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Renato Flávio Marcão
Promotor de Justiça em São Paulo, Mestre em
Direito Penal pela Universidade Mackenzie, Especialista em Direito
Constitucional, Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal na Unip, Unirp
e Unorp, em São José do Rio Preto-SP, Coordenador Cultural da Escola Superior
do Ministério Público do Estado de São Paulo (Núcleo de São José do Rio
Preto-SP), Sócio-fundador da AREJ (Academia Riopretense de Estudos Jurídicos)e
Coordenador do Núcleo de Direito Penal, Membro da Associação Internacional de
Direito Penal (AIDP) e autor da obra Lei de Execução Penal anotada,
editada pela Saraiva
Sumário: 1. O Direito penal, a lei e sua
razão de ser; 2. Legislação penal brasileira e o crime de tráfico de drogas;
2.1. A discussão sobre a constitucionalidade do regime integral fechado; 2.2. A
Lei n. 9.455/97 (Lei de Tortura); 2.3. A Lei n. 9.714/98 (Lei de Penas
Alternativas); 2.4. O Projeto de Lei n. 1.873, de 1991 (n. 105/96 no Senado
Federal), que deu origem à Lei n. 10.409/2002, 2.4.1. Sobre a pena, 2.4.2. Abolitio
criminis, 2.4.3. O verbo “traficar” como modalidade típica; 2.5. O
Projeto de Lei n. 6.108/2002 e o substitutivo n. 115/2002; 2.6. A proposta do
Ministério Público de São Paulo; 3. Ligeiras reflexões; 4. Conclusão.
1. O Direito
penal, a lei e sua razão de ser
O Direito
Penal, doutrinou Antolisei, é uma parte do ordenamento jurídico do Estado; se
caracteriza pela natureza das conseqüências que se seguem à violação de suas
prescrições: a pena, e daí sua denominação1. Dizia o Mestre: “Es el conjunto de preceptos cuya
inobservancia tiene la consecuencia jurídica de infligir una pena al autor del
ilícito”2 .
Na conceituação de Maurach e Zipf “el derecho penal
es aquel conjunto de normas jurídicas que une ciertas y determinadas
consecuencias jurídicas, en su mayoría reservadas a esta rama del derecho, a
una conducta humana determinada, cual es el delito”3 .
O Direito penal
se concebe como resposta à criminalidade e ao delito, na afirmação segura de
Hassemer e Muñoz Conde4.
Conforme Luis Jiménes de Asúa, “la única fuente
productora del Derecho penal es la ley. Tomada ésta en su sentido formal y más
solemne, es la manifestación de la voluntad colectiva expresada mediante los
órganos constitucionales, en la que se definen los delitos y se estabelecen las
sanciones”5 .
Feuerbach dizia que “ley penal (lex poenalis)
en sentido amplio, abarca toda ley que se refiere al crimen y a su punición. En
sentido estricto es la categórica declaración de la necesidad de un mal
significativo en el caso de una determinada lesión jurídica”6 .
Wessels ensinou
que “segundo a experiência da história da humanidade, a justificação para a
existência do Direito Penal resulta já de sua indiscutível necessidade
para uma proveitosa vida coletiva”7 . E arrematou: “A tarefa do
Direito Penal consiste em proteger os valores elementares da vida comunitária
no âmbito da ordem social e garantir a manutenção da paz jurídica. Como
ordenação protetiva e pacificadora serve o Direito Penal à proteção dos bens
jurídicos e à manutenção da paz jurídica”8 .
Inclusive em
razão do modelo democrático representativo que adotamos, é incontroverso entre
nós que a lei deve exprimir a vontade geral, e evidentemente tal conclusão não
se modifica em se tratando de Direito Penal.
Não nos parece,
todavia, que a legislação recente tem pautado pela vontade geral, que partindo
do conhecimento empírico reclama, não é de agora, punições mais severas ao
crime de tráfico de entorpecentes.
Passadas quase
três décadas, a realidade de hoje não é a mesma que se constatava quando do
advento da Lei n. 6.368/76.
Nos dias
atuais, em que cerca de 70% (setenta por cento) da criminalidade está ligada
direta ou indiretamente com o tráfico de drogas (também em decorrência do
consumo, da dependência etc), a punição do comércio maléfico necessariamente
deve ser agravada, e de forma exemplar.
Não é essa,
entretanto, a tendência que constatamos, conforme passaremos a apontar em uma
rápida análise a algumas leis e projetos ligados ao tema, ainda que
reflexamente, elaboradas e propostas no passado recente.
2. Legislação
penal brasileira e o crime de tráfico de drogas
2.1. A
discussão sobre a constitucionalidade do regime integral fechado
Vigente o art.
12 da Lei n. 6.368/76, o crime de tráfico ilícito de entorpecentes é punido com
reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e multa.
Trata-se, a
teor do disposto no art. 2º, caput, da Lei n. 8.072/90, de crime assemelhado
a hediondo, e, por conseqüência, a pena privativa de liberdade resultante de
condenação deverá ser cumprida integralmente em regime fechado, conforme
decorre do § 1º do mesmo artigo, o que não afasta a possibilidade de livramento
condicional após o cumprimento de 2/3 (dois terços) da pena, desde que
satisfeitos os demais requisitos, excetuada a hipótese de reincidência
específica, a teor do disposto no inc. V do art. 83 do Código Penal.
É vedada, portanto,
a progressão de regime prisional.
Não obstante,
existem alguns julgados em que se reconheceu a inconstitucionalidade da norma
que veda a progressão.
Nesse sentido
já se decidiu que: “O regime integral fechado colide com o princípio
constitucional da individualização da pena, referido no art. 5º, XLVI, da Carta
Magna” (TJSP, ApCrim. 167.338-3/2, 3ª CCrim, j. em 20.03.95, m.v.)9
.
Também já se
deferiu progressão de regime em se tratando de crime hediondo ou assemelhado
“tendo em vista os princípios da humanidade e da individualização da pena”
(TJSP, ApCrim. 151.568-3/0, 3ª Câm., j. em 4.12.95, RT, 728/520)10 .
Saiu vencedora
a tese contrária, e “o Supremo Tribunal Federal continua entendendo pela
constitucionalidade do cumprimento integral da pena em regime fechado, no caso
dos crimes hediondos” (STF, HC 77.023-5/SP, 2ª Turma, j. em 12.05.98, m.v. DJU,
de 14.08.98, p. 6). Assim, os condenados pela prática de crime hediondo ou
assemelhados deverão cumprir integralmente a pena em regime fechado (STJ, RHC 5.345-RN
(reg. n.º 96/11497-8), DJU, de 27.05.96, p. 17.881)11 .
2.2. A Lei
9.455/97 (Lei de Tortura)
Superada a
questão da (in)constitucionalidade do regime integral fechado, embora alguns
nela ainda insistam, vozes e mais vozes se levantaram no cenário jurídico e
legislativo defendendo a necessidade de progressão de regime em se tratando de
crimes hediondos e assemelhados, pretendendo, pois, a modificação da Lei n.
8.072/90 para tal abrandamento.
Embora os
partidários da tese precitada não tenham alcançado sucesso direto com a
doutrina invocada, nova brecha surgiu no cenário jurídico com a edição da Lei
n. 9.455/97, a denominada “Lei de Tortura”, e com ela decisões foram proferidas
no sentido de que: “A Constituição da República (art. 5º, XLIII) fixou regime
comum, considerando-se inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia, a
prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o
terrorismo e os definidos como crimes hediondos. A Lei n. 8.072/90
conferiu-lhes a disciplina jurídica, dispondo: 'A pena por crime previsto
neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado ' (art. 2º, §
1º). A Lei n. 9.455/97 quanto ao crime de tortura registra no art. 1º, § 7º: 'O
condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o
cumprimento da pena em regime fechado.' A Lei n. 9.455/97, quanto à
execução, é mais favorável do que a Lei n. 8.072/90. Afetou, portanto, no
particular, a disciplina unitária determinada pela Carta Política. Aplica-se
incondicionalmente. Assim, modificada, no particular, a Lei dos Crimes
Hediondos. Permitida, portanto, quanto a esses delitos a progressão de regimes”
(STJ, REsp. n. 140.617-GO, 6ª Turma., j. em 12.09.97, v.u.)12 .
Novamente, saiu
vencedora a tese não liberalizante, no sentido de que “a pena de reclusão, em
se tratando de crime listado na Lei dos Crimes Hediondos, deve ser executada em
regime fechado. A Lei n.º 9.455/97 não se estende aos demais delitos previstos
na Lei n. 8.072/90” (STJ, REsp. 195.440-SP, 5ª Turma, DJU, n. 106, de 7-06-99,
p. 123)13 .
Evidente que o
legislador deveria estar atento, de forma a não possibilitar, sequer, tal
discussão, e para tanto deveria ter pautado com a esperada e sempre necessária
técnica legislativa, atuado com juridicidade, o que não ocorreu.
2.3. A Lei n.
9.714/98 (Lei de Penas Alternativas)
Quando se
imaginava aquietada a questão e ultrapassadas as investidas benevolentes com o
crime de tráfico de entorpecentes e drogas afins, surge a Lei n. 9.714/98, a
denominada “Lei de Penas Alternativas”, que ampliou a possibilidade de
aplicação de penas restritivas de direitos em substituição às privativas de
liberdade não superiores a 4 (quatro) anos, atendidos os demais requisitos
estabelecidos.
Sendo o crime
de tráfico punido com 3 (três) anos de reclusão em seu grau mínimo, foi o que
bastou para se instalar nova confusão.
Surgiram
diversos acórdãos no sentido de que “a simples alegação de ser o crime hediondo
não obsta a substituição da pena. Se o legislador não fez qualquer restrição
nesse sentido, não cabe ao intérprete fazê-la. Preenchidos os requisitos legais
objetivos e subjetivos, previstos no art. 44 do Código Penal, com as alterações
da Lei n.º 9.714/98, nenhum impedimento existe para que a pena privativa de
liberdade, no caso de crime de tráfico, seja substituída por restritiva de
direitos” (TJMG, Ap. 148.427-8, 1ª CCrim., j. em 29.6.99, v.u.)14 .
Outra vez
prevaleceu a tese mais rígida e adequada, no sentido de que “a Lei n. 9.714/98,
que permite a substituição das penas privativas de liberdade por restritivas de
direito, visa, de forma explícita, a atingir os denominados crimes de menor
repercussão, portanto, a toda evidência, afigura-se total contra-senso fazê-la
incidir em tráfico de entorpecentes, crime reconhecido como hediondo e cuja pena
deve ser cumprida integralmente no regime fechado” (TJSP, Ap. 258.553-3/1, 1ª
CCrim. Extraordinária, j. em 03.12.98, v.u.)15 .
Adotou-se
majoritariamente o entendimento no sentido de que “a nova redação do art. 44,
notadamente no inciso III, demonstra que este dispositivo não pode ser aplicado
a casos de tráfico ilícito de entorpecentes. Preceitua ele que somente haverá a
possibilidade de concessão da substituição caso a culpabilidade, os
antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os
motivos e as circunstâncias indicarem ser essa substituição suficiente.
Ao dispor desta forma, fica patente que o legislador impôs ao Juiz a análise da
suficiência da substituição da pena. É impostergável que seja apta para
satisfazer a necessidade de repressão estatal” (TJSP, Ap. 264.454-3/9, 1ª Câm.,
j. em 18.1.99).
Não resta
dúvida de que, mais uma vez o legislador faltou com o cuidado esperado e acabou
por beneficiar traficantes.
2.4. O Projeto
de Lei n. 1.873, de 1991 (n. 105/96 no Senado Federal), que deu origem a Lei n.
10.409/2002
2.4.1. Sobre a
pena
Após 11 (onze)
anos de “estudos” e propondo mudanças hipoteticamente reclamadas pela
sociedade, em 28 de fevereiro de 2002 entrou em vigor a Lei n. 10.409/200216,
sendo que o Projeto n.º 1.873/91, que a ela deu origem, trazia no art. 14 a
regulamentação do crime de tráfico.
Embora a
proposta apresentasse algumas mudanças de redação, a pena sugerida para o crime
de tráfico em sua forma fundamental continuou a mesma: reclusão, de 3 (três) a
15 (quinze) anos, e multa.
O art. 14 do
citado Projeto acabou vetado pelo Exmo. Presidente da República, como de resto
todo o Capítulo III em que se encontrava, que tratava “dos crimes”.
Não fosse o
veto, no tema em testilha, é evidente que a Lei não representaria um reflexo da
consciência jurídica coletiva.
2.4.2. Abolitio
criminis
É certo que
graves e inaceitáveis problemas decorreriam da sanção integral ao Projeto que
deu origem à Lei n. 10.409/2002, contudo, nada mais grave do que a
inafastável extinção da punibilidade em relação a todos os processos
criminais envolvendo as figuras típicas relacionadas com produtos, substâncias
ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica.
Com efeito, nos
precisos termos do art. 3º do Projeto, considerar-se-iam produtos, substâncias
ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, aquelas
especificadas em Lei e tratados internacionais firmados pelo Brasil.
Dizia o
mencionado dispositivo que acabou vetado17: “Para os fins desta Lei,
são considerados ilícitos os produtos, as substâncias ou as drogas que causem
dependência física ou psíquica, especificados em lei e tratados internacionais
firmados pelo Brasil, relacionados periodicamente pelo órgão competente do
Ministério da Saúde, ouvido o Ministério da Justiça”.
Ora, não
havendo Lei especificadora ao tempo da sanção, como realmente não
existia (e ainda não existe)18, seria inevitável o reconhecimento da
extinção da punibilidade por verificar-se o fenômeno denominado abolitio
criminis.
Se sancionado o
Projeto integralmente, além de mantida a pena para o crime de tráfico, todos os
processos em andamento seriam fulminados, e enquanto não vigente Lei
especificadora do rol de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem
dependência física ou psíquica, não haveria qualquer possibilidade de prisão,
inquérito ou processo; qualquer imputação de conduta típica prevista na
Legislação Antitóxicos (tráfico, porte etc.), cumprindo observar que a lei
penal incriminadora não tem efeito retroativo, provendo sempre para o futuro,
como ensinou Bento de Faria19.
2.4.3. O verbo
“traficar” como modalidade típica
A redação do
art. 14 do Projeto que deu origem à Lei n. 10.409/2002 buscou ampliar os verbos
de imputação penal contidos no vigente art. 12 da Lei n. 6.368/76.
Foram
acrescentados os verbos “financiar” e “traficar ilicitamente”.
Grave problema
decorreria, não fosse vetado o tipo em questão.
Com efeito, uma
vez vigente a figura típica “traficar ilicitamente”, o apego à literalidade da
Lei levaria, por certo, inúmeros juristas à defesa da tese plausível no sentido
de que só se admitiria o cumprimento de pena no regime integralmente fechado,
como decorrência do disposto no art. 2º, § 1º, da Lei n. 8.072/90, quando a
condenação adviesse exclusivamente do reconhecimento de tal modalidade; da
prática e incidência de tal verbo (traficar), excluindo do regime integral
fechado todas as demais condenações impostas pela prática dos demais verbos
contidos no dispositivo em comento, já que o caput do art. 2º da Lei n.
8.072/90 restringe suas vedações e graves conseqüências decorrentes de seus
incisos e parágrafos às modalidades criminosas que elenca, quais sejam: crimes
hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e
drogas afins e o terrorismo.
É certo que as
conseqüências seriam extremamente danosas, inclusive em razão do efeito
pretérito de tal dispositivo, se sancionado, já que vigente o princípio da
retroatividade da lei penal mais benéfica, segundo o qual, ocorrendo alteração
da lei in melius, ela sempre retroagirá, e a lei impõe ao juiz, quando
são diversas as leis do tempo em que foi cometido o delito e o do julgamento,
aplicar a que contém disposições mais favoráveis ao acusado20.
As razões
do veto foram as seguintes: “Quanto ao art. 14 do projeto, o primeiro do
capítulo em comento, o tipo em questão já é contemplado pelo art. 12 da Lei n.
6.368/76, com a mesma cominação de pena. No projeto, todavia, dois verbos
somaram-se aos verbos do tipo vigente: ‘financiar’ e ‘traficar ilicitamente’.
Conquanto representassem, em tese, avanços legislativos, contêm o risco
inadmissível, ainda que remoto, de provocar profunda instabilidade no
ordenamento jurídico. Veicula-se tese no meio jurídico pela qual a redação
proposta pelo projeto no art. 14 promoveria uma ‘evasão de traficantes das
prisões’. Explique-se. O verbo ‘traficar’ acrescentado pelo projeto, e que não
aparece na lei vigente, poderia concentrar sobre si, em caráter exclusivo, a
aplicação da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990 (Crimes Hediondos), que impõe
o cumprimento integral em regime fechado da pena para o crime de tráfico
ilícito de entorpecentes e drogas afins. Em decorrência disso, apenados
condenados por decisão judicial que contenha referência expressa a verbos como
‘produzir’, ‘ter em depósito’, por exemplo, não estariam submetidos à norma
especial sobre o regime. Hediondo seria, por essa interpretação, apenas o verbo
novo, o ‘traficar’. Assim, por causa do princípio da irretroatividade da lei
penal mais grave, todos indivíduos condenados e processados pelo tipo do art.
12 da Lei n. 6.368/76, poderiam estar, automaticamente, descobertos pela Lei n.
8.072/90”.
Arrematou o
veto presidencial: “Conquanto seja tese de duvidosa plausibilidade, divulgada ad
terrorem, não é do interesse público que se corra risco algum a respeito do
tema”.
Notadamente em
matéria tão preocupante, é de todo lamentável a “falta de cuidado” com que se
houve o Poder Legislativo, que atua orientado juridicamente, não sendo demais
salientar que o processo legislativo pressupõe, inclusive, a passagem do
Projeto pelas diversas Comissões, dentre as quais a de Constituição e Justiça,
além dos presumíveis debates acalorados em torno das propostas contidas nos
dispositivos etc., e a tramitação do Projeto transcorreu por mais de uma
década.
2.5. O Projeto
de Lei n. 6.108/2002 e o substitutivo n. 115/2002
Logo que a Lei
n. 10.409/2002 entrou em vigor o Governo enviou ao Congresso Nacional o Projeto
de Lei n. 6.108/2002, visando a alteração daquela, tamanha a confusão que a
mesma desencadeou, e sem surpresas a redação do art. 14-A passou a cuidar do
crime de tráfico, mantendo a pena originalmente proposta, e que é a mesma desde
a edição da Lei n. 6.368/76.
Como se vê,
está claro que ainda não se atentou aos reclamos sociais e à necessidade de
majoração da reprimenda em se tratando de crime de tráfico ilícito de
entorpecentes. Ao contrário, caminha-se, em parte, na direção oposta.
É
incompreensível tal situação, notadamente quando se tem em vista que a primeira
reação do Poder Legislativo brasileiro ante a reiteração de determinados crimes
e do alarma social por eles provocado sempre foi a de apressar-se, e algumas
vezes de forma afoita, em elevar a punição, como ocorreu, por exemplo, com a
criação de nova qualificadora no art. 155 do Código Penal21, com a
edição de seu § 5º, e com a redação do art. 180 do Código Penal, decorrentes da
Lei n. 9.426, de 24 de dezembro de 199622, visando punir de forma
mais severa o furto e a receptação envolvendo veículos automotores, conforme
regulados.
Importa
observar, todavia, que no Senado Federal foi aprovado um substitutivo (PL n.
115/2002) ao Projeto de Lei n. 6.108/2002, criando novas figuras típicas e
elevando as penas do crime de tráfico de entorpecentes para o mínimo de 8
(oito) anos de reclusão.
2.6. A proposta
do Ministério Público de São Paulo
Estudos
elaborados pelo Ministério Público Paulista culminaram com a elaboração de uma
proposta de reformas da Lei de Entorpecentes (Lei n. 10.409/2002),
estabelecendo para o crime de tráfico a pena de reclusão, de 4 (quatro) a 15
(quinze) anos, e multa de 60 (sessenta) a 360 (trezentos e sessenta)
dias-multa.
A justificativa
apresentada é a seguinte: “adequar a gravidade do delito à pena mínima de outro
tipo penal (roubo), também de grande incidência nas grandes cidades, buscando
eqüidade do sistema punitivo, bem como tendendo ao acompanhamento jurídico
atual no sentido de atenuar a situação penal do usuário, mas com o conseqüente
agravamento da situação do traficante”23.
3. Ligeiras
reflexões
Como se vê, têm
sido constantes as investidas e mudanças legislativas benevolentes com o crime
de tráfico de entorpecentes, a permitir, juridicamente, interpretações
contrárias aos interesses de toda a sociedade ordeira, quando o necessário
seria enrijecer o tratamento penal dispensado ao comércio espúrio de
substâncias entorpecentes e drogas afins.
Para agravar a
punição em relação ao debatido crime nenhuma mudança legislativa se fez ao
longo de todos estes anos.
De outro
vértice, o que se discute; o que se tenta, e o que se tem possibilitado com as
práticas legislativas acima apontadas são interpretações que só beneficiam
traficantes.
Pende agora de
tramitação o Projeto de Lei n. 115/2002, aprovado no Senado, conforme acima
anotado, acenando para a majoração da reprimenda do crime de tráfico em patamar
que achamos adequado (pena mínima de oito anos de reclusão).
4. Conclusão
Conforme a
lição de Beccaria 24: “O interesse geral não se funda apenas em que
sejam praticados poucos crimes, porém ainda que os crimes mais prejudiciais à
sociedade sejam os menos comuns. Os meios de que se utiliza a legislação para
obstar os crimes devem, portanto, ser mais fortes à proporção que o crime é
mais contrário ao bem público e pode tornar-se mais freqüente. Deve, portanto,
haver proporção entre os crimes e os castigos”.
No direito
penal brasileiro, além da desproporção punitiva existente entre o mal social
produzido direta e indiretamente pelo tráfico de entorpecentes e drogas afins,
não se cogitou no passado recente, em termos legislativos, do necessário
aumento quantitativo das penas. Não se acenou, com firmeza, para o
recrudescimento penal.
Não bastasse,
as válvulas geradoras de discussões que soam benéficas aos traficantes foram
constantes.
Do conjunto,
resulta evidente a necessidade de se rever tais práticas legislativas, para
que, em homenagem à democracia representativa e ao verdadeiro espírito e
fundamento da Lei seja possível, um dia, impor penas mais severas aos
traficantes.
Resta aguardar.
1. Fancesco Antolisei. Manual de
derecho penal. Bogotá – Colômbia: Temis, 1988, p. 1.
2. Ob., cit., p. 1.
3. Reinhart Maurach e Heinz Zipf. Derecho
penal, Parte general, trad. da 7. ed. alemã por Jorge Bofill Genzsch y Enrique
Aimone Gibson, Buenos Aires: Astrea, v. 1, 1994, p. 4.
4. Winfried Hassemer e Francisco Muñoz
Conde. Introdución a alCcriminologia y al
derecho penal. Valencia: Tirant lo
blanch, 1989, 37.
5. Principios de derecho penal – La ley y el delito. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997, p. 92.
6. Anselm V Feuerbach. Tratado de
derecho penal, Buenos Aires: Hammurabi. Trad. de Eugenio R. Zaffaroni e
Irma Hagemeier, 1989, p. 93.
7. Johannes Wessels. Direito Penal –
Parte geral, tradução do original alemão e notas por Juarez Tavares, Porto Alegre:
Sérgio A. Fabris, 1976, p. 2-3.
8. Johannes Wessels. Ibidem.
9. Renato Flávio Marcão. Lei de Execução
Penal anotada, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 274.
10. No mesmo sentido: JTJ 156/317;
RTJ 147/598; RT 737/551.
11. Renato Flávio Marcão. Lei de Execução
Penal anotada, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 274-275.
12. Renato Flávio Marcão. Lei de Execução
Penal anotada, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 278.
13. No mesmo sentido: STF, HC n. 76.371,
j. em 25.03.98; STF, HC n. 76.543-SP, in DJU, de 17.04.98, Seção I, p. 6; STF,
HC n. 77.023-5/SP, 2ª Turma, rel. Min. Maurício Corrêa, j. em 12.05.98,
m.v. DJU, de 14.08.98, p. 6; STF, HC n. 77.562-3-MS, 2. Turma, rel. Min.
Maurício Corrêa, j. em 09.02.99, DJU, de 09.04.99, RT, 766/535; STJ, RHC
n. 7.603-PI, 5ª Turma, rel. Min. Félix Fischer, DJU, de 13.10.98; TJSP, RvCr n.
246.023-3/0, 1º Grupo de Câmaras, rel. Des. Egydio de Carvalho, j. em 08.03.99,
v.u., RT, 764/545. Cf. MARCÃO, Renato Flávio. Lei de Execução Penal
anotada, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 279.
14. Renato Flávio Marcão. Lei de Execução
Penal anotada, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 245.
15. Renato Flávio Marcão. Lei de Execução
Penal anotada, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 244.
16. Damásio E. de Jesus, em seu artigo
intitulado: Nova Lei Antitóxicos (Lei n. 10.409/2002) – Mais confusão
Legislativa, disponível em: <www.damasio.com.br/novo/html/
frame_artigos.htm>, expôs entender que a Lei entrou em vigor em 27 de
fevereiro de 2002. Do mesmo entendimento comunga Renato de Oliveira Furtado,
conforme escreveu em seu artigo: Nova Lei de Tóxicos – anotações ao art. 38 e
parágrafos, disponível em: http://www.ibccrim.org.br, 22.02.2002. Jorge Vicente
Silva comunga do mesmo pensamento nosso, conforme anotou em sua obra: Tóxicos,
2. ed., Curitiba: Juruá, 2002, p. 13.
17. Razões do veto Presidencial: “Em face
da permanência em vigor da Lei n. 6.368/76, assim como de avanços legislativos
ocorridos durante o período em que tramitava o projeto, o art. 3o
corresponderia a um retrocesso em relação aos esforços empregados no aperfeiçoamento
da regulamentação da matéria. É contrário, portanto, ao interesse público que a
definição de substâncias entorpecentes, psicotrópicas, que determinem
dependência física ou psíquica, e afins, sofra restrições pela interpretação da
lei. A expressão ‘para os fins desta Lei’ é, portanto, potencialmente lesiva à
modernização e à complexidade da legislação penal brasileira”.
18. A definição encontra-se em “Portaria”,
e não em “Lei”.
19. Bento de Faria. Código Penal
brasileiro comentado, 2. ed., Rio de Janeiro: Record, 1958, v. II, p. 72.
20. Bento de Faria. Código Penal
brasileiro comentado, 2. ed., Rio de Janeiro: Record, 1958, v. II, p. 74.
21. Subtração de veículo automotor que
venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior.
22. Publicada no DOU, de 26 de
dezembro de 1996 e retificada no DOU, de 15 de janeiro de 1997.
23. Caderno informativo do Centro de Apoio
Operacional das Promotorias de Justiça Criminais, setembro de
2002, p. 4.
24.
Cesare Beccaria. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieri
Guimarães, São Paulo: Humus, 1983, p. 61.
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