A
LEI N. 9.714/98 OS CRIMES HEDIONDOS E DE TRÁFICO ILÍCITO
DE ENTORPECENTES Nilton João de Macedo Machado
Com
o advento da Lei n. 9.714/98, ampliando as espécies e
possibilidades de sanções substitutivas previstas no
artigo 44, do Código Penal (mesmo porque se procurou
prosseguir com a reforma penal prevendo introdução
de novas medidas sancionatórias benéficas previstas
na já longínqua Exposição de Motivos à
Lei n. 7.209/84), muito se tem discutido acerca da possibilidade
de sua aplicação aos crimes definidos como hediondos
na Lei n. 8.072/90, e aos a eles equiparados, como os denominados
de tráfico ilícito de entorpecentes.
Sabe-se
que na atividade de aplicação da lei penal "o
Poder Judiciário deve efetivar os princípios e as
regras visando a realização do Direito e a prática
da Justiça".(1)
O texto constitucional, norma
fundamental e sustento de validade de todo o ordenamento pátrio,
deve ser analisado sistematicamente, cotejando-se seus artigos e
seus significados para, então, extrair-se as conseqüências
jurídicas dele advindas, garantindo-se, sempre, os valores
supremos que orientam o Estado Democrático de Direito:
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade,
a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e
a justiça (preâmbulo da CF).
A violação
de "um princípio é muito mais grave que
transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao
princípio implica ofensa não só a um
específico mandamento obrigatório, mas a todo
sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou
inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio
atingido, por que representa insurgência contra todo o
sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia
irremissível a seu arcabouço lógico e
corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com
ofendendo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda
estrutura nela esforçada".(2)
Nesse vértice,
o magistrado como membro de um Poder e, como tal, representante do
próprio Estado, deve observar e garantir, primordialmente,
os valores e princípios norteadores da Carta Magna, dela
destacando-se a garantia de que ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa se não em
virtude de lei (art. 5º, II), e que não haverá
crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia
cominação legal (art. 5º, XXXIX).
A
pena, inserida nos dispositivos constitucionais citados, é
usada em sentido amplo, significando não só aquela
sanção imposta pela prática de conduta
tipificada como crime, mas também reprimenda aplicada ao
indivíduo que descumpre qualquer outro preceito legal, seja
civil, administrativo, etc..
Quanto às penas
decorrentes da prática de crimes, não custa lembrar
que a Carta Magna elenca no art. 5º, XLVI, o rol daquelas que
a lei individualizará, dentre outras: a) privação
ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c)
multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão
ou interdição de direitos.
O Código
Penal, por sua vez, como lei geral, em simetria com o comando
constitucional, dividiu-as em privativas de liberdade, restritivas
de direitos, e multa (art. 32), regulou a forma de imposição
e substituição e ditou as regras básicas
pelas quais deverão ser executadas (a especificação
da execução está na Lei de Execução
Penal), destacando-se que são reprimendas distintas e
autônomas, possuindo, cada qual, características
próprias e diferenciadas entre si.
A nova redação
do art. 44, do Código Penal, advinda com a Lei n. 9.714/98,
fixa requisitos objetivos e subjetivos para substituição
da pena privativa de liberdade pelas restritivas de direito
(alcunhadas doutrinariamente de "penas alternativas"),
tendo-se como condições objetivas, que sempre
deverão ser cumpridas: a) pena inferior ou igual a 4
(quatro) anos, se o crime for doloso; b) crime praticado sem
violência ou grave ameaça à pessoa; c) réu
não reincidente em crime doloso.
No tocante à
reincidência, cumpre observar que, agora, havendo condenação
anterior transitada em julgado por crime doloso mas não se
tratando de reincidente específico, ainda assim poderá
obter a substituição desde que presente um elemento
subjetivo adicional: "a medida seja socialmente recomendável"
(§ 3º, art. 44).
Mas o requisito subjetivo que
deverá sempre ser observado para determinação
da substituição, reside no exame da suficiência
desta operação, verificada a partir da análise
dos seguintes elementos: a) culpabilidade, b) antecedentes, c)
conduta social e a personalidade do condenado, d) motivos e as
circunstâncias e do crime.
Expressamente prevista no
Código Penal (derivada do comando constitucional), a
substituição de pena privativa de liberdade por
restritiva de direitos não se subordina ao cumprimento ou
preenchimento de quaisquer outros requisitos que não sejam
aqueles já enumerados, sendo certo que as normas fixadas
neste diploma legal, como lei geral, são aplicáveis
aos fatos incriminados em leis especiais, se estas não
regularem a matéria dispondo de forma diversa (art. 12, do
CP).
Este dispositivo (art. 12, CP) não suscita
qualquer dúvida, tendo a doutrina assentado, com
firmeza:
"A essas leis, a menos que disponham de forma
diferente, aplicam-se as regras gerais do Código Penal, não
apenas as contidas em sua Parte Geral, como também as que
se encontram na Parte Especial, como a que conceitua funcionário
público, por exemplo (art. 327)".(3)
DAMÁSIO
E. DE JESUS já comentou, incisivamente, na mesma
linha:
"Regras gerais do Código são as
normas não incriminadoras, permissivas ou complementares,
previstas na Parte Geral ou Especial. Em regra, estão
contidas na Parte Geral, mas também podem estar descritas
na Especial (ex: conceito de funcionário público -
art. 327). Por outro lado, a legislação especial,
conjunto de leis extravagantes, também pode conter regras
gerais diversas das do Código. Neste caso, prevalecem
aquelas. Em caso contrário, quando a lei especial não
ditar regras gerais a respeito dos fatos que descreve, serão
aplicadas as do Código".(4)
O Min. LUIZ
VICENTE CERNICCHIARO, em voto proferido no Superior Tribunal de
Justiça, também lecionou, com sua lógica
objetiva:
"O Direito Penal é sistema (conjunto
de normas vinculadas a princípios comuns). O Código
Penal, por sua vez, o texto básico. Daí, com razão,
ser denominado Direito Penal Fundamental. Aplicam-se suas regras a
todo o Direito Penal, salvo se norma especial dispuser em sentido
contrário".(5)
Pois bem, a Lei n. 8.072/90,
que é especial, não só definiu os crimes
hediondos e seus equiparados, dentre eles o tráfico ilícito
de entorpecentes e, no pertinente às sanções
penais (inclusive nela aumentadas), como proibiu expressamente a
concessão de anistia, graça, indulto, fiança
e liberdade provisória, acrescentando que o cumprimento da
pena privativa de liberdade imposta deverá se dar em regime
integralmente fechado (art. 2º, I, II e §1º), nada
dispondo quando à impossibilidade ou incompatibilidade de
substituição da pena de prisão por restritiva
de direitos.
Desse modo, diante da omissão da lei
especial (que não pode ser entendida como "lacuna"
no processo de auto-integração da lei, como lecionou
WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO (6) ), as regras gerais do Código
Penal referentes à aplicação e dosimetria da
pena, inclusive as atinentes à substituição
das penas privativas por restritivas de direito, são
aplicáveis (RSTJ, 19/491) aos crimes de que trata a Lei n.
8.072/90 (claro excluídos aqueles praticados mediante
violência ou grave ameaça à pessoa), com as
ressalvas explícitas contidas no art. 2º, I, II e §
1º, porque nestas a "norma especial afasta a incidência
da norma geral".(7)
A previsão na lei especial
de regime integralmente fechado em nada impede a possibilidade de
substituição da pena de reclusão pelas
restritivas de direito, porquanto tratam-se de coisas distintas e
independentes entre si, de exame sucessivo no art. 59, do CP, pois
a viabilidade de substituição da pena privativa de
liberdade por restritiva de direito deve ser verificada
obrigatória e subseqüentemente, de ofício
(inciso IV), somente após quantificada aquela e fixado seu
regime (inciso III).
A propósito, recentemente
decidiu-se no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que a
seqüência legal prevista do art. 59, do CP, deve ser
observada quando da aplicação da pena, "ou
seja, após quantificá-la observando as três
fases exigidas pelo art. 68, do CP, o juiz deve fixar o regime
inicial de seu cumprimento (inciso III c/c art. 111, da LEP) para,
depois examinar obrigatoriamente, conforme seja necessário
e suficiente para reprovação e prevenção
do crime, a substituição 'por outra espécie
de pena, se cabível' (inciso IV); o exame sobre a
possibilidade de concessão do sursis somente ocorre após
verificar não ser indicada ou não cabível a
substituição anterior (CP, art. 77, inciso
III)".(8)
Neste ponto invoca-se novamente a doutrina
de DAMÁSIO E. DE JESUS quando afirma, sobre o tema, diante
da lei nova:
"As penas alternativas não são
absolutamente incompatíveis com os delitos previstos na Lei
dos Crimes Hediondos. São admissíveis em alguns
casos. Cremos que não se apresenta como obstáculo o
disposto no art. 2°, § 1°, da Lei n. 8.072/90, que
disciplinou os delitos hediondos e deu outras providências,
segundo o qual a pena deve ser executada integralmente em regime
fechado. De ver-se que as penas alternativas constituem medidas
sancionatórias de natureza alternativa, nada tendo que ver
com os regimes de execução. Estes são
próprios do sistema progressivo. De maneira que o juiz tem
dois caminhos: se impõe pena privativa de liberdade por
crime hediondo, incide a Lei n. 8.072/90; se a substitui por pena
alternativa, não fala-se em regimes (fechado, semi-aberto e
aberto). Nesse detalhe, a Lei de Crimes Hediondos disciplina a
"execução da pena privativa de liberdade",
não se relacionando com os pressupostos de aplicação
das penas alternativas. Encontramos parâmetro no sursis, que
também admite, em tese, sua incidência nos delitos
hediondos, como vem entendendo a jurisprudência, embora não
unânime. Como já dissemos, a execução
da pena imposta em face do crime hediondo, presentes seus
pressupostos objetivos e subjetivos, não é
incompatível com o sursis. Ex.: tentativa de atentado
violento ao pudor com violência imprópria, imposta a
pena mínima de dois anos de reclusão. Não
impede o disposto no art. 2°, § 1°, da Lei n.
8.072/90, segundo o qual a pena deve ser executada integralmente
em regime fechado. Ocorre que o sursis constitui uma medida penal
sancionatória de natureza alternativa, não se
relacionando com os regimes de execução. Nesse
sentido: ANTÔNIO SCARANCE FERNANDES, Considerações
sobre a Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, crimes hediondos, RT,
660:266; CLÁUDIA VIANA GARCIA, A Lei n. 8.072/90 e o
sursis: possível a concessão?, Boletim do IBCCrim,
São Paulo, maio 1997, 54:8; TJSP, HC 112.809, RT, 676:298;
TJSP, ACrim 112.837, JTJ, 134:417 (tentativa de estupro); TJSP
ACrim 166.011, 3ª Câm. Crim., j. 27-6-1994, JTJ,
161:311; TJSP ACrim 153.487, rel. Des. Canguçu de Almeida,
RT, 719:391; STJ, REsp 91.851, 5ª T., RT, 739:572. Contra:
STJ, REsp 60.733, 5ª T., DJU, 12 jun. 1995, p.17637; STJ,
REsp 91.852, 6ª T., DJU, 5 maio 1997, p. 17197. A
argumentação referente ao sursis é aplicável
ao tema das penas alternativas. Contra, no sentido de que,
cuidando-se de crimes hediondos, é inadmissível a
aplicação do sistema vicariante: CÉZAR
ROBERTO BITENCOURT e LUIZ RÉGIS PRADO, Código Penal
anotado, 2. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais (no
prelo)".(9)
Ademais, o fato de a pena privativa de
liberdade ser cumprida integralmente em regime fechado será
um reforço adicional e estímulo para que o condenado
cumpra e observe o regramento da pena restritiva, pois esta será
convertida naquela se houver o seu descumprimento (art. 44, §4º,
do CP).
Embora possa existir disparidade entre a situação
do condenado a cumprir uma pena privativa de liberdade
integralmente em regime fechado e a condição daquele
que obtém substituição por "pena
alternativa", tal distinção é natural e
facilmente justificável, posto que, na prática,
diversas são as formas das ações criminosas,
tendo, cada uma delas, graus de reprovabilidade social
diferenciadas.
Assim, o agente que, por uma única
vez buscou, em situação que caracteriza crime de
tráfico de entorpecentes, uma forma talvez desesperada de
sustentar seu vício, merece reprimenda completamente
diferente daquele que se revela grande traficante e fornece quilos
ou até toneladas de substâncias estupefacientes a
pessoas dependentes, pratica violência, alicia crianças
para o mundo das drogas e envolve outras pessoas ("mulas,
"olheiros, e etc...) para a prática de diversos
ilícitos, com intuito lucrativo e para manter sua
impunidade.
Torna-se evidente, portanto, que enquanto ao
primeiro deve ser aplicada pena que permita sua plena
ressocialização e tratamento, inclusive evitando-se
sua contaminação com o ambiente deletério da
prisão com a promiscuidade maligna com os demais
criminosos, ao segundo, narcotraficante repulsivo movido pelo
lucro fácil, a sanção deve ser firme e
contundente, com cunho repressivo e preventivo, exemplarmente
dissuadindo a entrada de outras pessoas no mundo do crime.
Daí
revelar-se como oportuna a aplicabilidade das novas sanções
aos crimes em comento, com rígida observância do
requisito subjetivo incluído pelo legislador no inciso III,
do art. 44, do CP, cabendo ao sentenciante análise da
suficiência da substituição da prisão
pelo cumprimento de pena "alternativa", com o que
poderão ser evitadas injustiças que derivaram da lei
na forma anterior, quando o pequeno e infeliz usuário
flagrado em situação de tráfico era apenado
com a mesma sanção que seria imposta ao grande
traficante.
Importante trazer mais uma vez a opinião
do mestre DAMÁSIO E. DE JESUS, também em comentários
à nova lei geral:
"Tráfico de drogas.
Admite, em tese, a imposição de penas alternativas,
tendo em vista que a pena mínima cominada nos arts. 12, 13
e 14 da Lei n. 6.368/76 é de três anos de reclusão.
Nesse sentido, pronunciamento do Procurador-Geral de Justiça
do Estado de São Paulo, Dr. Luiz Antônio Guimarães
Marrey, criticando a lei nova por se aplicar à hipótese
(Folha de S. Paulo, O Globo e O Estado de S. Paulo, edição
de 25 de novembro de 1998). O tratamento mais leve, entretanto,
condiciona-se à presença das circunstâncias
pessoais e objetivas, estas referentes à gravidade do
crime, previstas nos incisos II e III do art. 44 do CP".(10)
Por outro lado, revela-se insustentável o argumento
contrário à aplicabilidade das penas alternativas
especificamente para os crimes de tráfico de entorpecentes
quando invoca que estes, por serem equiparados a hediondos, não
podem ser considerados de menor gravidade e que somente estes
delitos mereceriam a aplicação de penas
"alternativas", diante da mens legis motivadora da Lei
n. 9.714/98 (em sua exposição de motivos menciona-se
direção até crimes de média
gravidade).
É que, a distinção entre
crime hediondo ou de especial gravidade com o crime de média
gravidade ou mesmo de menor potencial ofensivo não se
encontra escrita de forma expressa nem mesmo implícita, no
texto ou sequer na ementa da lei (e ementa não faz parte do
comando normativo); ao contrário, na Lei n. 9.714/98 foram
definidos os critérios legais para aferição
da possibilidade de operar-se a substituição de
forma geral, sem ressalva à classificação do
crime por sua gravidade ou potencialidade lesiva (salvo aqueles
praticados com violência ou grave ameaça à
pessoa).
Assim, se a Lei n. 9.714/98 não vedou
expressamente a aplicação de penas alternativas aos
crimes de especial gravidade, aos hediondos e equiparados, então
o intérprete não poderá fazê-lo por
conta própria, pois o princípio da legalidade
insculpido no texto constitucional garante ao cidadão que o
Estado não lhe aplicará sanção que não
esteja amparada em lei anterior que a comine, valendo invocar a
máxima "ubi lex non distinguit nec nos distinguere
debemus", ou seja, se a lei não distingue, não
pode o intérprete distinguir, especialmente quando esta
distinção resultará fatalmente em prejuízo
ao réu.
O princípio da legalidade, também
conhecido como da reserva legal ou da anterioridade da lei penal,
advindo do enunciado formulado por ANSELMO FEUERBACH - nullum
crimem, nulla poena sine praevia legem -, consagrado no art. 1º,
do Código Penal e constitucionalizado no art. 5º,
incisos XXXIX e XL, da Constituição Federal de 1988,
garante descrição específica,
individualizadora e prévia de condutas e sanções
na lei federal (só a União pode legislar direito
penal), não bastando simples referência ao bem
juridicamente tutelado, nem descrição genérica.
O
tipo expresso exerce função de garantia, e esta "só
se justifica, do ponto de vista material, desde que especifique a
conduta-infração penal. A generalidade é
insuficiente. Não alcança a finalidade, para
concretamente registrar a garantia ínsita à prévia
descrição do comportamento ilícito penal,
como bem escreveram os doutos Min. LUIZ VICENTE CERNICCHIARO e
Prof. PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR (11); a seguir
sentenciam os grandes penalistas contemporâneos:
"A
descrição genérica enseja, ao intérprete,
liberdade ainda maior. Consequentemente, perigosa. Fragrantemente
oposta ao mandamento constitucional. O crime não é
qualquer ação, mas ação determinada. E
determinada na lei".
A questão tem, assim,
resposta certa, clara e cristalina:
A substituição
da pena privativa de liberdade, uma vez preenchidos os requisitos
objetivos e subjetivos previstos no art. 44 e incisos do Código
Penal, é direito público subjetivo do réu,
ainda mais por se tratar, inegavelmente, de medida sancionatória
mais benéfica, sabido que as normas que excluem ou privam
direitos e garantias individuais devem ser interpretadas
restritivamente e consoante reserva legal.
Mas, há
outro fundamento constitucional - amparador do princípio da
legalidade com previsão de tipo penal fechado e expresso -,
que consiste na garantia da dignidade da pessoa humana (CF, art.
1º, inciso III), vale dizer, o direito à liberdade
individual só pode suportar ameaça diante da
necessidade de tutela de outro bem jurídico concreto, não
se devendo permitir haja intervenção estatal na
liberdade da pessoa com uma simples "presunção
legal" de que a Lei n. 9.714/98, diante da omissão de
texto expresso vedando sua incidência aos crimes hediondos
ou a eles equiparados, não permitiria tal abrangência
porque sua exposição de motivos exclui crime de
maior gravidade, sob pena de inversão da ordem jurídica
e transformar em tábula rasa o espírito e o texto da
Carta Maior, que tem na dignidade da pessoa humana um de seus
pilares.
Assim temos: é flagrantemente
inconstitucional o argumento de que o novo sistema de penas
substitutivas advindo com a Lei n. 9.714/98, não se aplica
aos crimes de maior gravidade, hediondos e a estes equiparados,
como tráfico ilícito de entorpecentes, simplesmente
porque sua exposição de motivos não os inclui
ou porque haveria incompatibilidade com o regime integralmente
fechado. Ora, quisesse proibir, a lei o teria feito.
Mas,
ainda que fosse dúbia a interpretação do novo
texto legal e seu exato sentido, a solução não
poderia ser diferente daquela ministrada pelo festejado DAMÁSIO
E. DE JESUS quando, analisando à exaustão o tema da
interpretação da norma penal, demonstra:
"Que
fazer quando, apesar do trabalho hermenêutico, mediante
cuidadosa interpretação literal e lógica,
persiste a dúvida quanto à vontade da norma?
Abrem-se três caminhos ao intérprete: 1º)
admitir que dúvida deva ser resolvida contra o agente (in
dubio pro societate); 2º) admitir que seja resolvida contra o
agente ou contra a sociedade, segundo o livre convencimento do
intérprete; 3º) resolver a questão da forma
mais favorável ao agente. Em outros termos, se a vontade da
lei não se torna nítida, se não chegar o juiz
a saber se a lei quis isso ou aquilo, ou se nem ao menos consegue
determinar o que ela pretendeu, deverá seguir a
interpretação mais favorável o réu
(desde que usados todos os meios interpretativos). A terceira
solução é adotada por nós".(12)
Nem se diga que, em se tratando de crimes de tráfico
ilícito de entorpecentes, o verbete n. 171 da Súmula
do colendo Superior Tribunal de Justiça tenha força
de impedir a substituição da pena privativa de
liberdade pela restritiva de direito, pois tal enunciado nega,
sim, substituição da prisão por multa quando
a lei especial comina estas penas cumulativamente; decisão
resultante do lógico argumento de que é impossível
ao magistrado suprir uma pena trocando-a por outra quando o
legislador expressamente determinou a aplicação de
ambas, o que é circunstância completamente diversa
daquela em que são aplicadas penas pecuniária e
privativa de liberdade, substituindo-se somente esta por uma
restritiva de direito.
Bem por isto, anteriormente à
Lei n. 9.714/98, diante da ausência de proibição
expressa na Lei n. 8.072/90, já se concedia a suspensão
condicional da execução da pena (sursis) aos
condenados por crime hediondo mesmo que praticado com violência
ou grave ameaça à pessoa, como nos casos de estupro
na modalidade tentada (quando a pena ficava no patamar de dois
anos de reclusão), valendo lembrar que no colendo Superior
Tribunal de Justiça já se o admite pacificamente
(vide RSTJ, 109/306, citando RTJSP 134/417; RT 676/298 e RT
719/312.), destacando-se precedente recentíssimo, no HC n.
7919/SP (98/0063715-0), rel. Min. Félix Fischer, publicado
no DJU de 22.02.99, p. 00114:
"PENAL E PROCESSUAL
PENAL. "HABEAS CORPUS" SUBSTITUTIVO DE RECURSO
ORDINÁRIO. ESTUPRO TENTADO. AUMENTO DO ART. 9º DA LEI
Nº 8.072/90. "SURSIS".
"I - O acréscimo
de pena previsto no art. 9º da Lei nº 8.072/90 somente
se aplica na eventualidade de lesão corporal grave ou
morte. Precedentes.
"II - Desde que preenchidos os
requisitos legais, a serem verificados via de cognição
mais ampla, o "sursis" pode ser concedido em caso de
ilícito penal qualificado de hediondo. Precedentes".
No
Tribunal de Justiça de Santa Catarina também já
se decidia neste sentido (Apelações Criminais ns.
33.175, de São Carlos, rel. Des. Álvaro Wandelli -
j. em 28.8.95, in DJ n. 9.355, de 10.11.95, p. 12 - e 97.003588-8,
de Mafra, rel. Des. Amaral e Silva - j. em
10.6.97).
Especificamente em crimes contra a saúde
pública, na espécie tráfico ilícito de
entorpecentes, para que não se diga da inexistência
de precedente, não fossem os argumentos já
expendidos, registra-se valioso julgado concessivo de sursis em
rara hipótese de reconhecimento de tentativa (com o que a
pena ficou em quantum que admitia a suspensão trazendo a
obrigação de ser examinada sua concessão ou
não), da lavra do eminente Des. José Roberge, com a
seguinte ementa:
"CRIME CONTRA A SAÚDE
PÚBLICA. ARTIGO 12, PARTE FINAL (ADQUIRIR SEM AUTORIZAÇÃO
OU EM DESACORDO COM A DETERMINAÇÃO LEGAL OU
REGULAMENTAR) DA LEI DE TÓXICOS. AUTORIA E MATERIALIDADE
COMPROVADAS.
"Tentativa. O réu exauriu os atos
de execução, e não meros atos preparatórios,
não chegando ao seu final, por circunstâncias alheias
a sua vontade, haja vista que o destinatário que seria mera
peça no esquema, assustado com a quantidade do remédio
e a qualidade, comunicou à polícia.
"Recurso
pretendendo a absolvição, ou, alternativamente, a
desclassificação do delito para estelionato na sua
forma tentada. Impossibilidade. Incabível a
desclassificação pretendida, pois a verdadeira
intenção do agente, não era obter vantagem em
prejuízo de outrem, mas sim, o fornecimento, sem nota
fiscal, dos medicamentos controlados pelo Ministério da
Saúde, evitando a fiscalização.
"Concessão
do sursis. Admissibilidade. A lei que define o crime hediondo não
inibe a concessão do benefício. Não se pode
dar interpretação extensiva, a refletir analogia in
malam partem, de forma a afligir a situação do
condenado. O que o dispositivo em análise veda é a
anistia, a graça, o indulto e a progressão de
regime, mas não o sursis. Se tal fosse, estaria explícito
na redação do texto legal, não se podendo dar
a ele uma interpretação virtual" (Ap. Criminal
n. 33.846, de São José, j. 16.04.96).
Do
corpo do acórdão traz-se a fundamentação
garantista do benefício por falta de proibição
expressa na norma incriminadora, aplicável como luva à
hipótese em exame:
"No que pertine à
concessão do benefício do "sursis",
esclarece-se que o recorrente foi condenado por infração
ao artigo 12, porém na sua forma tentada. Conforme salienta
o doutor Maurílio Moreira Leite, em seu parecer "
...embora exista corrente asseverando a impossibilidade da
tentativa nos crimes definidos no artigo 12, o contrário já
vem sendo afirmado, conforme VICENTE GRECO FILHO: 'Consumação
e tentativa. Como vimos, consuma-se o delito com a prática
de uma das ações previstas no tipo. Alguns atos de
execução, eventualmente caracterizadores da
tentativa, são por si mesmos, condutas igualmente puníveis,
daí ser difícil a existência da forma tentada.
O conatus, porém, em princípio, não está
nem lógica nem juridicamente, excluído, dependendo
da análise do caso concreto' (Tóxicos - Prevenção
- Repressão; Editora Saraiva 1993, p. 91). E o caso
concreto diz bem da possibilidade aventada, porquanto o réu
exauriu os atos de execução que lhe diziam respeito,
somente não chegando ao seu final por circunstâncias
alheias a sua vontade, haja vista que o 'destinatário' que
seria mera peça no esquema, assustado com a quantidade de
remédio e sua qualidade, comunicou o fato à
polícia.
"Por último, data venia ao
entendimento do ilustre Procurador de Justiça, o sursis é
de ser concedido. Satisfeitos os pressupostos subjetivos e
objetivos do artigo 77 e seus itens, do Código Penal, não
é o disposto no artigo 2º, § 1º, da Lei n.
8.072/90, óbice a sua concessão: 'A pena por crime
previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime
fechado'. Sem qualquer filiação, a alegada
inconstitucionalidade do dispositivo, devidamente improcedente,
tantas vezes proclamada pelas Cortes Superiores, a razão
está simplesmente na não vedação da
concessão do sursis no dispositivo em questão.
"É
que 'não existe qualquer norma penal que defina a
possibilidade da concessão ou não do benefício
em decorrência da classificação do crime
cometido'. Assim, a lei que define o crime hediondo não
inibe a concessão do sursis. Não se pode dar, in
casu, interpretação extensiva, 'a refletir analogia
in malam partem, de forma a afligir a situação do
condenado. Tal se mostra intolerável perante um sistema que
prestigiou sensivelmente a presunção de inocência
e a plenitude da defesa, razão pela qual, a teor do
disposto no artigo 697, do Código de Processo Penal, deve o
juiz se pronunciar a respeito da concessão do sursis'.
(Renato Nalini - RT 676/298). O que o dispositivo em análise
veda é a anistia, a graça, o indulto e a progressão
de regime, mas não o sursis. Se tal fosse, estaria
explícito na redação do texto legal, não
se podendo dar a ele uma interpretação virtual. O
regime, até que ultime a sentença, com seu total
cumprimento, é o fechado, o que significa dizer que se as
condições que forem impostas não restarem
devidamente cumpridas, resultando rescindido o sursis, o réu
será recolhido ao regime fechado".
Por fim há
que se justificar mais duas situações:
-
Anteriormente à Lei n. 9.714/98 não se cogitava da
substituição da pena privativa de liberdade nos
crimes hediondos e tráfico ilícito de entorpecentes
por pena restritiva de direitos e chegava-se apenas ao sursis
porque, na melhor hipótese, somente se alcançavam às
situações antes enfocadas, quando as penas
totalizavam até 2 (dois) anos, isto em face da causa
especial de diminuição da tentativa, sabido que o
limite para substituição era de até 1 (um)
ano nos casos de crimes dolosos (nunca se examinou porque o limite
da pena nunca permitiu).
- Nada se alterará em casos
de prisão em flagrante com a proibição de
liberdade provisória, ao argumento de que seria injusta a
manutenção do preso quando, na perspectiva de
condenação poderia ser agraciado com a substituição
da pena privativa de liberdade por penas restritivas, porquanto os
institutos têm pressupostos distintos e, enquanto não
há sentença, a pena possível será de
até 15 anos de reclusão, fora do limite permissivo.
Não fosse isto, sempre há possibilidade de mutatio
libelli antes da sentença.
Por todos estes motivos,
a conclusão lógica e irrefutável: em crimes
hediondos ou a ele equiparados, como tráfico ilícito
de entorpecentes, é cabível a substituição
da pena privativa de liberdade pela restritiva de direito, não
existindo qualquer outra vedação legal à sua
concessão, sendo direito público subjetivo do réu
a substituição da pena quando lhe for mais benéfica,
desde que preenchidos todos os requisitos estipulados pelo art. 44
do CP, com a nova redação dada pela Lei n. 9.714/98,
especialmente os subjetivos contidos no inciso III, do
dispositivo, devendo-se avaliar e interpretar se, não
obstante a substituição, a pena imposta mostra-se
suficiente à repressão e à prevenção
genérica do crime (estas conclusões foram acolhidas,
por unanimidade, pela Segunda Câmara Criminal do Tribunal de
Justiça de SC, na Ap. Criminal n. 99.002222-6, da Capital,
j. em 20.04.99).
NOTAS:
(1) DOTTI, René
Ariel, A Retroatividade da Lex Mitior e o Critério da
Combinação de Leis", apud JUSTIÇA PENAL,
vol. 5, p. 344). (2) BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio,
Curso de Direito Administrativo, 5ª ed., p. 451). (3)
BASTOS JÚNIOR, Edmundo José de, Código Penal
em Exemplos Práticos, Florianópolis: Ed. Terceiro
Milênio, 1998, p. 30). (4) JESUS, Damásio E. de,
Direito Penal, v. 1, 13ª ed., SP: Saraiva, 1988, p.
127-128. (5) REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA,
Ed. Brasília Jurídica, v. 88, p. 298. (6)
MONTEIRO, Washington de Barros, Curso de Direito Civil, Parte
Geral, 17ª ed., SP:Saraiva, 1978, p. 38). (7) TOLEDO,
Francisco de Assis, Princípios Básicos de Direito
Penal, 4ª ed., SP: Saraiva, 1991, p. 51). (8) Ap. Criminal
n. 99.002676.0, de Itajaí, j. em 13.4.99, rel. Nilton
Macedo Machado. (9) JESUS, Damásio E. de, Penas
Alternativas. SP: Saraiva, 1999, p. 95/96. (10) Idem, ob. cit.,
p. 89/90. (11) (Direito Penal na Constituição, 2ª
ed., SP: RT, 1991, p. 16 e 17 (12) JESUS, Damásio E. de,
Direito Penal, 14ª ed., SP: Saraiva, 1990, v. 1, p. 37).
Nilton
João de Macedo Machado Juiz de Direito Substituto de 2º
Grau em SC Professor de Direito Penal e Processo Penal da
Escola Superior da Magistratura Federal de SC e da UNIVALI-SC
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