®BuscaLegis.ccj.ufsc.br 

Aborto legal em mulher doente mental.

Osvaldo Oliveira Araújo Firmo


"A nenhuma mulher darei substância abortiva" (Hipócrates).

"Jerôme Lejeune, o famoso descobridor da síndrome de Down, participou certa vez de um debate, pela televisão, com um médico abortista, Monod, e, a tantas, lhe fez esta indagação: ''Sabendo-se que um pai sifilítico e uma mãe tuberculosa tiveram quatro filhos: o primeiro, cego de nascença; o segundo, morto logo após o parto; o terceiro, surdo-mudo; o quarto, tuberculoso. A mãe ficou grávida de um quinto filho. Que fazer?'' Respondeu-lhe Monod: ''Eu interromperia essa gestação''. A isso, concluiu Lejeune: ''O senhor teria matado Beethoven''".

Propomo-nos no presente ensaio a uma reflexão acerca do procedimento jurídico diante de uma situação fática, de cunho pois fenomênico, muito possível e encontrável nos meios forenses, quando se constata da necessidade de se efetivar um aborto em mulher/gestante portadora de deficiência mental (ou nessa condição alegada).

Partimos de uma hipótese na qual a mulher grávida é portadora de doença mental, e apesar de ser maior, não se encontra ainda interditada.

A matéria em estudo dirá respeito, então, a pedido de autorização judicial para efetivar-se o aborto em mulher dita incapaz (incapacidade adquirida ou genética), e que nessa condição teria sido estuprada, advindo-lhe conseqüente gravidez inaceitável. Importa ressaltar que o conteúdo da inicial deve demonstrar o interesse no aborto não por razões de eugenesia, mas tão só em virtude do estupro de que foi vítima a gestante. Também, que a espécie não comporta a nomeação de um curator ventri, figura existente como só um eco quase inaudível do direito romano. É caso, pois, de aborto moral, ético, humanitário ou sentimental, assim saudado pelo Prof. HÉLIO GOMES:



"É uma feliz a inovação do código Penal em vigor. A mulher, vítima de um estupro, pode engravidar. É uma gravidez acintosa, humilhante, produto de um crime monstruoso. Todo seu organismo, todo seu sentimento, toda sua alma se revoltam em se ver grávida de um bruto, que a violentou. Essa gravidez cria um verdadeiro estado de humilhação crônica, de indignação, de inconformismo, agravado ainda mais se o estuprador é de raça e cor diferentes das da vítima. A lei fez bem em autorizar o aborto nesses casos. (...).

Do mesmo modo a vítima do estupro (mormente nos casos de violência presumida) é, não raro, oligofrênica, doente mental, não havendo vantagem em que semelhante criatura tenha filhos" (destaque no original).

O tema certamente desafia discussões intermináveis, sobretudo no campo psíquico, ético, moral e religioso, aos quais o direito não olvidará. A matéria tem sido considerada como pertinente a um dos mais novos ramos da Ciência Jurídica, o Biodireito, disciplina vinculada a "um novo espírito de preocupação pelo Homem e pela sua dignidade, a que os próprios exageros da ideologia dos Direitos Humanos beneficamente conduziram também", como pontifica o lusitano PAULO FERREIRA DA CUNHA.. Entretanto, no presente ensaio não cabe esta profundidade.

O cerne do problema está numa gravidez completamente indesejada, e menos ainda esperada, face à condição de absoluta incapacidade mental da gestante. O que para muitos é motivo de festa, como mesmo a humanidade comemora há quase dois mil anos sob o tópico de "Natal", neste caso sub examem causa repulsa na gestante e na família. Como pontifica HUNGRIA, "nada justifica que se obrigue a mulher estuprada a aceitar uma maternidade odiosa, que dê vida a um ser que lhe recordará perpetuamente o horrível episódio da violência sofrida"

O requerimento do pedido de autorização para o aborto sempre é uma solução a se apresentar viável para o advogado, e este profissional normalmente encaminha o pedido a uma vara criminal (onde existem as varas especializadas), aviando o requerimento de "alvará" a fim de se submeter - a mãe - ao aborto, nos termos do art. 128, I e II do C.P.B.. Estará provada, naturalmente, a condição da gravidez, bem como a de insanidade da mãe. Também, logo na inicial o responsável por esta mãe já se apresentará candidato a ser curador dela.

Mas indo ter os autos em vara criminal, certamente o MM. Juiz declinará da honrosa competência, mandando o feito à redistribuição a uma vara cível. De fato, o pedido refoge à competência das varas criminais - ou do juízo criminal -, posto não aviar discussão de um crime ou a apuração de uma conduta criminosa, mas tão só objetiva-se autorização - prevista em lei -, para se executar uma conduta típica excepcionalizada pela lei penal.

A princípio, data venia, observo ponto a desafiar atenção primeira e imediata: não tenho seja próprio o pedido de alvará, a despeito de entendimento contrário, pois em momento algum diz a lei deverá o aborto ser autorizado, mesmo porque a conduta é daquelas típicas, e assim capitulada pelo art. 125 do C.P.B.. Então, sendo fato típico, não condiz com autorização legal. Poderá, no entanto, ser contemplado como uma descriminante, ou chamadas causas de justificação, excludentes de criminalidade, de antijuridicidade, de culpabilidade, de punibilidade ou de ilicitude, e até mesmo como estado de necessidade e escusa absolutória, tudo visando a justificar os casos de aborto legal (fato lícito). Pelo menos este é o direito posto, hic et nunc.

A matéria, sob a particular ótica da autorização judicial não é nova enquanto preocupação dos estudiosos. De há muito, JIMÉNES DE ASUÁ, notável professor da Universidade de Madri, juntamente com ÁLVAREZ GARCIA PRIETO, ainda na primeira metade deste século, na década dos anos vinte, debateram a questão do chamado aborto por móbil sentimental, ou, como pregavam WACHTEL, MÁRIO CARRARA E FERNÁNDEZ DÁVILA, "aborto por causas sociais", no específico aspecto de sua regulamentação. Narra-nos o clássico JUMÉNES DE ASUÁ, sobre seu posicionamento, corporificado numa tese apresentada no III Congresso Científico Pan-americano, realizado em Lima, no Peru, entre dezembro de 1924 e janeiro de 1925:

"Chegávamos, pois, Álvarez Garcia Prieto e eu à conclusão de que nesses excepcionais casos, repassados de motivos de sensibilidade, pode ficar impune o aborto; mas os dois pensávamos que era uma monstruosidade jurídica ampliá-lo a todas as situações de violação. Que causas sentimentais, de repugnância ao concebido, podem desculpar o aborto da jovem violada pelo seu noivo, da camponesa forçada pelo jornaleiro ou da criada violada pelo patrão?

Já em via de tocar, de aceitar a impunidade do aborto para certos e extraordinários casos, chegava-se ao mais espinhoso problema de formular legalmente a conclusão aceita.

O primeiro recurso, que me pareceu praticável, foi adotar um artigo casuístico em que se expressassem, de modo explícito, esses excepcionais estados em que a mulher pode recorrer a práticas abortivas. Mas o caminho estava fechado por uma convicção: que os códigos casuísticos são inúteis e injustos, pela impossibilidade de encerrar nos estreitos moldes de uma lei a infinita variedade de situações que a vida nos pode apresentar.

Recorri, pois, a outros caminhos e seduziu-me imediatamente a norma que o projeto alemão segue em outros e muitos casos de fatos delitivos, dignos de perdão: facultar ao juiz que pudesse perdoar a mulher, que em casos excepcionais recorresse ao aborto. Importantíssimas razões obrigam a deixar este caminho, tão correto em outros casos. O aborto que a grávida pretenda, deve ser praticado por um médico para que assim os riscos de infecção e fatal desenlace fiquem reduzidos ao mínimo. Mas que médico se prestaria? A mulher, nas suas implorações, não poderia oferecer ao médico mais do que a probabilidade de um perdão, que o juiz teria entre suas mãos. Com juízo certeiro, alega Álvarez Garcia Pietro, nas últimas páginas de seu acabado estudo, que quanto mais entendido e afamado fosse o médico tanto menos propício estaria a arriscar-se nesta aventura, possivelmente delitiva. Seguir este sistema seria tanto como forçar a mulher a praticar em si mesma o aborto, enganada pela esperança do perdão e repelida pelo médico no seu pedido.

Eis porque chegamos Álvarez Garcia Pietro e eu, nas nossa discussões, a uma solução que nos pareceu lisonjeira. O caminho que nos decidimos a empreender estava assinalado antes por autores suíços, como Forster, Muret, Forel e Veillard. Este sistema consiste na autorização ''a priori'' do aborto pelo juiz.

A mulher violada, que se sinta vítima de invencíveis repugnâncias contra o ser concebido, recorrerá ao magistrado que, em vista dos fatos e das circunstâncias, autorizará a prática do aborto, com a condição de ser executado por um médico de responsabilidade moral e científica."

No Brasil, a matéria chegou a ser sistematizada em dispositivo de lei, a partir do anteprojeto do Código Penal do Ministro NELSON HUNGRIA, tornado Código Penal Brasileiro, aprovado pelo Decreto-lei n.º 1.004, de 21.10.69, e posteriormente revogado pela Lei n.º 6.578, de 11.10.78. No Código Penal de 1969, "no art. 126 era previsto o abortamento praticado sem consentimento da gestante, contra sua vontade ou com consentimento inválido. O Anteprojeto Hungria, na figura correspondente contida no art. 123, fala em gestante ''alienada ou débil mental''. No Código de 1969, tais expressões eram modificadas para gestante ''doente ou deficiente mental''. Dava-se maior elasticidade ao tipo, pois nem todo doente mental é necessariamente alienado". No anteprojeto o aborto praticado por médico em mulher estuprada é contemplado sob o art. 127, II e seu parágrafo, como a seguir:

Art. 127 - "Não constitui crime o aborto praticado por médico:

I - ...........................................................................................

II - ..........................................................................................

Parágrafo único - No caso do número II deve anteceder o consentimento da vítima ou, quando esta é incapaz, de seu representante legal, bem como decisão judicial reconhecendo, em face das provas, a existência do crime."

É de se observar que o parágrafo único reproduz o disposto no art. 128, II do C.P.B. vigente, acrescido tão só da exigência de decisão judicial, o que por si só desafiaria repensar-se sobre a lentidão do andamento dos processos judiciais. Mas o art. 130 do Código Penal de 1969 acabou regulando a matéria, com a seguinte redação de seu parágrafo único:

"No caso do número I, deve preceder, sempre que possível, a confirmação ou concordância de outro médico e, no caso do n.º II, deve anteceder ao consentimento da vítima ou, quando esta é incapaz, de seu representante legal, desde que comprovada a existência de crime".

PAULO SÉRGIO LEITE FERNANDES, diante da divergência perorou:

"Vê-se que o Código Penal de 1969 refletia unicamente a preocupação de se comprovar a realidade do ilícito penal. Como prová-la, a não ser através da sentença? A questão, portanto, continuará em aberto. Olavo de Oliveira já reclamava em 1959: ''Quando e como pode e deve o médico efetuar o aborto? Se fosse após o processo, o tempo exigido seria superior ao da gestação. Tornar a vítima o único juiz da operação, é abrir uma fonte de ominosas levezas e seguras impunidade para muitos abortos".

A lei vigente, entretanto, como estampada no art. 128, I e II, do C.P.B., não prevê para tal caso seja necessária autorização judicial, mas tão somente, se detectado o estupro, haja autorização da vítima (estuprada) ou de seu representante legal, caso seja juridicamente incapaz. Em nossa legislação penal, como a polonesa, iugoslava, mexicana, suíça, alemã, espanhola e outras, dá o permissivo de maneira explícita, ao descriminalizar a conduta do médico e da gestante (art. 128, II do C.P.), entendida por FRAGOSO como "exclusão de antijuridicidade da ação";, ou, porque a violência e estupidez da fecundação justificam a prática do aborto, e tais características ensejam o reconhecimento de um "estado de necessidade", como assinala MANZINI (vol. VII, pág. 536); ou, ainda, dizer-se como causa de "exclusão de ilicitude", no dizer de GERALDO BATISTA DE SIQUEIRA. Já para o eminente jusfilósofo, e magistrado que honra o TACRIM-SP, em seu artigo "Uma questão biojurídica atual: a autorização judicial de aborto eugenésico - alvará para matar", "está a cuidar-se das chamadas escusas absolutórias, causa que, excluindo a pena, deixam de subsistir, contudo, o caráter delitivo do ato a que ela se relaciona", posição consoante a de WALTER MORAIS, para quem "no caso do art. 128, a lei não declara excluída a punibilidade ou não punível o crime, como precisamente fez quanto à injúria ou difamação em juízo ou ainda quanto ao furto de coisa comum no valor da quota do agente (art. 156, § 2.º). Quanto ao aborto, a lei diz ''não se pune''. Suprime a pena. Fica o crime. Mais: ainda que se entendesse este ''não se pune'' como excludente de punibilidade, estaria a regra a excluir a ameaça de pena (o crime); subsistiria o delito". DAMÁSIO, por sua vez, lecionando sobre as figuras típicas permissivas do aborto, contempladas pelos dois incisos do art. 128 do C.P.B., afirma que "a disposição não contém causas de exclusão de culpabilidade, nem escusas absolutórias ou causa extintivas de punibilidade. Os dois incisos do art. 128 contêm causas de exclusão de antijuridicidade. Note-se que o CP diz que ''não se pune o aborto''. Fato impunível em matéria penal, é fato lícito. Assim, na hipótese de incidência de um dos casos do art. 128, não há crime de exclusão de ilicitude".

Digna de registro, quer pela propriedade de suas idéias, quer pela erudição no trato da matéria, o ensinamento de MARQUES DIP, ao discutir sobre o estado de necessidade, por alguns usado em argumento a dar supedâneo ao aborto sentimental (em virtude de estupro). Funda-se o douto em que o estado de necessidade é de direito natural, afastando por isso, de imediato, a aplicação da lei positiva. Entretanto, pondera o culto mestre, "é de todo manifesto que a superioridade da vida - ainda a do feto -, como bem jurídico, não autoriza possa concluir-se que a imposição de seu sacrifício em proveito de bem jurídico inferior (a honra da mãe ou seu mais satisfatório equilíbrio mental) caracterize um possível estado de necessidade", para concluir que a se praticar o aborto no intuito de se apagar os reflexos de um estupro, está-se, para evitar um mal menor, causando um malefício mais grave que o evitado.

Em posição extrema, quando propôs a supressão do dispositivo legal autorizativo do aborto no Brasil, durante o 4.º Congresso Brasileiro de Medicina Legal e Criminologia, realizado em Belo Horizonte, em 1961, o saudoso Prof. LYDIO MACHADO BANDEIRA DE MELLO, da UFMG (Faculdade de Direito e outras), argumentou:

"a) - A permissão legal não é, na sua essência, o reconhecimento legal de justificativa, descriminante ou causa de exclusão de criminalidade;


- Tratar-se-ia de concessão resultante da decretação de impunidade movida por interesses utilitários e egoístas;


- A prática de aborto para eliminar feto resultante de estupro não é ato de legítima defesa, pois o feto não ;e agressor injusto de sua mãe; não é caso de estado de necessidade. Este se dá quando um mal menor é praticado para impedir mal maior; não se trata, por outro lado, quer do cumprimento de dever legal quer do exercício regular do direito".

E na mesma linha do mestre mineiro, FLAMÍNIO FÁVERO, na "Tribuna da Justiça", de 29.04.63, comentava:

"Impossível aplaudir o abortamento que não visava a salvar de morte iminente a mulher grávida, mas apenas a eliminar o inocente e inofensivo nascituro, que não podia ser punido, tão drasticamente pelo crime paterno".

O Prof. GERALDO BATISTA DE SIQUEIRA, Procurador de Justiça do Estado de Goiás, bem elucidou a questão no artigo intitulado "Aborto humanitário: autorização judicial", concluindo pela desnecessidade de autorização judicial, posto não ser causa obstativa da persecução penal contra o médico, a gestante, ou, se esta for incapaz, de seu representante legal; vale dizer, para que a conduta do médico autorizado (pela gestante ou seu representante legal) a fazer o aborto em estuprada não requer autorização judicial para ser considerada lícita. De sua lição destaco:

"O aborto necessário, provocado por médico para salvar a vida da gestante, à mingua de outro recurso, não suscita, na doutrina nem na jurisprudência, qualquer indagação a respeito da necessidade de consentimento ou autorização de alguém para sua realização. A problemática suscitada por esse requisito prévio, necessário ou não o aperfeiçoamento do tipo permissivo, surge, apenas, a partir do aborto realizado para a interrupção da gravidez, resultante de estupro.

(...)

O médico que atende a mulher, quando a gravidez é resultante de Estupro, Atentado violento ao Pudor, Posse Sexual Mediante Fraude (os dois últimos tipos pela aplicação da analogia) pratica comportamento típico, mas conforme o direito, quando provoca o aborto com o consentimento da gestante ou de seu representante legal.

Como se depreende dos textos legais transcritos, referentes aos casos de aborto permitido, condição prévia que aparece é a que provém do consentimento da gestante ou de seu representante legal, quando incapaz, a mesma, de consentir.

A autorização judicial, cuja exigência a imprensa nacional tem emprestado tanto destaque nos mais variados recantos do País é figura absolutamente alheia, estranha aos requisitos de tipicidade especial, insculpidos na moldura da norma descrita no art. 128, I e II do CP.

(...)

Encerrando o tópico, a conclusão pela inexistência de autorização judicial decorre de texto explícito, indicando como pressuposto do aborto legal, apenas o consentimento da gestante ou de seu representante legal.

É questão de tipicidade, expressa com a necessária rigidez redacional. A tipicidade da licitude excepcional prescinde de qualquer ato que não seja o consentimento da gestante ou de seu representante legal" (destaques nosso).,

Com a mesma posição o Des. WALTER MORAES, entendendo inexistir no direito brasileiro hipótese alguma de aborto legítimo, diante da proteção que a lei civil dá ao nascituro, posição expressa em sua conferência denominada "O problema de autorização judicial para o aborto", realizada no II Simpósio Nacional de Direito Natural, em 23.11.85, no Centro de Estudos de Extensão Universitária, São Paulo, capital. Em seu pontificado aduz:

"Em caso de cometimento de crime com circunstância excludente da punibilidade ou da própria criminalidade, cometido o fato, apura-se depois a excludente, e não tem cabimento ir o agente a um juiz requerer licença para o fato".

(...)

"Nenhum juiz está autorizado a permitir o cometimento de um crime (não importa que eximido de pena), ou, mesmo não sendo crime, de um ato ilícito, de uma ação contrária à lei".

LYCURGO DE CASTRO SANTOS, Promotor de Justiça e doutorando em Direito Penal na Universidade de Complutense de Madri, em criterioso estudo denominado "Direito Penal e aborto", afirma, sobre as soluções adotadas pelo legislador pátrio para os casos de aborto legal:

"Existem dois tipos de soluções aceitas em doutrina com o fito de se legitimar a interrupção da gravidez: a solução das indicações e a solução dos prazos.

A solução das indicações trata de descrever as circunstâncias, segundo as quais a interrupção da gravidez com a conseqüente expulsão do feto possa ser considerada indicada desde um ponto de vista jurídico penal.

(...)

Nosso legislador optou pela solução das indicações. No art. 128, I e II do CP, estabeleceu, respectivamente, o aborto necessário e o aborto sentimental ou ético.

Em ambos os casos há a exclusão da antijuridicidade no comportamento da gestante e do agente que nela provoca o aborto: seria inadmissível uma co-autoria ou participação em comportamento que não se reveste de ilicitude.

A legislação pátria, ao contrário de outros países, não exigiu qualquer formalidade para reconhecimento da eximente, v.g., a autorização do poder judiciário, ou a prática do aborto em centros credenciados, senão que seja praticado por médico. Tampouco exigiu expressamente para os casos do aborto necessário o consentimento da mulher grávida.

(...)

Por outro lado, no n. II do art. 128 do CP, referente ao aborto ético, o legislador exigiu expressamente, o consentimento da gestante, ou, sendo incapaz, de seu representante legal. O agente que provoca o aborto sem essa condição, incide nas penas estabelecidas no art. 125 do CP."

No mesmo sentido colhe-se da jurisprudência:

"Apelação criminal. Conhecimento. Pedido de autorização judicial para realização de aborto ético, humanitário ou sentimental. Não se conhece, do pedido, uma vez que é desnecessária autorização judicial para que o médico o pratique. Cabe aos médicos decidirem, de acordo com as condições reguladas pelo conselho de medicina, tendo em vista o art. 128 do Código Penal."

E mais, a se acompanhar o entendimento dos que insistem no pedido do alvará da morte, pretendendo autorização ou licença para interrupção da vida humana intra-uterina, o feticídio, corre-se o risco de caminharmos no sentido do oportuno escólio de MARQUES DIP:

"Fica-se, porém, a imaginar admitida a prática dessas autorizações, se não se estará afirmando, de caminho, equivalente possibilidade de autorização de não importa quais crimes. Hoje, o aborto; amanhã, o da eutanásia; no futuro, o do furto, o do roubo, o das violações etc."

De tudo, de se ver impertinente a imissão institucional do Juiz no debate sobre ser ou não justo ou correto o aborto, na área cível, que é a competente para os casos de "alvarás", pois completamente fora de sua competência jurisdicional dizer sobre isso, ou, como pontifica GERALDO BATISTA DE SIQUEIRA, "dada a incompatibilidade de atuação jurisdicional do Estado".

O alvará é, pois, despiciendo, data venia, e insistir no pedido nesses moldes é ensejar subssumi-lo à hipótese da impossibilidade jurídica do pedido, desafiando a pronta extinção do feito, imediatamente, e sem afetação do mérito.

Além, importa ainda chamar à colação, para argumentar, o respeitável posicionamento dos que entendem a incompossibilidade de permissão judicial de interrupção da gravidez, seja adquirida pela mulher por meio voluntário ou não, com o disposto no art. 5.º, caput, da Constituição Federal vigente, consagrador da inviolabilidade do direito à vida. Também, porque em verdade os incisos I e II do art. 128, do C.P.B. apenas deixam de punir o aborto praticado por médico se a gravidez resultar de estupro.

Surge, então, o momento de perplexidade do profissional do direito que eventualmente tenha em sua mãos o caso para resolver: mulher deficiente mental, maior e grávida. O procedimento correto será, pois, após oitiva de testemunhas e laudos médicos, declarar-se a incapacidade incidenter tantum da mulher/gestante, nomeando-lhe desde já bastante curador. Também de bom alvitre seja determinado o exame pericial (neurológico e ginecológico/obstétrico), com devida quesitação. De todo o processado participará, necessariamente, o Ministério Público.

Com essas considerações, e genuflexo ao princípio da fungibilidade e economia processual, bem como sensível ao problema que atormenta a parte (mesmo anormal mas não insensível) e sua família, recomendável é receber o pedido (de natureza cível - antecipação de prova), como sendo de declaração de incapacidade da mulher/grávida, bem como da existência da figura típica do estupro vitimando-a, pelo só fato de ao tempo do ato sexual do qual participou (involuntariamente), e da conseqüente concepção, ela já era incapaz, e por isso, presumida (ou ficta) a violência contra si perpetrada, tudo no sentido de se reconhecer uma causa de justificação para um eventual aborto. Oportuna vem-nos a aguda ponderação de PAULO SÉRGIO LEITE FERNANDES: "o problema do consentimento judicial não se prende propriamente à prova da autoria do estupro, mas sim, à prova da existência do fato".

Doravante, então, a quæstio adquirirá razoabilidade, justificando o pedido, se a vítima - e é o que se provará -, ao tempo da concepção, já era maior em idade, e nessa condição ainda não interditada, ou seja, juridicamente ainda não dita incapaz, daí resultando a necessidade de assim ser declarada, para a seu favor militar a presunção da violência. Declarada a vítima como incapaz à época da concepção, ser-lhe-á de se aplicar a lição de HUNGRIA e FRAGOSO:

"Nos casos de violência ficta ou presumida (art. 224), a própria gravidez, via de regra, constitui a prova evidente do estupro".

E em assim sendo, constatado a não mais desafiar dúvidas ser a mulher/gestante incapaz ao tempo da concepção, e mesmo antes dele, justamente quando do congresso sexual, concluiu-se da desnecessidade de sentença condenatória por estupro, como mesmo pondera DAMÁSIO, pois basta "que haja prova concludente da existência do delito sexual".

Em casos como o aqui aventado, a dispensabilidade de qualquer manifestação judicial autorizativa ou não é patente, justo por tratar-se a mulher/gestante de uma incapaz. Fosse a gestante mulher capaz, talvez, para garantia do médico, recomendável seria acatar a lição dos mesmos acima referidos HUNGRIA e FRAGOSO:

"Para sua própria segurança, o médico deverá obter consentimento da gestante ou de seu representante legal, por escrito ou perante testemunhas idôneas, Se existe, em andamento, processo criminal contra o estuprador, seria mesmo de bom aviso que fossem consultados o juiz e o representante do Ministério Público, cuja aprovação não deveria ser recusada, desde que houvesse indícios suficientes para a prisão preventiva do acusado".

Se do complexo probatório (oitiva da mulher/gestante e de seu representante legal - nomeado curador ad hoc -, testemunhas e laudos periciais) dá-nos a saber que a requerente/mulher/gestante era - como ainda poderá ser - pessoa completamente incapaz de reger-se nos atos da vida civil a desafiarem o mínimo de responsabilidade ou entendimento, em virtude de ser portadora de alguma disfunção mental, inexorável a declaração de incapacidade desde data anterior.

Destarte, assim considerado, independentemente de quem tenha sido o autor da lamentável façanha, está visto ser a requerente/ mulher/gestante, ao tempo da relação sexual praticada, e ao da conseqüente concepção, incapaz, levando-nos à inexorável conclusão de que o ato sexual com ela realizado se deu mercê de violência ficta, caracterizando a não mais poder o fato típico descrito no art. 213 caput, do C.P.B. - estupro. E isso ainda porque, pode não ser o caso daqueles de deficiência que escapam ao reconhecimento de pessoas não especialistas em psiquiatria, como observa HUNGRIA.

Concluindo, reconhecido o estupro, refoge ao Judiciário, como equivocadamente tem-se pretendido, data venia, autorize qualquer intervenção móvita, ficando, então, ao alvitre do representante legal da requerente/mulher/gestante/incapaz, expedir a competente autorização, caso encontre profissional médico disposto a executar a amblose, ressalvado, no entanto, e como já dito, haver autores abalizados entendendo, a despeito da autorização, permanecer a conduta como um ato ilícito.



BIBLIOGRAFIA

ASÚA, Luis Jiménes de. Liberdade de amar e direito de morrer: ensaios de um criminalista sobre eugenesia, eutanásia e endocrinologia, trad. Benjamim do Couto, Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1929, cap. III, letra c, § 34, págs. 140/143 - ortografia adaptada.

BALESTRA, Carlos Fontán. Derecho penal: parte especial, Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1995.

COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal: parte especial, Rio de Janeiro: Forense, 1994, vol. II.

COSTA JÚNIOR, Paulo José. Comentários ao código penal, São Paulo: Saraiva, 1989, vol. II.

CUNHA, Paulo Ferreira da. Pensar o direito, Coimbra: Almedina, 1991, tomo II.

DEVESA, Rodriguez. Derecho penal español, Madrid: Dykinson, 1994, vol. II.

DIP, Ricardo Henry Marques. Uma questão biojurídica atual: a autorização judicial de aborto eugenésico - alvará para matar, in: Revista dos Tribunais, São Paulo: R.T., ano 85, dez. 1996, vol. 734, págs. 517-540.

FERNANDES, Paulo Sérgio Leite. Aborto e infanticídio: doutrina - legislação - jurisprudência e prática), 3 ed., ver. e ampl., São Paulo: Nova Alvorada Edições Ltda. (Edições Ciência Jurídica), 1996.

FERNANDEZ, Miguel Bajo. Manual de derecho penal: parte especial - delitos contra las personas, Madrid: Editorial Centro de Estudios Areces, S/A., 1991, págs. 4/5.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial (arts. 121 a 212), 7 ed., Rio de Janeiro: Forense, § 92, pág. 123.

GOMES, Hélio. Medicina legal, 21 ed., Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S/A., 1981, cap. 40, págs. 349/350.

GUASTINI, Vicente Celso Da Rocha. Código penal e sua interpretação jurisprudencial - obra coletiva de Alberto da Silva Franco e outros -, São Paulo: RT, 1995.

HUNGRIA, Nelson e Heleno Cláudio Fragoso. Comentários ao código penal, 6 ed., Rio de Janeiro: Forense, 1981, vol. V, § 72, pág. 312.

JESUS, Damásio Evangelista. Direito penal: parte especial - dos crimes contra a pessoa, dos crimes contra o patrimônio, 6 ed., rev. e ampl., São Paulo: Saraiva, 1984, vol. 2.

MAGALHÃES NORONHA, Edgar. Direito penal, São Paulo: Saraiva, 1971, vol. II.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direto penal, São Paulo: Atlas, 1994, vol.
II.

MORAES, Walter.
O problema da autorização judicial para o aborto, in: RJTJSP, São Paulo: Lex, vol. 99.

RIPOLLÉS, Antonio Quintano. Tratado de la parte especial del derecho penal, Madrid: Revista de Derecho Privado, 1972, vol. I.

SANTOS, Lycurgo de Castro. Direito penal e aborto, in: Revista dos Tribunais, São Paulo: R.T., ano 84, fev. 1995, vol. 712, págs. 347-357.

SILVA FRANCO, Alberto et alii. Código penal e sua interpretação jurisprudencial, 5 ed., ver. e ampl., São Paulo: Editora RT, 1995.

SIQUEIRA, Geraldo Batista de. Aborto humanitário: autorização judicial, in: Revista dos Tribunais, São Paulo: R.T., ano 81, jan. 1982, vol. 675, págs. 299-303.

SOLER, Sebastían. Derecho penal argentino, Buenos Aires: TEA,
1987, vol. III.

 

Osvaldo Oliveira Araújo Firmo. Professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UNIVALE-MG. Mestrando em Direito Constitucional pela UFMG. Membro do IBDC. Juiz de Direito em Governador Valadares/MG.

Disponível em < http://www.direitopenal.adv.br/artigos.asp?pagina=2&id=88>