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A revogação da suspensão condicional do processo após o período de prova







Autor: Valtan Timbó Martins Mendes Furtado

(procurador da República)







O instituto da suspensão condicional do processo apresenta importância capital no moderno Direito Penal brasileiro, pois a grande maioria dos crimes permite a aplicação de tal medida despenalizadora. Dada a abrangência do instituto, aplicável a crimes graves como lesão corporal grave, furto, contrabando e alguns crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e contra a ordem tributária, necessário conferir-lhe a maior efetividade possível, sob pena de descrédito do Direito Penal e dos órgãos encarregados de reprimir ilícitos penais.



Nesse quadro, assume relevância a questão da revogação da suspensão condicional do processo após a superação do respectivo prazo. A discórdia sobre o tema decorre da redação infeliz do § 5º do art. 89 da Lei n. 9.099/95: "Expirado o prazo sem revogação, o Juiz declarará extinta a punibilidade."



A redação do § 5º levou JULIO FABBRINI MIRABETE a afirmar: "Não tomou o legislador a cautela de prorrogar o prazo, possibilitando a verificação do cumprimento das condições durante esse lapso de tempo. Assim, mesmo que se comprove não ter havido reparação do dano injustificado ou de ter sido instaurada ação penal por crime ou contravenção, a revogação não será possível se o prazo da suspensão já se encerrou. Não diz a lei que se possa revogar a suspensão por fato ocorrido antes de findo o período de prova e sim que a revogação não pode ocorrer após o término do prazo. Não se refere à prorrogação do prazo em qualquer hipótese. O fato de ter o magistrado tomado conhecimento desses fatos após o encerramento do prazo não permite a revogação, obrigando à declaração da extinção da punibilidade." Conclui ser "inadmissível qualquer conclusão retirada da analogia com as regras de prorrogação do prazo para a revogação da suspensão condicional da pena e do livramento condicional. O direito proíbe a analogia in mallam partem quando se trata de matéria de caráter inclusive penal, como é o caso da suspensão condicional do processo."



Todavia, a possibilidade de revogação da suspensão do processo após o respectivo prazo não deriva do emprego de analogia in mallan partem, como sustentou MIRABETE. Cuida-se não de integrar, apenas de interpretar o dispositivo do § 5º do art. 89 de acordo com os métodos lógico-sistemático e teleológico. Sobre o tema da hermenêutica, as seguintes linhas, de DAMÁSIO E. DE JESUS, expressam uma verdade conhecida:



"A simples análise gramatical não é suficiente, porque pode levar a conclusão que aberre do sistema. Sob pena de grave equívoco, a interpretação literal não deve abster-se de visão de todo o sistema. Para que se apreenda o significado de uma norma é preciso perquirir-lhe a finalidade: a ratio legis. Daí ser necessária a interpretação lógica ou teleológica."



É aceito sem discussões pela doutrina que a lei penal, mesmo a incriminadora, deve ser interpretada da mesma forma que as leis de outros ramos do Direito, bem como pode ser objeto de interpretação extensiva. DAMÁSIO cita como exemplos de interpretação extensiva em Direito Penal incriminar-se a poligamia a título de bigamia (art. 235), incriminar-se como rapto (art. 219) a conduta não expressamente descrita de reter a vítima, "não obstante o núcleo do tipo (raptar) signifique arrebatar, roubar", bem como a interpretação do art. 169, parágrafo único, relativo à apropriação de tesouro, "em que à palavra proprietário deve ser dado um sentido mais amplo, para abranger também o enfiteuta."



Na visão de VICENTE RÁO, "o interprete não altera o preceito para ampliá-lo, ou restringi-lo, além ou aquém do seu conteúdo real; apenas amplia ou restringe o seu significado aparente, que se revela insuficiente ou excessivo em relação ao pensamento fiel da disposição."



Portanto, tanto em se tratando de norma incriminadora quanto em relação a norma sobre causa extintiva da punibilidade, a baliza do aplicador do Direito são os métodos de interpretação tradicionais (gramatical, lógico, sistemático, histórico, teleológico), usados para extrair do texto o seu sentido.



A interpretação do § 5º do artigo 89, em vez de literal e isolada, deve estar de conformidade com o restante do artigo no qual se insere. Segundo o § 3º, "a suspensão será revogada se, no curso do prazo, o beneficiário vier a ser processado por outro crime ou não efetuar, sem motivo justificado, a reparação do dano." Redação semelhante tem o § 4º em relação às causas facultativas de revogação. O que se extrai de ambos os dispositivos é que a revogação deverá ocorrer se, durante o período de prova, ocorrer motivo para tanto, não que a própria revogação deverá ocorrer durante este prazo.



Se a finalidade do período de prova consiste em permitir ao acusado demonstrar bom comportamento, autodisciplina e senso de responsabilidade, de modo a tornar desnecessária a possível aplicação de uma pena, é indispensável que as condições do sursis processual sejam observadas durante todo o seu prazo.



Claro que a exigência de que a revogação ocorra durante o período de prova colide com os dispositivos insculpidos no próprio art. 89, já que não existe viabilidade de chegar ao conhecimento do juiz em tempo hábil para a revogação um fato ocorrido nos últimos dias do período de prova (uma denúncia recebida a uma semana do término do prazo da suspensão, por exemplo), o que desafia os §§ 3º e 4º. Mais grave do que isso, faz letra morta da condição da reparação do dano (§ 1º, I) - vale lembrar que o amparo à vítima é um dos objetivos que mais marcaram a edição da Lei n. 9.099/95 -, porquanto somente após terminado o período de prova é que se faz possível verificar se foi ou não cumprida tal exigência legal, vez que o réu poderá, até o último dia da suspensão, promover a reparação do dano, em regra (ou seja, se a revogação tiver que ocorrer necessariamente durante o prazo da suspensão, jamais poderá ter como justificativa a falta de reparação do dano, entendimento que afronta, além do bom senso, o § 3º do art. 89).



A compatibilização dos dispositivos constantes do art. 89 da Lei n. 9.099/95, portanto, conduz à conclusão de que o seu § 5º disse menos do que queria, devendo ser interpretado de maneira lógico-sistemática e teleológica, com resultado extensivo, para ser entendido da seguinte forma: "expirado o prazo sem motivo para revogação, o juiz declarará extinta a punibilidade."



Chegando a esta conclusão, vozes autorizadas se levantaram na doutrina. LUIZ FLÁVIO GOMES, após transcrever o § 5º do art. 89, faz o seguinte comentário: "Isso não significa que mesmo depois de expirado o prazo não possa o juiz revogar a suspensão. Pode. A melhor leitura do dispositivo invocado é a seguinte, portanto: expirado o prazo sem ter havido motivo para a revogação, o juiz declarará extinta a punibilidade. Mesmo que descoberto esse motivo após expirado o prazo, pensamos que pode haver revogação." PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN e JORGE ASSAF MALULY, outrossim, defendem que, "ainda que escoado o período de prova e não julgada extinta a punibilidade, se o juiz verificar no seu curso a existência de causas revocatórias, não declarará extinta a punibilidade, seguindo o feito nos seus ulteriores termos."



A jurisprudência do STJ ainda não se posicionou de maneira explícita sobre o assunto, mas já existe pelo menos um julgado publicado no qual foi confirmada a revogação da suspensão condicional do processo ocorrida após o período de prova: o RHC n. 8.311/SP, julgado pela 5ª Turma, Rel. o Min. Félix Fischer, DJ de 19.4.99. Neste caso, o paciente fora beneficiado pelo sursis processual, com prazo de 2 anos, em 26.2.96. Solicitada sua folha penal em 16.2.98, descobriu-se que contra o mesmo havia sido recebida denúncia em 1.12.97, por crime cometido um mês antes. Tal fato motivou a revogação do benefício, em 4.5.98 (após, portanto, o prazo da suspensão), decisão esta confirmada à unanimidade pela 5ª Turma do STJ.



O TRF da 1ª Região já teve a oportunidade de se manifestar a respeito da questão de maneira mais direta no Recurso Criminal n. 1999.010.01.14004-6/MG, julgado pela 4ª Turma, em cuja ementa ficou consignado:



"PROCESSUAL PENAL. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. DECURSO DO RESPECTIVO PRAZO. REVOGAÇÃO DO BENEFÍCIO. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. INCONSISTÊNCIA DO INCONFORMISMO.

(...)

2. A simples certificação do transcurso do prazo do benefício não enseja declarar-se a extinção da punibilidade, se comprovado fato, como o foi no caso concreto, que justifique a incidência do § 3º do artigo 89 da Lei nº 9.099/1995.

3. Recurso improvido." (Rel. o Juiz Hilton Queiroz, DJ de 5.5.00, unânime).



Não se poderia esperar outra orientação da jurisprudência. Aplicar a lei de modo contrário seria não só negar vigência aos comandos normativos insculpidos no art. 89 da Lei n. 9.099/95, mas também dar as costas para a realidade, transformando a suspensão condicional do processo numa mera verificação burocrática dos comparecimentos mensais do acusado à sede do Juízo. Só se pode falar em um controle sério das demais condições, mormente da ausência de novos processos e da reparação do dano, se tal controle ocorrer posteriormente ao prazo da suspensão.



Portanto, faz-se necessário que seja verificado, ao término do período de prova, o cumprimento das condições fixadas para a suspensão condicional do processo, devendo ocorrer a revogação do benefício nos casos previstos nos §§ 3º e 4º do art. 89 da Lei n. 9.099/95, prosseguindo o processo em seus ulteriores termos.













Retirado de: http://www.prsp.mpf.gov.br