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A "Politização da normalidade": um diagnóstico do sistema penal de suspeição.

 

José Luiz Solazzi

 


"O sentido dos conceitos de norma e de normal nas
ciências humanas, em sociologia, em etnologia, em
economia, leva as pesquisas que, quer se trate de tipos
sociais, de critérios de inadaptação ou grupo, das
necessidades e dos comportamentos de consumo, ou
de sistemas de preferência, se orientam, em última
análise, para o problema das relações entre
normalidade e generalidade."

GEORGES CANGUILHEM



JOSÉ LUIZ SOLAZZI



Este artigo analisa a relação entre a "politização da normalidade" e a política de prevenção sistêmica do delito, problematizando a procedência de sua constituição a partir do campo médico anátomo-patológico. Procurando evidenciar os fundamentos de uma ciência criminal positiva e o desenvolvimento de um controle penal que pressupõe a "naturalização" do fenômeno criminal através de um campo de suspeição criminal ilimitado que tem por princípio, no caso brasileiro, uma absolutização do direito onde a eficácia punitiva dá razão à aceitação e constituição político-formal de uma sociabilidade autoritária.


Podemos diagnosticar o estágio atual das teorias criminológicas como um estado de intervenção policial generalizado, onde o discurso penalista constrói uma potencialidade delitiva e uma percepção criminal que se volta à identificação de quaisquer indivíduos — imigrantes, pertencentes a minorias raciais ou marginalizados (Molina, 1997:319) — como sujeitos de uma política de prevenção. Esta se utiliza de uma arquitetura preventiva para instituir medidas de controle e vigilância absolutas sobre os que são considerados infratores potenciais, indivíduos sujeitos, prontos a violentar a ordem da sociedade e sua suscetibilidade, sua disposição para se ressentir com a mais cândida e feliz facilidade.


Emancipado, o controle criminal penal eleva à suspeição a cidadania de indivíduos livres de bens e trabalho, tornamo-nos, num primeiro instante, imigrantes, minorias raciais e marginalizados, substrato de uma produtividade política do delito que tem por fundamento uma política penal do controle social que viabiliza a constituição de um espaço político totalitário. Assim todos fomos transformados em sujeitos de suspeição criminal.


Mas de que maneira constituimo-nos em sujeitos desta suspeição totalitária? Que espécies de mediações disciplinares nos transmutaram de indivíduos livres em sujeitos da suspeição?




1. A "POLITIZAÇÃO DA NORMALIDADE"






Para compreendermos a "politização da normalidade" não podemos esperar encontrar uma história da verdade transcendental e da emancipação gradual, conseqüente e genérica dos homens através de uma construção finalista da verdade. Ao estudar a absolutização do direito, podemos entender a instituição do controle penal problematizando as positividades atribuídas às normas penais.


A hipótese da "politização da normalidade" permite que compreendamos a passagem do positivismo biológico, característico da escola penal antropológica, para um sistema legal de prevenção social que inicialmente tem como sujeitos os imigrantes, as minorias raciais, os marginalizados e que na sua intransigência alcança toda a sociedade.


Conforme nos demonstra Foucault (1994), o discurso de estrutura científica e sua linguagem de racionalidade fazem do fato patológico um "acontecimento singular", através da experiência clínica. O fato patológico individual liberaliza, ao olhar médico, a "percepção da doença no doente" que tem por fundamento e motivo a sua debilidade física.


Podemos fazer um paralelo entre a experiência clínica e o positivismo biológico característico da escola criminal antropológica. O sujeito criminoso é um indivíduo doente; por ser doente tem determinadas características criminólogicas que podem ser discriminadas e analisadas num discurso médico-legal que evidencia sobre o corpo sujeitado as marcas presentes de sua debilidade. Seu presente doentio e delitivo é a senha de acesso a novas marcas sobre o seu corpo para um nova sujeição. É portanto sobre o corpo doente que se vai impor a sujeição legítima da caracterização criminológica, da eficácia persecutória, do rigor e da severidade penais. Tudo conforme a prescrição e cominação legais, justos critérios institucionais da apropriação pública dos corpos conspiradores, e consoante os princípios de violência legítima da atuação sobre o corpo deste sujeito livre, responsável moral e penal pela sua escolha delinqüente.


Sobre as descontinuidades criminais e penais, no que se refere à responsabilidade dos sujeitos que, da escola penal clássica ao determinismo patológico da escola positiva antropológica, relativizou no indivíduo delinqüente a sua restrita, mas profunda responsabilidade moral e penal pela livre escolha delitiva que se fundamenta num determinismo patológico; constatamos que para a interpretação do novo estatuto do delito por meio de uma "responsabilização ecológica", social, é necessário perceber que as ciências médicas passaram para um novo tipo de totalização das patologias num curto espaço de tempo. Totalização que deixou de se ater às identidades sintomáticas, ao registro das freqüências clínicas, à essência e às classes das doenças, e passou a demarcar uma "análise de tabuleiro" (Foucault, 1994) que se atinha à localização, foco e primitividade epidêmicas, fixando um ponto de partida espacial percebendo a constância local das doenças e sua sede, deixando de lado a busca de uma essência metafísica para encontrar a sede das doenças a partir de uma ciência positiva do contágio.


Assim, podemos relacionar a "gênese social do delito" (Mezger, s/d) às medidas gerais de natureza político-social, quando a prevenção das epidemias delituosas recusa um caráter meramente individual-doentio-psicológico da criminalidade para assumir seu conteúdo e responsabilidade sociais. Esta nova "codificação" do acontecimento penal, não mais como fato patológico individual, permite a constituição de um sistema legal de responsabilização socializante.


A constituição de um sistema legal permite a formação de uma "ecologia delitiva" que tem por interesse e objetivo uma intervenção seletiva sobre a sociedade como um todo. Associamos uma reação penalista às ações de um doente criminoso, à positividade das normas morais sociais gerais que intenta a eficácia moral da pena, através de uma mecânica intimidatória que age sobre o conjunto de cidadãos (quase) delinqüentes.


O sistema legal prevenido abrange agora toda a sociedade e não mais seus párias, sejam eles indivíduos loucos ou um conjunto disforme, mas localizável, de marginalizados. Prescreve-se não mais ao indivíduo patológico uma pena posterior, mas a todo o conjunto, uma prevenção social em que as prescrições morais criminais instituem uma produtividade política do delito; ilumina-se a efetividade, o rendimento e os custos da dissuasão. Temos pois uma nova "codificação" político-criminal que, sistêmica, utiliza, agencia e processa instrumentos não-penais, como o espaço físico, a formação urbana e o "cenário (social) criminal" (Scheerer), estabelecendo, a partir da sociologização criminológica, uma economia da prevenção social.


Ferri e a Sociologia Criminal Positiva pode nos servir de exemplo da passagem e da constituição histórica deste novo estatuto social do delito: "(..) a escola criminal positiva não consiste unicamente, como parecia cômodo crer a muitos críticos, no estudo antropológico do homem criminal; constitui uma renovação completa, uma mudança radical de método científico no estudo da patologia social criminal, e do que existe de mais eficaz entre os remédios sociais e jurídicos que temos. A ciência dos delitos e das penas era uma exposição doutrinária de silogismos, iluminados pela força exclusiva da fantasia lógica; nossa escola fez disso uma ciência de observação positiva, que fundada na antropologia, na psicologia e na estatística criminal, assim como sobre o direito penal e os estudos penitenciários, chega a ser a ciência sintética que chamei de ‘sociologia criminal’. E, assim, esta ciência aplicando o método positivo ao estudo do delito, do delinqüente e do meio, não faz outra coisa que levar à ciência criminal clássica, o sopro vivificador das últimas e irrefutáveis conquistas feitas pela ciência do homem e da sociedade, inovada pelas teorias evolucionistas" (Ferri, s/d : 43-44).




2. A POLÍTICA DA PREVENÇÃO




A sociologização do fenômeno delitivo supera a idéia da anormalidade delinqüente, e a lógica criminal prevenida supera a esfera penal repressiva, ao mesmo tempo que a dissemina. Consoante Ferri (1996), a multiplicação da riqueza e das trocas acelera a atividade econômica e dá razão à ampliação da extensão material e da instituição penal-legislativa de novas formas de delito, o que implica uma maior criminalidade que, para ser combatida, justifica um crescente aparato administrativo policial e jurisdicional.


A política de prevenção estabelece um duplo desenvolvimento de ampliação da matéria penal e do corpo administrativo e jurisdicional, já que a produção crescente de riquezas e as atividades sociais emergentes criam novas formas de criminalidade real, isto é, novos "delitos" são cometidos, portanto o sistema legal carece de uma política penal inclusiva e de uma política de prevenção crescente que implemente mais perseguições, aprisionamentos, sentenças e condenações. A criminalidade real impulsiona a criminalidade legal, aquela julgada nos tribunais, dá-lhe razão e sentido; esta passa a contar com um inimigo interno necessário e justificador do corpo administrativo-jurisdicional penal, se incrementa e se perpetua através da instituição legal e de novas formas delitivas; logo, vincula sua existência ao desenvolvimento econômico, a novas criações penais e a necessidade de defesa social.


Sua conservação e seu desenvolvimento têm de contar com o incremento econômico e, conseqüentemente, com as novas formas de delinqüência e delinqüentes inventados pelo sistema legislador, pois sua existência e legitimidade são relacionais.


Podemos agora entender porque a recente criminologia ibérica vai normalizar e naturalizar o fenômeno e não é de estranhar o apoio incontido que lhes dá nossos magistrados, com traduções atuais e artigos complementares. Vejamos: "é o homem real e histórico do nosso tempo que pode acatar as leis ou não cumpri-las (...); um ser enigmático complexo, torpe ou genial, herói ou miserável, porém mais um homem como qualquer outro. Dificilmente cabe afirmar hoje que só um ser patológico pode atrever-se a violar as leis, pois a experiência diária

— e as estatísticas — constata o contrário: os indivíduos ‘normais’ são os que cada vez mais delinqüem. A criminalidade econômico-financeira, a de funcionários e profissionais, a juvenil, a de tráfico, dentre outras, confirmam esta evidência. Outra coisa não significa, também, o postulado da normalidade do delito (...): toda sociedade (...) produz uma taxa inevitável de crime. O comportamento delitivo é, portanto, uma resposta previsível, típica, esperada: normal. Parece muito difícil conseguir um diagnóstico científico do problema criminal — um diagnóstico, portanto, objetivo, sereno, desapaixonado — e desenhar uma política criminal eqüânime e eficaz se não se admite a normalidade do fenômeno delitivo, assim como de seus protagonistas" (Molina, 1997: 64-65).


Haveria um outro fundamento para esta análise da sociabilidade terrorista, onde todos são passíveis de cometer crimes. Estariam aí incluídos na suspeição socializada o corpo da Magistratura, pois se a todos é possível cometer delitos, quem os julgará? Alguém que deseja, mas ainda não os realizou ou alguém que vivencia um interregno delitivo?




3. A ABSOLUTIZAÇÃO DO DIREITO BRASILEIRO




Se a lógica criminal está vinculada ao crescimento e ao desenvolvimento sociais, à desenvoltura delinqüencial e às respostas institucionais penais temos um vínculo legitimador da existência política do sistema jurisdicional penal e do seu aparelho administrativo auxiliar, dos seus conselheiros, professores e especialistas. Senão como entenderíamos o discurso do avanço da política criminal, onde haveria um desenvolvimento gradual, lento e progressivo, mas constante em direção a uma nova "disciplina moralizadora" (Batochio, 1996)?


Segundo o ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), apoiado nas idéias de Jescheck, a política criminal tem buscado um novo direito através de um desenvolvimento penal. Este se evidencia pela passagem das penas contra a vida e das penas aflitivas para as penas privativas de liberdade, que se inauguraram em Rasphius, em 1595.


Mas constatado, segundo Batochio, o seu exaurimento, especialmente no que se refere à privação da liberdade de curta duração, devemos repensar a pena privativa de liberdade através da adoção das penas pecuniárias que devem ser privilegiadas quando da ocorrência de delitos de menor potencial delitivo. Curiosamente, o ex-presidente da OAB assinala algumas providências acessórias que podem ser tomadas a partir da experiência americana. Cita, entre oito medidas, o encarceramento de choque, aprisionamento em curtos períodos de indivíduos e sua obrigação de realizar "duros exercícios diários", como por exemplo trabalhos, exercícios físicos e atividades comunitárias e culturais; e a vigilância eletrônica, um aparelho em que o portador faz contato, sempre que necessário, com o "serviço oficial de controle".


Por outro lado, o direito brasileiro, democrática e representativamente, vem elaborando um conjunto de normas jurídicas que tem sido nomeadas como "terrorismo repressivo" (Ivan Carvalho, 1997) e "Direito Penal do Terror" (René Ariel Dotti, apud Molina, 1997).


Trata-se da Lei dos Crimes Hediondos, Lei nº 8072, de 25 de julho de 1990, que no artigo 2º, §1º, assevera: "a pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado". Dispositivo de lei ordinária expressamente contrário à Constituição Federal, no título "DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS", no capítulo "DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS E COLETIVOS", artigo 5º, XLVI: "a lei regulará a individualização da pena"; e à Lei de Execuções Penais, que determina no título "DA EXECUÇÃO DAS PENAS EM ESPÉCIE", na seção II – "DOS REGIMES", artigo 110: "o juiz, na sentença, estabelecerá o regime no qual o condenado irá iniciar o cumprimento da pena privativa de liberdade". E o Código Penal, artigo 33, § 2º: "as penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva". Temos, também, a Lei de Combate ao Crime Organizado, Lei nº 9034, de 3 de maio de 1995, que proíbe a concessão de liberdade provisória com ou sem fiança, quando da intensa e efetiva participação em organizações criminosas, no artigo 7º: "não será concedida liberdade provisória, com ou sem fiança, aos agentes que tenham tido intensa e efetiva participação em organização criminosa". Como também é o caso da Lei nº 7653, que os crimes ecológicos previstos na Lei de Proteção à Fauna são inafiançáveis, artigo 34: "os crimes previstos nesta Lei são inafiançáveis." Caso também da Lei nº 8137, de 27 de novembro de 1990, artigo 2º, III, que pune com pena de detenção: "(aquele) que deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos."


Artigo que afronta diretamente a Constituição Federal que claramente privilegia a liberdade frente à propriedade, ao estabelecer que as únicas formas de prisão civil por dívidas são a não prestação de alimentos e a não restituição de depósito. Portanto a imposição de prisão como pena criminal, no caso de omissão de recolhimento de impostos e contribuições, não tem base constitucional.


Todas essas legislações absolutistas se esquecem do direito constitucional da liberdade, não se lembram, por interesse jurídico-político aprisionador, que a fiança é um direito subjetivo do acusado, instituto jurídico que Dom Diniz, em 1356, dom Pedro I, em 1360 e as Ordenações Filipinas já colocavam em nossa tradição jurídica estatal. Não há que se imaginar, portanto, a idéia da impossibilidade da prestação de fiança, prerrogativa institucional da liberdade sobre o aprisionamento.


Ainda mais quando a Lei nº 7780/89, conforme assinala Prado (1996), arbitra o valor da fiança entre 20 e 100 salários mínimos de referência, no caso de crimes em que "o máximo da pena cominada for superior a quatro anos."


Portanto, conforme Rosa (1996), a idéia de crimes inafiançáveis não possui fundamento legal, porque todo fato delituoso permite a fixação de fiança, a não ser nos casos em que existam motivos para o estabelecimento da prisão preventiva, como é o caso, por exemplo, de crimes dolosos punidos com privação da liberdade e de sujeitos reincidentes.


Vivemos no Brasil um duplo processo de "naturalização" do fenômeno penal e de constituição de um campo de prevenção criminal absoluto. Processo que tem por princípio a absolutização do direito e a violação pura e simples da lei constitucional que estabelece direitos individuais e sociais fundamentais, tudo em nome da eficácia punitiva, cuja aceitação caracteriza uma sociedade do ressentimento que, em nome de uma pretensa segurança e de uma paz falaciosa, permite a constituição de um sistema político-formal que tem por fundamento e objetivo uma sociabilidade terrorista.




JOSÉ LUIZ SOLAZZI é Pesquisador do Centro de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - Núcleo de Sociabilidade Libertária - da PUC-SP., Mestre em Ciências Sociais – PUC-SP . Doutorando em Ciências Sociais no Programa de Pós-Graduação da PUC-SP com a Pesquisa: Teoria e Pesquisa do Caráter - Uma Análise dos Fundamentos Estéticos e Criminológicos


Bibliografia


Batochio, José Roberto. Formas Alternativas de Pena Criminal, São Paulo, Revista dos Tribunais 722, 1996.

Canguilhem, Georges. O Normal e O Patológico, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1995.

Ferri, Enrico. Sociologia Criminal, 2 vols., Gongora, Madrid, s/d.

Foucault, Michel. O Nascimento da Clínica, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1994.

Mezger, Edmundo. Criminología, Editorial Revista de Derecho Privado, Madrid, s/d.

Molina, Antonio García-Pablos de & Gomes, Luís Flávio. Ciminologia – Introdução a Seus Fundamentos, São

Paulo, 1997.

Prado, Luís Régis. Multa Substitutiva – Medida de Política Criminal Alternativa, Revista dos Tribunais 722,

1996.

Rosa, Antonio José: Da Fiança, Revista dos Tribunais 722, 1996.

José Luiz Solazzi. Mestre em Ciências Sociais PUC-SP. Doutorando em Ciências Sociais.  

Disponível em < http://www.direitopenal.adv.br/artigos.asp?pagina=1&id=81>