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Aplicação da pena privativa de liberdade

 

 

Carlos Otaviano Brenner de Moraes

 

 

Ao tempo em que tive a honra em exercer a Corregedoria-Geral do Ministério Público do Rio Grande do Sul, busquei fazer com que os Promotores de Justiça, especialmente os recém chegados à Instituição, percebessem a importância da dosimetria da pena.

 

Dentre outras iniciativas, elaborei à época o seguinte texto:

 

"Questão nem sempre observada é a relativa à aplicação da pena. Na vida prática, muito pelo elevado volume de serviço, ou até mesmo pela inexperiência, o membro do Ministério Público é intimado da sentença e se limita a verificar o conteúdo do veredicto, condenatório ou absolutório, descurando de examinar a sanção.

 

É imperioso examinar a dosimetria. A pena deve ser necessária e suficiente à reprovação e prevenção do crime ("caput" do art. 59 do CP).

 

A individualização da pena é uma garantia constitucional. A lei penal, de forma abstrata, determina a quantidade mínima e máxima de pena a cada um dos crimes que descreve, permitindo certos agravamentos e atenuações, aumentos e diminuições.

 

Cabe ao juiz, no caso concreto, dentro dos limites previamente estabelecidos e com observância dos aumentos e diminuições possíveis, adequá-la àqueles imperativos de necessidade e suficiência à reprovação e prevenção do crime.

 

É através da individualização que se dá a cada um o que é seu. A individualização da pena representa a aceitação do princípio da isonomia na justiça distributiva.

 

Na dosimetria, devem ser observadas três fases. É o chamado critério trifásico proposto por Nelson Hungria, acolhido pela reforma penal de 1984.

 

A primeira é a da fixação da pena-base, ou seja, o alicerce da reprimenda.

 

À exemplo da pessoa que prepara um alimento, que deve respeitar uma receita mínima para que possa ser digerido, o juiz, ao fixar a pena-base, também deverá respeitar certos ingredientes que lhe são fornecidos pela lei penal para que a pena seja justa e adequada, para que seja o necessário e suficiente a reprovar e prevenir o crime (“O método trifásico é de obrigatória aplicação na fixação da pena, notadamente quando superior ao mínimo legal, sendo nulas as decisões que o desatendem. O vício da individualização da pena não afeta a condenação, restringindo-se o pronunciamento da nulidade à dosagem da reprimenda. Ordem conhecida e deferida em parte para anular o acórdão na parcela voltada a fixação da pena privativa da liberdade, sem prejuízo da condenação e mantida a prisão do paciente” - HC. 70.423-9-RJ, II T, Rel. Min. Paulo Brossard, 10-03-94).

 

Mas não basta apenas mencionar os ingredientes da pena concretizada. É indispensável que a sentença fundamente a apreciação de cada um deles, salvo se a pena for fixada no mínimo legal. Ao individualizar a pena, o Juiz deve atender aos elementos essenciais e circunstanciais do delito e aos outros pormenores que projetam a culpabilidade. A ilação deve apoiar-se em fato concreto, demonstrando quanto à existência e às suas conseqüências. Impossível raciocinar com meras conjecturas.

 

Os ingredientes, tecnicamente chamados de circunstâncias judiciais, estão arrolados no art. 59 do Código.

 

O ponto de partida é o exame da culpabilidade, que é a censura, o juízo de reprovação que se faz ao agente do delito, considerando-se sua saúde mental, consciência da ilicitude e poder-agir conforme o direito. É a circunstância de maior importância a ser apreciada pelo juiz.

 

Além da culpabilidade, são considerados, como circunstâncias do agente, seus antecedentes, que são todos os fatos da vida passada, próximos ou remotos; sua conduta social, que é o modo como se relaciona com a comunidade, a família, o ambiente de trabalho, de lazer, escolar; e sua personalidade, isto é, suas qualidades morais, sua índole, sua agressividade com a ordem social.

 

Também funcionam como ingredientes da pena-base os motivos determinantes, as circunstâncias e conseqüências do crime, e o comportamento da vítima.

 

Os motivos, quando não qualificam o delito nem agravam ou aumentam a pena, devem ser levados em consideração pelo juiz. Como dizia Ferri, são os motivos que dão colorido moral e jurídico a todo o ato humano. Os motivos podem ser morais ou imorais, sociais ou anti-sociais, determinando uma quantificação maior ou menor da pena. Lembra a doutrina que há uma sensível diferença entre a agressão para salvaguardar a honra de uma filha daquela praticada por inveja.

 

As circunstâncias são elementos acessórios, que não integram o crime, mas influenciam em sua gravidade. É inegável que as circunstâncias do crime de seqüestro, por exemplo, entendidas como tudo o que se passa ao redor da privação da liberdade, como o desespero, a apreensão, o forte abalo à saúde física e mental da vítima, de seus familiares e amigos próximos, devem merecer especial atenção do juiz na fixação da pena. Dias atrás a imprensa noticiava a remessa de uma fita aos familiares da vítima de seqüestro com cenas de tortura como meio de abreviar o tempo para pagamento do resgate.

 

As conseqüências aparecem com o maior ou menor dano para a vítima, a família e a comunidade. São os efeitos diretos e indiretos produzidos pelo delito, que não se confundem com o resultado material exigido pelo tipo. Assim, no homicídio doloso, a morte física não pode ser tida como conseqüência, pois integra o tipo incriminador, não podendo ser considerada na aplicação da pena (RJTJRGS 120/173 e 132/126), mas deverá ser sopesada a orfandade, por exemplo. As repercussões no plano sócio-familiar poderão repercutir na quantificação da pena (RJTJRGS, 132/126 e 120/173). No homicídio culposo, em que a morte é involuntariamente causada pela inobservância a dever objetivo de cuidado, as conseqüências não devem influir (Celso Delmanto, Código Penal Comentado, p. 90).

 

As circunstâncias e as conseqüências, quando configuram agravantes ou causas de aumento, sob pena de bis in idem, não podem influir na dosimetria da pena-base.

 

Por fim, o juiz deverá examinar o comportamento da vítima. É uma das inovações introduzidas pela reforma de 1984 e que atende a postulados da vitimologia ou da denominada doutrina da vítima. Estudos da vitimologia demonstram que as vítimas podem ser colaboradoras do ato criminoso, chegando a se falar em vítimas natas. Lembra a Exposição de Motivos do CP, muitas vezes o comportamento da vítima se transforma em fator criminoso, através de uma provocação ou de outro estímulo à ação criminosa, como, e o exemplo consta da Exposição, o pouco recato da vítima nos crimes contra os costumes.

 

Assim, com base no exame dessas circunstâncias judiciais, o juiz escolherá a pena aplicável, quando forem alternativas, e fixará a quantidade necessária e suficiente à reprovação e prevenção do crime.

 

O Tribunal de Justiça do Estado tem decidido que o magistrado, dentro dos limites legais, tem um certo arbítrio para estabelecer a pena-base, não tendo qualquer obrigação em

fixá-la no mínimo legal (RJTJRGS 149/276), exceto quando todas as circunstâncias judiciais forem inteiramente favoráveis ao réu (RJT-JRGS 117/143).

 

Se alguma circunstância legal (art. 59) não for favorável, a pena-base deverá afastar-se do mínimo cominado. Deve a pena-base afastar-se do mínimo legal também quando as características pessoais do agente e os aspectos objetivos do fato são de molde a despertar maior reprovação ético-social (RJTJRGS, 143/75).

 

É da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado que o réu legalmente primário e reconhecida atenuante, a pena, em que pesem as demais circunstâncias previstas no art. 59, não pode ultrapassar a média entre o mí-nimo e o máximo cominado (RJTJRGS 132/174).

 

Fixada a pena-base, serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes (verifique em outro item deste Informativo a abordagem feita sobre a atenuante e a fixação da pena aquém do mínimo cominado). Dentre as agravantes, vale observar que a Lei 9.318/96, publicada no DOU de 6 de dezembro de 1996, acrescentou, no inc. II, alínea "h", do art. 61 do CP, a seguinte circunstância: mulher grávida.

 

Em uma terceira e derradeira fase, incidem as causas gerais e especiais de diminuição e de aumento. Quando são previstas em limites ou quantidades variáveis, devem ser calculadas pelas circunstâncias da própria causa de aumento ou diminuição, e não pelas circunstâncias do crime, pois estas devem funcionam no cálculo básico do apenamento (nesse sentido: Celso Delmanto, CP Comentado, p. 68; RJTJRGS, 150/186).

 

Não havendo atenuantes ou agravantes, causas de diminuição ou de aumento, a pena-base será a pena definitiva.

 

Depois disso, o juiz deverá estipular o regime inicial para o início do cumprimento da pena privativa de liberdade, e substituí-la, por multa ou pena restritiva de direitos, se a substituição for cabível.

 

Na pena de multa, o referencial preponderante, quanto à fixação do valor do dia-multa, é o da situação econômica do réu, conforme observa Damásio de Jesus (Código Penal Anotado, p. 144), mas a quantidade dos dias-multa deverá decorrer do exame das circunstâncias judiciais do art. 59 (Celso Delmanto, Códi-go Penal Comentado, p. 77; Julgados do TARGS 67/144). Se a pena privativa de liberdade foi fixada próxima do mínimo cominado, porque as circunstâncias judiciais assim determinaram, o número de dias-multa, que com estas deve guardar relação, não deve afastar-se do mínimo que a lei estabelece (dez dias-multa; art. 49 do CP).

 

Enfim, a individualização da pena, como garantia constitucional, não é arbitrária. Há uma certa elasticidade permitida ao juiz, mas isto não implica em discricionariedade desvinculada. Nos termos do art. 93, inciso IX da Carta Federal, todas as decisões judiciais devem ser motivadas (“A fixação da pena-base acima do mínimo legal exige fundamentação obrigatória, nos termos do art. 59, C.P, não bastando sua simples enunciação” - Habeas Corpus nº 3.274-8-DF, Rel. Min. Cid Flaquer Scartezzini, STJ, DJU, 08-05-95, p. 12399).

 

Além de motivada, nenhuma pena deve ser quantitativamente superior àquela necessária à reprovação e prevenção criminais, nem ser executada de forma mais aflitiva do que o exige a situação (Julgados do TARGS, 65/38), como não menos certo que nenhuma pena poderá ser inferior àquela necessária à reprovação e prevenção do crime, quantum a que se chega através da fiel observância das norteado-ras postas pela lei (art. 59); caso contrário, não será pena, mas caridade, e fazer Justiça não é o mesmo que fazer caridade".

 

Retirado de: http://www.maxpages.com/aula