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A tentativa no flagrante provocado

Patricia Mothé Glioche Béze

 

1. Introdução:

A televisão, o rádio e a imprensa de modo geral vêm mostrando, na esteira do Movimento Lei e Ordem[1], determinadas situações de flagrante delito que são na verdade conseqüências do fato da violência ter se tornado um produto de comercialização. Os estudiosos do Direito, então, devem verificar atentamente estas questões que surgem onde alguém é levado a praticar crime, sob a alegação de que seria assim "desmascarado".

Estas situações, mostradas amplamente na imprensa, – fazendo crer até que esta é a única instituição capaz realmente de descobrir os crimes – têm como pano de fundo toda uma disciplina que envolve a tentativa, o crime impossível e o flagrante preparado, que estão ligados entre si.

Iniciaremos com algumas considerações sobre a tentativa, passando ao crime impossível, com as situações conflitantes que o envolvem, para depois analisarmos o flagrante provocado, no intuito de, ao final, concluir sobre os fatos que são empurrados para dentro de cada casa, com o objetivo de que as pessoas acreditem que a solução da criminalidade está na repressão cada vez maior aos crimes.

2. A tentativa

Há, na atualidade, várias questões interessantes quando são estudadas as características do crime tentado. Muito embora a análise principal aqui seja a do flagrante provocado, não se pode deixar de lado algumas noções iniciais sobre a tentativa, até para ser o ponto de partida de toda a explanação.

Em primeiro lugar, não há, em regra, tipicidade de crime tentado definida na Parte Especial do Código Penal. A adequação típica da conduta se dá por subordinação mediata, valendo-se da norma de extensão temporal prevista no artigo 14, inciso II do Código Penal. Da mesma forma, no que toca à aplicação da pena, a tentativa constitui uma causa especial de sua diminuição, já que o parágrafo único do artigo 14 do mesmo diploma legal determina que em regra a pena deverá ser diminuída de um a dois terços [2].

Na tentativa, o agente tem dolo na consumação, mas esta não ocorre por circunstâncias alheias à sua vontade. Mas o que poderiam ser as circunstâncias alheias à vontade do agente, que levariam à consumação do crime? Muitas situações, e tantas elas podem ser que não há como enumerar, pois sempre se esqueceria de alguma.

De qualquer forma, o agente sempre está voltado para a consumação e o certo é que sempre erra quanto a ela, restando o delito tentado. Assim entende EUGÊNIO ZAFFARONI:

"em todas as tentativas os meios acabaram por mostrar-se inidôneos, para produzir o resultado, porque, do contrário, o fato não teria ficado em grau de tentativa."[3]

Dentre estas várias circunstâncias alheias à vontade do agente que levam à tentativa, para a análise do crime impossível, interessam aquelas oriundas, como determina a lei, da ineficácia do meio e da impropriedade do objeto.

Não se está querendo dizer, e é bom que fique claro, que toda circunstância alheia à vontade do agente seja obrigatoriamente uma ineficácia do meio ou uma impropriedade do objeto, mas tão somente que dentro do universo de circunstâncias, estas serão estudadas especificamente porque são os casos que podem levar à caracterização do crime impossível.

3. Crime impossível

O crime impossível, também chamado de tentativa inidônea, tentativa inútil ou quase crime, é disciplinado no artigo 17 do Código Penal, que determina que "não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime".

Pela leitura do dispositivo legal, parte da doutrina entende que no crime impossível há uma tentativa em que não existirá punição do agente devido à impossibilidade da ocorrência da consumação. Neste sentido LUIZ REGIS PRADO:

"O crime impossível (tentativa inidônea) vem a ser aquele em que, a priori, com base em um juízo de previsibilidade objetiva, surge como impossível a produção do resultado delitivo"[4].

Esta falta de punição é entendida como excludente de tipicidade, ou seja, não seria típica a tentativa se houvesse uma impossibilidade de ocorrência da consumação. São exemplos clássicos da doutrina a tentativa de homicídio por envenenamento com aplicação de farinha em vez de veneno, ou do agente que aciona o gatilho com a arma descarregada, ou ainda as manobras abortivas em mulher que não está grávida, ou, por fim, os disparos de arma de fogo efetuados, com vontade de matar, em cadáver.

Posição interessante é a de EUGÊNIO ZAFFARONI, para quem no crime impossível não há sequer tentativa, tendo em vista que a consumação, para ele, não ocorre em razão da inexistência dos elementos necessários para a configuração da consumação. In verbis:

"A tentativa é só uma ampliação da tipicidade para abranger uma etapa anterior à consumação, vale dizer, a falta do tipo objetivo da tentativa surge unicamente da antecipação cronológica da proibição que a tentativa implica, mas de modo algum se podem admitir faltas de outra natureza, porque isso implicará que, com a tentativa, se alcancem condutas que não estão tipificadas, como a perfuração do cadáver, deitar-se com o próprio cônjuge, apoderar-se de uma coisa própria, a bestialidade, a necrofilia etc. Em todos esses casos faltará a vida que se queria tirar, a mulher alheia com quem se relacionar, a coisa alheia de que se desejava apoderar, o lucro indébito que se pretendia obter, a pessoa com quem se desejava o acesso carnal, mas estas faltas não obedecerão a uma antecipação cronológica da proibição, própria da tentativa, por razões totalmente diferentes e, por conseguinte, alheias à natureza da limitação que a tentativa produz no tipo objetivo.

Estará faltando muito mais tipicidade objetiva do que aquela que a tentativa exige que falte"[5].

Diametralmente oposta é a posição de ROGERIO GRECO, que entende que pela redação do art. 17 do Código Penal, deve se partir do pressuposto que o agente já ingressou nos atos executórios, ou seja, há a tentativa, e a consumação não ocorreu por circunstâncias à vontade do agente [6].

O meio, tratado na lei, é tudo que o agente utiliza para produzir o resultado desejado. Ele é ineficaz quando se torna incapaz de produzir o evento de consumação do crime. O objeto é tudo aquilo em que recai a conduta do agente e se revela impróprio se inidôneo a chegar à consumação do crime.

EUGENIO ZAFFARONI entende que meio não deve ser confundido com instrumento do crime, mas seria considerado toda a conduta praticada pelo agente que coloca em prática a causalidade de seu crime [7]. E completa ensinando que nenhum meio é absolutamente inidôneo, exemplificando com o açúcar, que é inidôneo para matar por envenenamento, mas é idôneo para atingir a saúde de um diabético[8].

Conclui-se assim, que há casos em que embora o agente tenha agido com dolo de atingir a consumação – pois o dolo da tentativa é o mesmo do crime consumado – esta é impossível de ocorrer, não havendo, por isso, tipicidade objetiva e, conseqüentemente, punição (nem mesmo em virtude da periculosidade do agente, como determinava a anterior Parte Geral do Código Penal).

Verifica-se claramente a ênfase dada pelo legislador ao resultado danoso, em prejuízo da intenção perseguida.

Havendo, ainda, a consumação do crime, não há que se imaginar o crime impossível onde não há tipicidade nem a título de tentativa.

4. Flagrante provocado

Verifica-se o flagrante provocado quando alguém induz um terceiro a praticar o crime para surpreendê-lo na prática deste. A doutrina e a jurisprudência entendem que esta situação não pode gerar nem a existência de crime nem tampouco ser legítima para configurar um cerceamento à liberdade.

Primeiramente, cabe uma análise quanto à nomenclatura. O flagrante provocado também é chamado de crime de ensaio, crime putativo por obra do agente provocador[9], crime provocado ou, ainda, flagrante preparado [10].

Neste caso, a súmula 145 do Supremo Tribunal Federal exterioriza a opinião majoritária de que "não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação". A impunidade decorre do fato de que somente na aparência é que ocorre um crime, "na realidade, o seu autor é apenas o protagonista inconsciente de uma comédia"[11].

CEZAR ROBERTO BITENCOURT trata bem da questão, afirmando que

"no flagrante provocado, o delinqüente é impelido à prática do delito por um agente provocador (normalmente um agente policial ou alguém a seu serviço). Isso ocorre, por exemplo, quando a autoridade policial, pretendendo prender um delinqüente, contra o qual não tem provas, mas que sabe ser autor de vários crimes, provoca-o para cometer um, com a finalidade de prendê-lo. Arma-lhe uma cilada. Isso é uma representação; o agente, sem saber, está participando de uma encenação teatral. Aqui, o agente não tem qualquer possibilidade de êxito na operação (crime impossível)".

Vale a pena consignar que embora a polícia use este expediente para efetuar prisões, a cada dia que passa mais e mais este artifício está sendo usado pela mídia, nos programas em que se deseja a audiência da violência. Repórteres que se passam por vítimas para que a população conheça pessoas que praticam crimes, sendo que esta prática é um nada jurídico, e que não pode levar à punição da pessoa por este fato. Fica então, no ar, uma falsa impressão de impunidade, porque as pessoas praticam o crime e não são punidas.

A impressão é falsa porque só é possível uma punição com provas, com investigação, com devido processo legal, e não simplesmente com uma encenação de crime, ainda que o autor não saiba disso.

O flagrante provocado é, assim, equiparado ao crime impossível, pela ausência de tipicidade em razão de não ser viável a tentativa numa situação em que tudo existe para flagrar o agente no crime em que foi artificialmente levado a praticar.

Não se pode concordar com a opinião de ROGERIO GRECO, data vênia, para quem no flagrante provocado "a total impossibilidade de se consumar a infração penal pretendida pelo agente pode ocorrer tanto no caso de absoluta eficácia do meio por ele utilizado como no de absoluta impropriedade do objeto"[12].

Na verdade, o flagrante provocado é parecido com a hipótese do crime impossível, mas não se identifica como sendo a mesma situação porque é a impossibilidade das circunstâncias criadas que levam à ausência de consumação.

O flagrante provocado não se confunde, no entanto, com o flagrante esperado, onde o agente não é incitado à prática do crime, mas ao praticá-lo livremente, é surpreendido pela polícia. Neste sentido é a doutrina, conferindo validade ao flagrante esperado.

Esta é a posição de HELENO FRAGOSO:

"a jurisprudência hoje é pacífica no sentido de que não há crime putativo no caso de mera predisposição da autoridade, previamente informada da ação delituosa. Só haveria crime putativo, no caso de flagrante preparado, quando há ação de agente provocador, tornando impossível a efetiva realização do crime" [13].

Assim também CEZAR ROBERTO BITENCOURT:

"o agente, por sua exclusiva iniciativa, concebe a idéia do crime, realiza os atos preparatórios, começa a executá-los e só não consuma seu intento porque a autoridade policial, que foi previamente avisada, intervém para impedir a consumação do delito e prende-lo em flagrante. Constata-se que não há a figura do agente provocador. A iniciativa é espontânea e voluntária do agente. Há início de ação típica. E a presença da força policial é a ‘circunstância alheia à vontade do agente’ que impede a consumação" [14].

Esta também a posição da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

"RHC. CONCUSSÃO. ILEGALIDADE DO FLAGRANTE. PRISÃO EFETUADA 15 DIAS APÓS A CONSUMAÇÃO DO CRIME. DESPACHO QUE RECEBE A DENÚNCIA. DESNECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Consumando-se, o crime de concussão, com a efetiva exigência da vantagem indevida, tem-se a ilegalidade da prisão realizada mais de 15 dias após a consumação do crime, quando do recebimento daquilo que foi exigido, pois tal fato constitui-se em mero exaurimento do delito. Não se cogita da descriminalização prevista na Súm. nº 145/STF para fins de trancamento do feito, pois o crime se consumou antes do flagrante. O despacho que recebe a denúncia prescinde de fundamentação. Recurso parcialmente provido tão-somente para determinar o relaxamento da prisão em flagrante do paciente"[15].

"HABEAS CORPUS. NEGATIVA DE AUTORIA. NECESSIDADE DE EXAME APROFUNDADO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. http://www.stj.gov.br/netacgi/nph-brs?s1=flagrante+provocado&%3Bs2=&%3Bs3=&%3Bs4=&%3Bs5=&%3BSECT5=JUR2&%3Bd=JUR2&%3BSECT1=IMAGE&%3BSECT2=THESOFF&%3BSECT3=PLURON&%3BSECT6=BLANK&%3Bp=1&%3Bu=/netahtml/%23h0http://www.stj.gov.br/netacgi/nph-brs?s1=flagrante+provocado&%3Bs2=&%3Bs3=&%3Bs4=&%3Bs5=&%3BSECT5=JUR2&%3Bd=JUR2&%3BSECT1=IMAGE&%3BSECT2=THESOFF&%3BSECT3=PLURON&%3BSECT6=BLANK&%3Bp=1&%3Bu=/netahtml/%23h2FLAGRANTE PROVOCADO, FORJADO E PREPARADO. ENUNCIADO Nº 145 DA SÚMULA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INAPLICABILIDADE ÀS HIPÓTESES DE FLAGRANTE PREPARADO. MATERIALIDADE. RESPONSABILIDADE PENAL. CONCESSÃO DA ORDEM. 1. Não demonstrada na luz da evidência, primus ictus oculi, a negativa de autoria, deve a questão, por demandar aprofundado exame do conjunto fático-probatório, ser decidida em momento processual oportuno, qual seja, por ocasião da prolação da sentença, refugindo a matéria, pois, da via augusta do habeas corpus. 2. Não há confundir flagrante preparado, forjado e esperado. No primeiro, "o agente é induzido à prática de um crime pela 'pseudo vítima', por terceiro ou pela polícia, no caso chamado de agente provocador"; no segundo, "os policiais ou particulares 'criam’ provas de um crime inexistente"; já no terceiro, "a atividade policial é apenas de alerta, sem instigar o mecanismo causal da infração, e que procura colher a pessoa ao executar a infração (...), quer porque recebeu informações a respeito do provável cometimento do crime, quer porque exercia vigilância sobre o delinqüente." (in Processo Penal, Julio Fabbrini Mirabete, Editora Atlas, 5ª edição, 1996, páginas 371/373). 3. O enunciado nº 145 da Súmula do Supremo Tribunal Federal não se aplica à hipótese de flagrante esperado. 4. O fato de o réu não ser encontrado com a substância entorpecente não o exime de responsabilidade penal na hipótese de a droga ter sido descoberta previamente por policiais que, retirando-a do ambiente em que originariamente acondicionada, mas aguardando em vigília o retorno do acusado ao local em que depositada, executam sua prisão. 5. Embora caracterizada a justa causa para a ação penal, deve-se desconstituir a prisão cautelar na hipótese de a precipitada apreensão do entorpecente pela polícia excluir a situação de flagrância do crime, rompendo a relação material que une o tóxico ao traficante.

6. Ordem concedida para desconstituir o auto de prisão em flagrante." [16]

Assim também o Supremo Tribunal Federal:

"Crime impossível: inexistência: http://gemini.stf.gov.br/cgi-bin/nph-brs?d=SJUR&%3Bs1=flagrante+preparado&%3Bu=/netahtml/%23h0http://gemini.stf.gov.br/cgi-bin/nph-brs?d=SJUR&%3Bs1=flagrante+preparado&%3Bu=/netahtml/%23h2flagrante preparado de crime de mera conduta já anteriormente consumado: inaplicabilidade da Súmula 145. Cuidando-se de concussão - crime de mera conduta - que já se consumara com a exigência de vantagem indevida, a nulidade de prisão do servidor quando, dias depois, recebia a quantia exigida, obviamente não torna impossível o delito antes consumado."[17]"

"Hábeas corpus. Alegações de http://gemini.stf.gov.br/cgi-bin/nph-brs?d=SJUR&%3Bs1=flagrante+preparado&%3Bu=/netahtml/%23h0http://gemini.stf.gov.br/cgi-bin/nph-brs?d=SJUR&%3Bs1=flagrante+preparado&%3Bu=/netahtml/%23h2flagrante preparado e de falta de provas para a condenação.1. Não configura situação de http://gemini.stf.gov.br/cgi-bin/nph-brs?d=SJUR&%3Bs1=flagrante+preparado&%3Bu=/netahtml/%23h1http://gemini.stf.gov.br/cgi-bin/nph-brs?d=SJUR&%3Bs1=flagrante+preparado&%3Bu=/netahtml/%23h3flagrante preparado aquela em que a Polícia, ‘tendo conhecimento prévio do fato delituoso, vem a surpreender, em sua prática, o agente que, espontaneamente, iniciara o processo de execução’ (HC 67.984 - 1. T. - DJ 10.08.90). 2. É pacífica a jurisprudência do S.T.F., no sentido do descabimento de ‘habeas corpus’ para o reexame de provas em que baseada a condenação. 3. ‘H.C.’ indeferido"[18].

Assim, verifica-se que a maioria da doutrina e da jurisprudência diferencia o flagrante provocado do esperado, inclusive quanto às suas conseqüências jurídicas. A posição de ROGERIO GRECO, que equipara as duas espécies de flagrante é minoritária.[19]

Também não se deve confundir o flagrante provocado e o flagrante esperado com o flagrante forjado. Neste caso, o agente inventa uma situação falsa para imputar um crime a uma pessoa. É o caso clássico da Polícia, que coloca dolosamente substância entorpecente num automóvel alegando que encontrou a substância, com o fim de efetuar uma prisão em flagrante com base na lei de tóxicos.

Ainda merece ser analisada a situação do agente que provoca um flagrante, mas ao invés de impedir sua consumação, nada faz. Neste caso, como a provocação não impediu a consumação, a disciplina deve ser outra.

O crime, embora provocado, existiu em sua inteireza e quem o praticou deve ser responsabilizado. A questão é: quem provocou o flagrante e nada fez para impedir a consumação, pode ser de alguma maneira responsabilizado?

O mestre ZAFFARONI enfrenta a questão e tem a posição de que o provocador de um flagrante deve ser punido como instigador de um crime tentado – ainda que não haja crime para o provocado. Assim:

"cabe considerar que a impunidade do agente provocador deixa livre uma forma de ‘investigação’ de delitos bastante discutível, pois, em lugar de investigar policialmente delitos cometidos, trataria de instigar o cometimento de delitos para depois puni-los. Semelhantes métodos não têm cabimento num Estado de direito, porque a ética deste impede a degradação da sua imagem, não permitindo que o Estado se valha do crime para a realização da sua justiça" [20].

Parece lógico que, havendo o crime consumado, tanto o autor deva responder como o agente provocador. Este agente, na verdade, ao provocar um crime, torna-se garantidor da sua não ocorrência. A fonte de onde emana a sua posição de garante é o artigo 13, § 2º, alínea c do Código Penal porque o agente ao preparar o flagrante acaba criando o risco que a consumação possa ocorrer. Assim, se puder agir e se omitir dolosamente, passa a ser partícipe do crime que podia e devia evitar e não evitou.

Prática comum, na televisão, a colocação de câmeras ocultas e a provocação do crime. Havendo a consumação, não restam dúvidas de que a preparação não levou ao crime impossível e quem praticou o crime consumado deve responder por ele. E o provocador também, ainda que tenha deixado ocorrer a consumação para demonstrar na televisão como tudo acontece.

5. Hipóteses previstas em leis especiais

A lei de organização criminosa trata ainda de uma situação parecida: o flagrante retardado, ou postergado, ou ainda chamado prorrogado. Esta disciplina só se aplica aos crimes praticados por organização criminosa, ou seja, em princípio, quando há um crime de bando ou quadrilha, que é um crime permanente.

Afirma a doutrina que, se o bando ou quadrilha da organização criminosa estiver praticando crimes, ao invés de haver a prisão em flagrante naquele momento – como, aliás, determina o art. 301 do Código de Processo Penal – sabendo a autoridade policial que depois haverá outro crime, pode deixar para um momento posterior esta prisão, tendo em vista que a quadrilha é crime permanente, com o objetivo de uma melhor colheita de provas. Esta permissão encontra-se no art. 2º, inciso II da lei 9.034/95. É um caso que pode ocorrer somente no flagrante esperado, e não no flagrante preparado.

Na aplicação da lei 9034/95, então, é necessário que se trate de organização criminosa e que não haja nenhuma alteração artificial para levar à prática do crime, ou seja, que não seja o caso do flagrante provocado, mas sim do esperado.

Situação ainda parecida é prevista na Nova Lei de Tóxicos, lei 10.409/2002, em seu artigo 33, inciso II, e parágrafo único [21], permitindo a autoridade deixar de atuar, inclusive deixando de prender, quando for o caso de flagrante, o traficante ou usuário de substância entorpecente, no caso de investigação internacional. Trata-se de uma forma especial de flagrante prorrogado, e uma hipótese de exceção, prevista na lei.

6. Conclusão

O flagrante preparado, ou situações análogas a ele, fazem parte do nosso cotidiano. Basta recordar as extorsões, corrupções, principalmente envolvendo funcionários públicos, em que no momento da obtenção da vantagem há prisão em flagrante. Como são crimes formais, a consumação já havia ocorrido quando do constrangimento e da solicitação, não havendo, portanto, em princípio, nem situação de flagrante, ainda mais supostamente preparado.

O flagrante preparado não é válido a configurar um crime, nem tampouco para justificar uma prisão. No entanto, pode e deve ser valorado com cautela pelo juiz se fizer parte de uma investigação a respeito de fato anteriormente praticado, sem qualquer provocação.

Assim, se ocorrerem vários furtos de toca-fitas num determinado condomínio e houver uma investigação, onde há testemunhas que viram o autor do fato – mas não se sabe sua qualificação – é admissível que um flagrante preparado leve a uma pessoa que, ouvida na Delegacia, poderá ser reconhecida e qualificada pelos fatos pretéritos, mas que não poderá ser presa de forma alguma em razão dos fatos objeto da preparação. A provocação do flagrante não constitui prova ilícita, uma vez que esta preparação, por si só, não é criminosa, ainda que não seja desejável num Estado Democrático de Direito.

O flagrante preparado, diante de todo o examinado, só existirá se o crime for tentado. Consumado o delito, afastado estará o flagrante preparado.

A colocação de câmeras, por si só, não determina uma preparação de flagrante. Mas algumas situações diferentes podem ocorrer. No caso de uma mãe que avisa ao filho que está colocando câmeras escondidas para comprovar que a babá o agride fisicamente, e pede ao menor para que ele a irrite bastante: estará ela alterando artificialmente a situação que levará a babá a agredir a criança, mas pode ser que em determinados casos não se consiga surpreendê-la no flagrante quando ela já consumou a agressão.

Neste caso, ou se entenderá que a câmara não poderia impedir a consumação, para a afastar o flagrante provocado – apesar da instalação do equipamento, que só serviria para comprovação do crime consumado – ou se deverá entender que a mãe, ao instigar o filho a irritar a babá, é partícipe das agressões.

A primeira opção parece mais correta: embora exista uma alteração da situação normal, não há como impedir a ocorrência da consumação só com a câmera, não sendo, então o caso de se falar em flagrante preparado.

Por fim, é importante consignar o total repúdio à prática do flagrante provocado por parte da mídia, com o objetivo de provar o que não pode ser provado, já que a preparação do flagrante torna aquele fato um "nada jurídico", ainda que o autor tivesse a intenção de praticar o crime.

7. Bibliografia

ARAUJO JR, João Marcello de. Os Grandes Movimentos da Política Criminal de Nosso Tempo – aspectos. In Sistema Penal para o Terceiro Milênio – atos do colóquio de Marc Ancel. Rio de Janeiro: Revan. 1991.

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal – parte geral, volume 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2000.

FRAGOSO, Heleno. Lições de Direito Penal – parte geral. Rio de Janeiro: Forense. 1983.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2000.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. Da tentativa – doutrina e jurisprudência. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, 4ª edição.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 1997.


[1]Para aprofundamento da matéria: ARAUJO JR, João Marcello de. Os Grandes Movimentos da Política Criminal de Nosso Tempo – aspectos. In Sistema Penal para o Terceiro Milênio – atos do colóquio de Marc Ancel. Rio de Janeiro: Revan. 1991.

[2] O critério utilizado pela jurisprudência majoritária para calcular a diminuição da pena do crime tentado é considerar o número de atos executórios praticados.

[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 1997, p. 697.

[4] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 257.

[5] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Da tentativa – doutrina e jurisprudência. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, 4ª edição, p. 71.

[6] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2000, p. 278.

[7] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Ob .cit., p. 80.

[8] Idem, p. 81.

[9] FRAGOSO, Heleno. Lições de Direito Penal – parte geral. Rio de Janeiro: Forense. 1983, p. 253.

[10] Em posição contrária, igualando o flagrante preparado ao flagrante esperado, BITTENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal – parte geral, volume 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2000, p.370.

[11] FRAGOSO, Heleno. Ob. cit. p. 253.

[12] GRECO, Luis. Ob. cit. p. 283.

[13] FRAGOSO, Heleno. Ob. cit. p. 253.

[14] BITENCOURT, Cezar Roberto. Ob. Cit. p. 370.

[15] Publicado no DJ em 22/11/1999, p. 164, Relator: Ministro Gilson Dipp.

[16] Publicado no DJ em 04/02/2002, p. 568. Relator: Ministro Hamilton Carvalhido.

[17] Publicado no DJ em 19/05/2000, p. 15. Relator: Ministro Sepúlveda Pertence.

[18] Publicado no DJ em 19/04/96, p. 11072. Relator: Min. Sydney Sanches.

[19] GRECO, Rogério. Ob. cit. p. 283: "não vislumbramos, contudo, qualquer distinção que importe em atribuir a tentativa no flagrante esperado e o crime impossível no flagrante preparado. (...) Não importa se o flagrante é preparado ou esperado. Desde que o agente não tenha qualquer possibilidade, em hipótese alguma, de chegar à consumação do delito, o caso será o de crime impossível, considerando-se a absoluta ineficácia do meio por ele empregado, ou a absoluta impropriedade do objeto".

[20] ZAFFARONI, Eugenio Raul e PIERANGELI, José Henrique. Ob. Cit. p. 697.

[21]Lei 10.409/2002: Art. 33. Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, são permitidos, além dos previstos na Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995, mediante autorização judicial, e ouvido o representante do Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:

I – infiltração de policiais em quadrilhas, grupos, organizações ou bandos, com o objetivo de colher informações sobre operações ilícitas desenvolvidas no âmbito dessas associações;

II – a não-atuação policial sobre os portadores de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que entrem no território brasileiro, dele saiam ou nele transitem, com a finalidade de, em colaboração ou não com outros países, identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível.

Parágrafo único. Na hipótese do inciso II, a autorização será concedida, desde que:

I - sejam conhecidos o itinerário provável e a identificação dos agentes do delito ou de colaboradores;

II - as autoridades competentes dos países de origem ou de trânsito ofereçam garantia contra a fuga dos suspeitos ou de extravio dos produtos, substâncias ou drogas ilícitas transportadas.

 

Retirado de:http://www.geraldoprado.com/tentativa.htm