí sim, ele atua de ofício.  Melhor dizendo: este é o seu ofício; não a iniciativa de demandar.

            A Polícia Civil e o Ministério Público é que atuam de ofício quando exercem atividade de persecução criminal.

13.      No campo da legislação esparsa, isto é, das leis especiais recentemente editadas, todas posteriores à vigência da Carta Constitucional de 1988, da mesma forma, o sistema acusatório vem sendo supinamente ignorado[24][24].

            É o caso, por exemplo, da Lei do Crime Organizado (nº 9034/95), bem como o da recente Lei nº 9.296/96, que trata da interceptação telefônica, ambas situando o juiz em posição investigatória na fase do inquérito policial, ferindo, com tal regulamentação, sua indispensável imparcialidade e violando, no particular, de forma iniludível, a Carta Magna em vigor.

            Com efeito, o art. 3º da Lei nº 9.034/95 autoriza, expressamente, o juiz a realizar pessoalmente diligências investigatórias, ainda na fase pré-processual, consagrando, ao assim proceder, atos típicos do sistema inquisitivo.

            Da mesma forma, a Lei de Interceptação Telefônica (9.296/96) estabelece a possibilidade de que as interceptações das comunicações telefônicas possam ser determinadas pelo juiz, de ofício, na fase do inquérito policial (art. 3º).  É o velho ranço inquisitorial, mais uma vez, a fazer tábula rasa do sistema acusatório.

            Aliás, a vetusta Lei de Falências (Decreto-lei nº 7.661/45), ao que eu saiba, não mereceu, até hoje, contestação, embora nela subsista um monstrengo judicial, destinado a apurar a prática de crime falimentar.  Tal inquérito é presidido por um juiz, que, dessa maneira, exerce função persecutória penal, em nova violação ao sistema acusatório.

            Não discrepa de tal linha de conduta o art. 294 do Código de Trânsito Brasileiro ao prever a decretação de medida cautelar de ofício pela autoridade judiciária no curso do inquérito policial, subvertendo-se, mais uma vez, a ordem processual, e comprometendo-se a indispensável imparcialidade do juiz, pela ausência de provocação[25][25].

            A Comissão constituída para estudo do CTB, no âmbito interno do Ministério Público do Rio de Janeiro, em sua conclusão de nº 05, firmou o seguinte entendimento:

 

“É inconstitucional a atribuição de poder o juiz decretar de ofício as medidas previstas no art. 294 do CTB, porque não existe jurisdição no inquérito, violando-se o princípio acusatório e, conseqüentemente, ferindo-se a imparcialidade do juiz”[26][26].

 

            De igual forma, a Lei nº 9.099/95, tão logo entrou em vigor, ensejou sérias controvérsias no campo doutrinário e jurisprudencial a respeito da possibilidade de iniciativa do juiz no que respeita à oferta de transação e de suspensão do processo.  Não faltaram vozes autorizadas do processo penal que defenderam a possibilidade de o juiz tomar a iniciativa daquelas providências despenalizadoras quando o Ministério Público não o fizesse.

            Posteriormente, a jurisprudência de nossos tribunais superiores, acertadamente, firmou-se no sentido de que constitui faculdade exclusiva do Ministério Público, para fins de política criminal, propor a suspensão condicional do processo, admitindo-se, quando muito, em caso de recusa do Promotor de Justiça em propor aquela medida, que a matéria seja submetida ao Procurador-Geral de Justiça, vedando-se ao juiz proferir decisão a respeito (cf. HC 75.743-MG – Pleno – em 12. XI.77, RHC 77.255-DF, de 23.2.99, in “Informativo STF nº 139 e HC 76.619-MS, in Clipping do D.J. de 19.2.99, HC 76.439-SP e HC  74.153-SP (DJU - 21.3.97), HC 77.723-RS em 15.9.98, os três últimos referidos no “Informativo STF” , de nº 123).

            No campo da doutrina, Afrânio Silva Jardim[27][27] bem ressalta que não é papel do juiz, no sistema acusatório, a iniciativa da transação penal ou da suspensão condicional do processo.  Do mesmo sentir, o ensinamento de Marcellus Polastri Lima[28][28] ao registrar que é vedada a atuação do juiz ex officio, pois tal comportamento “implicaria em ferir o princípio acusatório, considerando que a transação se dá entre partes, e o juiz não é parte”.  Inobjetável, sem sobra de dúvida, o magistério daqueles dois eminentes membros do Ministério Público do Rio de Janeiro.

14.      Deixei, muito a propósito, para a parte final do presente trabalho, o estudo de um tema extremamente delicado, qual seja o de examinar os limites do juiz no que respeita à iniciativa de prova.  Para tanto, vejo-me forçado a voltar ao Código de Processo Penal.

            Na verdade, dispõe o art. 156 daquele diploma legislativo, que a prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante (destaque meu).  É assim que o ônus da prova resulta disciplinado em nossa lei processual.  Posteriormente, o Código em comento contém outros dispositivos, todos ociosos, que reiteram a norma geral contida no art. 156, autorizando o juiz a determinar diligências probatórias, independentemente de provocação das partes.  É o caso dos arts. 168, 209, 234 e 242 do CPP, aqui referidos à ventura e sem qualquer preocupação com a dicção exaustiva de todos os casos em que a lei previu aquela iniciativa judicial.  Tal repetição decorre da precária técnica do Código, como, em outra oportunidade e para fins outros, já tive a oportunidade de anotar[29][29].

            A iniciativa do juiz na busca de provas está intimamente ligada ao princípio da verdade real, que não admite possa o juiz ficar refém das partes em razão da natureza pública do processo e do fim social a que ele se destina.

            Tais considerações encontram eco em nosso processo em função da vinculação do Direito brasileiro ao sistema romano-germânico, próprio da Europa continental e dos países por ela influenciados[30][30].

            Eugenio Florian[31][31], por todos, sintetiza, muito bem, tal poder do juiz, ao salientar que “il giudice há la facoltà d’introdurre, per la ricerca della veritá, oggetti ed organi di prova ex officio, senza attendere le proposte delle parti”.

            Na doutrina brasileira, Ada Pellegrini Grinover[32][32], da mesma forma, defende a ampla iniciativa instrutória do juiz no processo penal, registrando que o sistema acusatório moderno em nada impede a efetiva participação do magistrado no que diz respeito à iniciativa das provas.  Para a ilustre professora, resta firme o princípio da demanda, segundo o qual incumbe à parte a propositura da ação, porém, a partir daí, o processo se desenvolve por impulso oficial.  Critica, ainda, o “mito” da verdade real (específico do processo penal), pondo em destaque que o conceito de verdade real não é ontológico, uma vez que o juiz busca a verdade processual (aquela mais próxima da certeza) e, como tal, aquela verdade não pode ficar à mercê da influência das partes, subtraindo-se do julgador os poderes instrutórios necessários para o seu alcance.  A assertiva, no seu pensar, vale para o processo penal e para o processo civil.  Concede, porém, a douta jurista, limites àquela atividade instrutória do juiz na fase de investigação, sob pena de ressurgimento da figura do juiz-inquisidor do processo de antanho.  Neste momento do procedimento admite, apenas, um juiz dotado de poderes para determinadas medidas cautelares.

            José Carlos Barbosa Moreira[33][33] é do mesmo sentir, ao enfatizar sua “pouca ou nenhuma simpatia pela compulsória redução do papel atribuído ao juiz penal em matéria de iniciativa probatória”, destacando o contraste no sentido dos itinerários que vão percorrendo, na atualidade, o processo civil e o penal.  Enquanto o primeiro tende a “publicizar-se”, cada vez mais, o segundo dá sinais de “privatizar-se”.  Tal fato, salienta o eminente processualista, decorre da “tendência ao esvaziamento das atribuições do juiz penal como agente propulsor da instrução probatória, cuja ativação passa a depender fundamentalmente da iniciativa das partes”.

15.      O direito Processual herdado da Common Law, ao contrário, segue caminhos radicalmente diversos ao do modelo originário da Europa continental.  Lá, “a responsabilidade pela produção das provas recai exclusivamente sobre as partes”.  Tal fato resulta de que o “processo penal nos Estados Unidos tem um caráter marcadamente acusatório, em função do papel preponderante do promotor público, o prosecutor, em detrimento do papel do juiz de direito (que, portanto, tem suas funções inquisitoriais praticamente anuladas)” [destaques meus].As razões de tal procedimento são facilmente explicáveis.  É que na Common Law praticamente inexiste a figura do juiz “como agente gerador de impulsos processuais”.  Lá, pode-se dizer que o processo é “coisa das partes”, autor e réu, no processo civil, e public prosecutor e réu no processo criminal.  Afasta-se, assim, de maneira inconciliável, do nosso modelo (civil law), herança do processo canônico medieval, marcadamente inquisitorial.  Predomina, assim, o caráter adversary no cível e accusatory, no criminal[34][34].

16.      Colocadas as posições antagônicas dos sistemas da Common Law e da Civil Law, incumbe examinar se nosso Código de Processo Penal, tal como alega em sua “Exposição de Motivos” e, como ficou visto (nºs 1 e 2, supra), prevê o Texto Magno, efetivamente, em matéria de prova, guardou fidelidade com o princípio acusatório.  Diga-se o mesmo, quando cabível, a respeito de algumas das leis especiais, muitas delas editadas após o advento da Constituição Federal de 1988 (nº 13, supra).

            A resposta, necessariamente, terá que ser negativa.

            A simples leitura do art. 156, in fine, do CPP está a demonstrar que o juiz penal detém amplos (amplos, não, imensos!) poderes investigatórios na fase judicial.  Tal afirmação encontra sua razão de ser em face do princípio da verdade real, que se pretende intocável no campo do processo penal[35][35]  Aliás, a parte final do aludido dispositivo da lei processual torna a primeira não de todo inútil mas de valor relativo, quebrando, queiram ou não, a imparcialidade do juiz e a ortodoxia acusatória.  Averbe-se que não se trata de mera faculdade do juiz a busca de provas.  O “poderá”, ali inscrito, por força do princípio da verdade real, tem sido interpretado como um dever do juiz suprir a omissão da parte em matéria probatória, mesmo que se trate de prova da acusação.  É caso de dizer-se que a lei disse menos do que pretendia afirmar.  Aliás, a Exposição de Motivos do CPP, ao abordar as provas, (item VII), deixa claro que “o juiz deixará de ser mero expectador inerte da produção de provas.  Sua intervenção na atividade processual é permitida, não somente para dirigir a marcha da ação penal e julgar a final, mas também para ordenar, de ofício, as provas que lhe parecem úteis ao esclarecimento da verdade.  Para a indagação desta, não estará sujeito a preclusões.  Enquanto não estiver averiguada a matéria da acusação ou da defesa, e houver uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o in dubio pro reo ou o non liquet”.  (destaques meus).  Aqui estamos, sem dúvida, no campo do princípio da verdade real levado à outrance.

            Aliás, quer se veja como mera faculdade, quer se veja como dever jurídico do juiz a busca ex officio das provas, em nada ficaria afetada a violação ao sistema acusatório, pois, de uma forma ou de outra, o julgador deixaria de atuar superpartes, comprometendo, a partir daí, a sua imparcialidade.

            Giovanni Conso[36][36], ao examinar o sistema acusatório, entre outros aspectos, frisa a necessidade de exclusão da iniciativa judicial no recolhimento das provas.

            Não procede, de forma alguma, a alegação no sentido de que a iniciativa judicial no campo probatório não compromete a imparcialidade do juiz.  Soa-me evidente que o magistrado, ao tomar a iniciativa da produção de determinada prova em favor da acusação antevê determinado resultado, pois do contrário não teria sentido a providência.  Geraldo Prado[37][37] usa uma feliz expressão para definir tal atitude, ao designá-la como refletindo indiscutível “comprometimento psicológico” do julgador, pois, ele mesmo, juiz, irá julgar a prova carreada aos autos em razão de sua iniciativa e, portanto, no seu entendimento, relevante para o julgamento da causa penal.  Prova, assinale-se, que não fora cogitada pela acusação e que, em tese, pode resultar na condenação do réu.

17.      Resulta evidente que toda a crítica em relação à iniciativa probatória do juiz está dirigida somente quando ela é tomada no sentido de prover subsídios para a acusação.

            No campo da ação penal pública, dispomos de um Ministério Público qualificado, intelectual e moralmente, para atuar a contento, sem a necessidade do auxílio do juiz, desequilibrando a balança em favor do autor da ação penal.

            Por que, então, o bis in idem em detrimento do réu?

            Por que dois órgãos do Estado (o Ministério Público e o juiz) devem alinhar-se na persecução criminal em desfavor do réu?

            Sem dúvida, em um processo que se pretenda acusatório, sabe-me absurda a providência que enseja  ao juiz enveredar na busca de provas que possam, no menos em tese, incriminar o réu.  Quem procura busca achar o que se propõe encontrar.

            Ou tratar-se-ia de providência imotivada?

            Não dá para entender a histórica desconfiança do legislador para com o Ministério Público, tão empenhado quanto o juiz na realização de um processo justo.

            Não se deve, na análise da quaestio, fazer qualquer comparação com o processo civil.  Nele predomina o interesse da parte em ver acolhida a sua pretensão.  Tal observação mostra como é perigosa a assemelhação entre os dois processos.  No cível, o autor não ingressa em juízo com o objetivo nobre de ver reintegrada a ordem jurídica violada.  O autor não é promotor de justiça; é promotor, isto sim, dos seus interesses pessoais ou patrimoniais, que podem ou não coincidir com o ideal de justiça.  Seu interesse de agir é bem diverso daquele que motiva a atuação do Ministério Público.

            Como admitir-se, no campo do processo civil, que uma parte apele em favor de outra? No entanto, não se discute que o Ministério Público pode recorrer em favor do réu ou impetrar habeas corpus para proteger o imputado (art. 654, do CPP).

            Não se pode imaginar, no processo civil, uma regra como a que consta do art. 385 do CPP.  É certo que lá pode haver a transação ou a desistência da ação.  Porém, quando tal se dá, as partes pretendem satisfazer seus próprios interesses da maneira mais satisfatória possível, compondo a lide em função de uma solução que, no caso concreto, lhes parece mais favorável.

            Não se admite, assim, possa o Ministério Público ser concebido como uma espécie de quinta roda do carro, incumbindo ao juiz socorrê-lo, ao obrar como uma espécie de longa manus da acusação, promovendo medidas no objetivo de complementá-la, ainda que o faça em caráter supletivo.

            No campo da ação privada, o tema, quero crer, não merece maior indagação.  Vigorando, ali, o princípio da disponibilidade da ação, torna-se patente que a parte final do art. 156 do CPP, nela, não pode merecer aplicação, mesmo para aqueles defensores extremados da ampla intervenção do juiz em matéria probatória.  Nunca o juiz, ainda que supletivamente, poderá intervir para buscar prova que incumbia ao querelante produzir.  Nos casos de exclusiva ação privada, a atuação do juiz só de dará em favor do querelado, quando este, não importa a razão, deixe de produzir prova que, eventualmente, possa beneficiá-lo.  Justifica-se tal atuar em razão do princípio do favor libertatis.

            Aliás, é bom que fique assinalado que a participação secundária do juiz não se limita à busca de prova em favor do querelado.

            Em qualquer outra matéria, como decorrência do princípio do favor rei, o juiz deverá, sempre que necessário, intervir pro reo.  Suponha-se, por exemplo, um caso de uma prisão ilegal.  Cabe ao magistrado, de ofício, conceder liberdade independentemente do requerimento do indiciado ou do réu (art. 654, § 2º, do CPP).  Por mera aplicação do salutar princípio da proporcionalidade, sobreleva o direito à liberdade em detrimento do sistema acusatório.

            Ao revés, quando estiver em jogo a decretação da prisão, de acordo com a linha de pensamento defendida no presente estudo, o magistrado, ao contrário do que consta da nossa lei processual, jamais deverá atuar de ofício, dependendo, sempre, de requerimento do Ministério Público ou do querelante, conforme o caso.  O assistente da acusação, por exemplo, jamais estará legitimado a postular aquela medida coercitiva, tendo em conta os limites impostos pelo art. 271 do CPP, que deve ser interpretado restritivamente.

            Aliás, como posto em destaque no decorrer da exposição, em qualquer medida cautelar, seja ela de caráter pessoal seja ela de natureza real, desde que observado o sistema acusatório de forma ortodoxa, será vedada a atuação de ofício do magistrado.  A providência dependerá, sempre e sempre, da iniciativa do Ministério Público ou do querelante, em função, evidentemente, da hipótese em exame.

            Do contrário, teremos, como ainda ocorre em nossa legislação, um simulacro de sistema acusatório.


 

http://www.amperj.org.br/associados/dalla/artigo41.htm



(*) Estudo concluído na Quinta-Feira das Endoenças – Anno Domini de nº 2000.

(**) Sergio Demoro Hamilton é Procurador de Justiça no Estado do Rio de Janeiro.

(***) Ditado irônico proveniente da Idade Média, referido por Geraldo Prado em seu erudito estudo sobre o Sistema Acusatório, pág. 157, Editora Lumen Juris, 1999.

[1][1] Sergio Demoro Hamilton, “A Forma Acusatória Pura, uma Conquista do Anteprojeto”, in Revista de Direito Penal nº 13, págs. 64/67, Janeiro-Junho de 1974, Rio de Janeiro, Revista dos Tribunais, 1974.

[2][2] Geraldo Prado, Sistema Acusatório, pág. 171, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 1999.

[3][3] Marcellus Polastri Lima, Ministério Público e Persecução Criminal, págs. 124/125, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 1997.

[4][4] Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo Penal, vol. 01, pág. 90, Saraiva, 18ª edição.

[5][5] Francesco Carnelluti, Leciones sobre el Proceso Penal, Trad. Santigo S. Melendo, Buenos Aires, Bosch, 1950.

[6][6] O “devido processo legal”, como observa Afrânio Silva Jardim,, “está vinculado diretamente à depuração do sistema acusatório”, in Direito Processual Penal, pág. 465, 4ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1991.

[7][7] Hélio Tornaghi, Instituições de Processo Penal, vol. 02, págs. 20/21, São Paulo, Saraiva, 1977.

[8][8] Hélio Tornaghi, Instituições de Processo Penal, vol. 02, pág. 21, São Paulo, Saraiva, 1977.

[9][9] Sergio Demoro Hamilton, “A Disciplina Legislativa da Prova Penal”, in Doutrina, nº 07, págs. 276/293, nº 22.

[10][10] Vincenzo Manzini, Trattato di Diritto Processuale Penale, Volume Primo, pág. 31, Torino, Unione Tipografica Editrice Porinese, 1931-IX, salienta que il processo inquisitorio, nella sua forma tipica di processo segreto e scritto compiuto da magistrati, proveniva dalle regole processuali di Innocenzo III.

[11][11] Hélio Tornaghi, Instituições de Processo Penal, vol. 02, pág. 17, Editora Saraiva, 1977.

[12][12] O leitor interessado no estudo cuidadoso do processo acusatório e do processo inquisitório, abrangendo suas origens e seus diversos aspectos no decorrer dos séculos, deve consultar Vincenzo Manzini (Trattato, vol. 01, págs. 23 e seguintes) e o nosso Tornaghi, (Instituições, vol. 02, pág. 01 e seguintes). Sobre o processo e a forma de agir da Inquisição, consulte-se, ainda, o Diretorium Inquisitorum (Manual dos Inquisidores) escrito pelo inquisidor Pe. Nicolau Eymerich O.P. (1376) e atualizado pelo Pe. Francisco de La Peña O.P. (1585). Nesta publicação dá-se como origem da Inquisição o ano de 1232, quando o imperador Frederico II lançou éditos de perseguição aos hereges. Por seu turno, o Papa Gregório IX, temendo as ambições político-religiosas do imperador, reividicou para si essa tarefa e instituiu os inquisidores papais, recrutados entre os religiosos da Ordem dos Dominicanos.

[13][13] Geraldo Prado, Sistema Acusatório, pág. 153, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 1999.

[14][14] Não foi esta a orientação seguida pela Comissão constituída pelo Procurador-Geral de Justiça-RJ, que tive a honra de integrar e presidir, para examinar a reforma do Código de Processo Penal. Repensando melhor a matéria, entendo, agora, que o art. 28 do CPP afronta o sistema acusatório. Para um exame das sugestões então ofertadas ao Procurador-Geral de Justiça veja-se o trabalho “A Reforma do Processo Penal”, de minha autoria, in Ensaios Jurídicos, vol. 06, págs. 102/123. As propostas da Comissão foram adotadas, como sugestões oficiais do Ministério Público do Rio de Janeiro, pelo Procurador-Geral de Justiça, Dr. Hamilton Carvalhido, que as remeteu aos Exmos. Srs. Ministros da Justiça, Iris Rezende, e Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal.  A referida Comissão viu-se integrada pelos Procuradores de Justiça, Sergio Demoro Hamilton e José Muiñoz Piñeiro Filho, e pelos Promotores de Justiça, Afrânio Silva Jardim, Alexandre Viana Schott e Rogério Pacheco Alves, cabendo ao primeiro presidi-la.

[15][15] Sergio Demoro Hamilton, “A Forma Acusatória Pura, uma conquista do Anteprojeto” in Revista de Direito Penal, nº 13/14, págs. 64/67, Jan-Jun, 1974, Revista do Tribunais.

[16][16] Compunham a Comissão os Procuradores de Justiça Elio Gitelman Fischberg, Helcio Alves de Assumpção, Ronaldo de Medeiros e Albuquerque e Sergio Demoro Hamilton, cabendo ao último presidi-la.

[17][17] “Há de se acrescentar, por oportuno, que se o princípio de paridade de armas não integra o princípio acusatório, reduzido este, como ressaltamos, à divisão tricotômica de funções, é, todavia, importante para a implementação da justa solução do conflito de interesses penal, a ponto de ser  considerado integrante de um sistema cuja fase é a acusatoriedade (novamente aí a distinção entre sistema e princípio, entre continente e conteúdo)” apud Geraldo Prado, Sistema Acusatório, pág. 131, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 1999.

[18][18] Franco Cordero, Procedura Penale, pág. 07 e seguintes, Giuffré-Editore,– 1966. Anota o renomado processualista que il processo penale era ancora materia di considerazione empirica, quando la scienza del processo civile già raggiunto una rica fioritura. No Brasil, não houve diferença em relação ao desenvolvimento dos dois processos.

[19][19] Dennis Aceti Brasil Ferreira, “A prisão preventiva de ofício e o processo penal tipo acusatório”, in Revista do Ministério Público-RJ, nº 08, 3ª fase, págs. 137 a 141, 1998.

[20][20] Dennis Aceti Brasil Ferreira, “A prisão preventiva de ofício e o processo penal tipo acusatório”, in Revista do Ministério Público-RJ, nº 08, 3ª fase, págs. 137 a 141, 1998.

[21][21] Eduardo Pessôa, Brocardos Jurídicos, pág. 101, Editorial Dimensão, 1998.

[22][22] Amilcare Carletti, Dicionário de Latim Forense, pág. 102, nº 990, Livraria e Editora Universitária de Direito Ltda, LEUD, 1997, 7ª edição.

[23][23] Sergio Demoro Hamilton, “A Forma Acusatória Pura, Uma Conquista do Anteprojeto”, in Revista de Direito do Ministério Público do Estado da Guanabara, págs. 63 a 67, nº 20, 1974.

[24][24] Paulo Rangel, Direito Processual Penal, págs. 38/41, 2ª edição, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2000. Anote-se, a propósito, interessante resumo a respeito do tema na obra daquele douto Promotor de Justiça e Professor Universitário.

[25][25] Sobre a matéria, veja-se a severa crítica do promotor de Justiça, Dr. Marcellus Polastri Lima, no trabalho doutrinário “Aspectos Processuais dos Crimes de Trânsito”, in Revista do Ministério Público-RJ, nº 08, 1998, 3ª fase, págs. 223/262. No aludido trabalho, o ilustre jurista assinala que, quando da discussão do projeto de lei, o dispositivo acabou sendo modificado, retirando-se a decretação de ofício de providência cautelar na fase do inquérito. Porém, no texto final o legislador voltou a inserir a anomalia.

[26][26] Apud Marcellus Polastri Lima, “Aspectos Processuais dos Crimes de Trânsito”, in Revista do Ministério Público-RJ, nº 08, 1998, 3ª fase, págs. 223/262. Compunham a aludida Comissão os seguintes membros do Parquet fluminense: Dra. Maria Aparecida Moreira de Araújo (Presidente), Dra. Claudia Maria Macedo Perlingeiro dos Santos, Dr. Marcellus Polastri Lima, Dr. Ricardo Ribeiro Martins e Dra. Simone Benício Ferolla Guida.

[27][27] Afrânio Silva Jardim, “Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95)”, in Revista do Ministério Público-RJ nº 05, 3ª fase, págs. 33/51.

[28][28] Marcellus Polastri Lima, “A Lei 9.099/95 – Questões Controvertidas”, in Revista do Ministério Público-RJ, 3ª fase, nº 05, págs. 128/147,1997.

[29][29] Sergio Demoro Hamilton, “A Disciplina Legislativa da Prova Penal”, in Doutrina, nº 07, págs. 276/293, 1999.

[30][30] René David, Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado, tradução de Hermínio A. de Carvalho, 2ª edição, 1978, Lisboa, Meridiano, apud Common Law, Guido Fernando Silva Soares, pág. 25, Editora Revista dos Tribunais, 1999. Observe-se que o Direito Comparado agrupou os diversos sistemas jurídicos em grandes famílias, variando, segundo os autores, os métodos para a divisão dos mesmos. Aqui seguiu-se, por critérios meramente utilitários, a classificação do Prof. René David: sistema romano-germânico, sistema da common law, sistema dos direitos socialistas e sistemas teocráticos. Cada um deles mereceria análise detalhada em suas particularidades, tema que escapa à finalidade do presente estudo.

[31][31] Eugênio Florian, Delle Prove Penali, vol II, pág. 238, Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, Milano, 1921.

[32][32] Ada Pellegrini  Grinover, “A Iniciativa Instrutória do Juiz do Processo Penal Acusatório”, in Doutrina nº 07, págs. 188/199, passim.

[33][33] José Carlos Barbosa Moreira, “Processo Civil e Processo Penal: Mão e Contramão?” in Revista do Ministério Público-RJ, nº 08, 3ª fase, págs. 199/211, 1998, passim.

[34][34] Para um estudo mais acurado do sistema americano, recomenda-se, de modo especial, a leitura de Guido Fernando Silva Soares, Common Law, Editora Revista dos Tribunais, 1990, passim.

[35][35] O princípio da verdade real não é um dogma do processo penal. Basta ver-se, só para exemplificar, que a revisão criminal não é admitida quando pro societate.

[36][36] Giovanni Conso, Istituzioni di Diritto Processuale Penale, pág. 08, apud Sistema Acusatório, Geraldo Prado, pág. 113, Lumen Juris, 1999. Na opinião do ilustre professor, Conso é um dos autores que mais se aprofundaram no estudo da matéria.

[37][37] Geraldo Prado, Sistema Acusatório, pág. 129, Lumen Juris, 1999.