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A DECISÃO DESCONSTITUTIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO E A AÇÃO PENAL







Luciano Feldens e Douglas Fischer





Muitas têm sido, na atualidade, as questões que estão a exigir do Poder Judiciário uma interpretação mais aprofundada e consentânea à ordem jurídica. Lamentavelmente, em algumas sedes jurisdicionais, tais questões vêm sendo analisadas perfunctoriamente e, data venia, sem o requerido rigor técnico. Elegemos uma, em especial, para que a comunidade jurídica possa sobre ela bem refletir.





Ei-la: a decisão administrativa que desconstitui o crédito tributário implicaria "falta de justa causa" para a ação penal ?





Vejamos, primeiro, a hipótese concreta: o Conselho de Contribuintes, apreciando recurso administrativo de uma empresa, por meio da qual foram perpetrados crimes contra a ordem tributária, promove a desconstituição do crédito tributário que subjaz à representação fiscal formulada pelo Fisco. Pari passu, o Ministério Público Federal oferece denúncia contra o diretor da empresa, responsável pela prática delituosa. Estaria, então, impedido de fazê-lo?





Em que pese o e. STJ venha de decisões conflitantes acerca do tema (HC nº 7.846/PE e HC 8.335/SP), afigura-se-nos não possa remanescer dúvida alguma, ao que assim respondemos à proposição: obviamente, não.



Inobstante acreditarmos que o esforço de raciocínio deveria advir no sentido da sustentação da tese ora combatida - implicação da decisão administrativa na esfera criminal -, haja vista inexisitir dispositivo que determine a aglutinação das instâncias, ontologicamente independentes, lançamos, muito embora, algumas considerações, a fim de que, no mínimo, sejam enfrentadas pelo Judiciário, que é Poder, e não órgão inferior da administração, para lhe prestar obediência hierárquica na tarefa de interpretar - e dizer - o Direito.





A adoção da tese - segundo a qual a desconstituição do crédito tributário na seara administrativa implicaria "falta justa causa" ao processamento da ação penal -, significaria:





a) conferir, na prática, "efeito vinculante" a uma decisão administrativa, quando sequer as decisões emanadas do Supremo Tribunal Federal ostentam essa característica, à exceção das que proferidas em sede de ADC (art. 102, §2º, da CRFB);





b) conferir, na prática, o efeito de "coisa julgada material", erga omnes, a uma decisão administrativa (extrajudicial), que não poderia, a partir de sua prolação, ser enfrentada na esfera judicial, mesmo por aqueles que não tenham participado do procedimento administrativo (v.g., no caso da ação penal, o Ministério Público), violando, assim, dentre outros, o princípio do contraditório (art. 5º, LV, da CR);











c) subjugar o Poder Judiciário a uma decisão da esfera administrativa, suprimindo-lhe jurisdição, não obstante a sociedade tenha justamente no Poder Judiciário a possibilidade, constitucionalmente consagrada, de ver apreciada qualquer lesão a direito, ou mesmo ameaça de sua ocorrência (art. 5º, XXXV, da CRFB);





d) erigir uma decisão administrativa, "transitada em julgado" naquela esfera, e somente se favorável ao fisco, em condição de procedibilidade para o exercício da ação penal (o que o STF já disse não ser - v.g. ADIn 1.571-1, e HC. nº 77.711-9, DJU. 28/05/99, p. 5), quando sequer da representação fiscal necessita o Ministério Público para a sua propositura, bastando-lhe os requisitos do art. 41 do CPP;





e) conferir à administração o monopólio na interpretação das questões fiscais/tributárias, reconhecendo no Juiz, ipso facto, uma incapacidade absoluta de apreciá-las;





f) "tarifamento de prova", eis que, ainda que presentes na ação penal outros elementos de convicção (que poderiam exsurgir justamente no curso da ação penal), impedido estaria o Poder Judiciário de conhecê-los.





O que se sustenta, enfim, é que não pode existir relação de causa/efeito entre a decisão administrativa e a ação penal, de sorte a impedir, nesta, inclusive a produção de provas com aptidão bastante para afastar o entendimento operado naquela esfera. Imaginemos, nessa linha, a seguinte hipótese: após decisão desconstitutiva do Conselho de Contribuintes, realiza-se, no curso da ação penal proposta paralelamente, perícia judicial contábil, que vem a elucidar a questão, apontando para a prática do fato descrito na denúncia, ou, por meio diverso, advêm provas outras até então não-conhecidas, que ratifiquem a imputação. Dir-se-á que o Poder Judiciário não poderá delas conhecer ? Pois reside exatamente aqui o perigo de uma decisão superior voltada ao trancamento da ação penal (por alegada "falta de justa causa"). Ao assim determinar, o Tribunal estará, com um só ato, tolhendo, prematuramente, o direito do Estado (Ministério Público) na produção destas provas, impedindo, por conseguinte, o Poder Judiciário de valorá-las.



Em conclusão, externamos posição de que a decisão administrativa, porventura desconstitutiva do crédito tributário, operada no Conselho de Contribuintes, pode ostentar, no máximo, meio de convicção judicial no processo criminal, presente o princípio do contraditório (art. 5º, XLV, da CR) e à luz do princípio da livre apreciação da prova (art. 157 do CPP), jamais se a tomando com a força probandi que já se lhe procurou atribuir, de fator absoluto, impediente à discussão do fato criminoso na esfera judicial. Até porque nunca se pretendeu - e nem se pretenderá - o contrário: que o contribuinte, perdedor no Conselho de Contribuintes, saia de lá condenado criminalmente. Preservemos a toga e a independência do Judiciário. Bem assim, o acesso à Justiça.





Os autores são Procuradores da República no Rio Grande do Sul





Retirado de: http://www.prsp.mpf.gov.br