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ABORTAMENTO. ASPECTOS LEGAIS

 

 

JOSÉ HENRIQUE RODRIGUES TORRES

 

JUIZ DE DIREITO TITULAR DA VARA DO JÚRI DE CAMPINAS/SP

 

 

 

1 - ABORTAMENTO, CRIME E TIPICIDADE

Caminhando pela praia ao cair da tarde, você vê um jovem empinando uma pipa colorida, enquanto o oceano, indiferente, aconchega o sol em suas ondas. Preocupado com o "perigo" que a conduta daquele ousado jovem pode representar para o devaneio de seus pensamentos, que podem ser "perturbados" pelo incessante bailado da inquieta "arraia", você há de exclamar inconformado: "isso é um crime! ". Mas não é. Por mais "hedionda" ou "perigosa" que possa parecer ou ser a conduta daquele jovem que desafia o crepúsculo e a intimidade dos seus oníricos pensamentos, ela não pode ser considerada criminosa se não é "típica", ou seja, se não está descrita em lei como criminosa. Portanto, se não existe nenhuma lei descrevendo tal conduta como crime, criminosa ela não é. Assim, da mesma forma, se a prática de relações homossexuais não está tipificada como conduta criminosa, não há falar em crime se Apolo e Jacinto entregam seus corpos à volúpia do amor carnal. E, também, se o incesto não está descrito em lei como criminoso, Édipo não pode ser "condenado" como "criminoso" em razão das noites de prazer que desfrutou no leito de Jocasta. Como se vê, não há crime se a conduta não está descrita em lei como criminosa. Trata-se, aliás, de um princípio internacional de direitos humanos, previsto na Declaração Universal Dos Direitos Humanos (artigo 2º), no Pacto Internacional Dos Direitos Civis e Políticos (artigo 15.1) e na Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto de San José da Costa Rica (artigo 9º), bem como no Código Penal Brasileiro (artigo 1º) e em nossa Constituição Federal, inclusive como garantia individual e cláusula pétrea (artigo 5º XXXIX). Como se vê, o crime é, antes de tudo, um fato típico, ou seja, descrito na Lei Penal como criminoso (nulla crime sine previa lege). E o abortamento ? Está ele previsto em lei como criminoso ? Sim. O Código penal descreve três condutas típicas de abortamento: no artigo 124 (aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento); no artigo 125 (aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante); e no artigo 126 (aborto provocado por terceiro com o consentimento da gestante). Portanto, se alguém pratica uma dessas condutas acima referidas, pratica uma conduta típica, ou seja, pratica uma conduta criminosa. Entretanto, é preciso saber exatamente o que é abortamento no conceito penal. No conceito médico, abortamento é a interrupção da gestação até o sexto mês, como é cediço. Depois disso, fala-se, na medicina, em "antecipação de parto". Mas esse conceito não é jurídico. O abortamento, para a lei penal, é a interrupção da gestação, em qualquer momento, até o seu termo final, com a conseqüente ocisão do feto. Lembre-se que o abortamento é um crime contra a vida do feto. Portanto, no conceito penal, pratica o abortamento quem interrompe a gestação com a intenção de matar o feto e causa a sua morte. É necessário, pois, que haja vontade, livre e consciente, de matar o feto durante a gestação. E essa "vontade de matar o feto" (querer matar) é chamada de dolo direto. Mas não é só. Existe também o dolo eventual. Se alguém pratica qualquer conduta em relação à gestante, assumindo conscientemente o risco de produzir a morte do feto, também comete o crime de abortamento se a ocisão fetal ocorre, ainda que não queira efetivamente matar o feto. Lembre-se, contudo, que assumir o risco implica aceitar o resultado morte. Por exemplo, se um endocrinologista ministra um determinado medicamento para uma gestante que pretende emagrecer e manter as formas de "Artemis", sabendo que tal medicamento pode acarretar a morte do feto, responderá criminalmente pelo abortamento se o feto vier realmente a morrer. Como se vê, também pratica o abortamento criminoso quem assume o risco de matar o feto, ainda que não queira matá-lo. Portanto, se o médico provoca a antecipação do parto, assumindo o risco da ocorrência da morte, também pratica o abortamento se o feto morre. Resumindo, se alguém quer matar o feto, age com dolo direto. Se não quer matá-lo, mas assume o risco da morte, admitindo a sua ocorrência, aceitando-a, age com dolo eventual. Concluindo, pratica o abortamento no conceito penal quem pratica uma daquelas condutas típicas com dolo direto ou eventual. Aliás, se a morte do feto é causada por negligência, imperícia ou imprudência, não há falar em abortamento criminoso. É que, repito, somente é criminoso o abortamento quando o agente quer a morte do feto ou quando o agente assume o risco de causar a morte. Mas, há algumas situações específicas que merecem ser examinadas. Se o médico faz a "eliminação de embriões excedentes" no caso da fecundação in vitro, há abortamento? Não. É que as figuras típicas do abortamento, acima mencionadas, fazem referência à "gestante". Logo, só há abortamento típico se houver gestação. E, obviamente, se os embriões ainda não foram implantados, não há falar em crime de abortamento no momento da eliminação dos excedentes, ainda que alguém possa discordar dessa conduta ou julgá-la censurável, imoral ou aética, o que aliás não o é. E se o médico receita a "pílula do dia seguinte como método "contraceptivo"? Há abortamento? Também não. É que, nesses casos, a "anticoncepção de emergência" atua antes da nidação. E antes da nidificação não há vida com unicidade (qualidade de ser único) nem com unidade (qualidade de ser um só). Logo, se ainda não há nidificação, também não se pode falar em abortamento. Mas, se o médico promove a "redução embrionária", obviamente depois da implantação, aí sim a figura típica do abortamento criminoso fica caracterizada. Decididamente, o abortamento é criminoso, em princípio, porque é típico, ou seja, porque está descrito na lei penal como criminoso.

2 - ABORTAMENTO, CRIME E ANTIJURIDICIDADE

Todavia, para saber se uma conduta é ou não criminosa não basta verificar se ela é ou não típica. O homicídio é típico, porque está descrito no artigo 121 do Código Penal ("matar alguém"), mas, se uma pessoa mata alguém em "legítima defesa", não pratica nenhum crime. É que, de acordo com o Direito Penal, a "legítima defesa" exclui a antijuridicidade da conduta típica. Para que um fato típico (descrito em lei) possa ser considerado criminoso, é preciso que, além de típico, contrarie também o direito. E a lei penal, em certas hipóteses, afirma que, embora típica, a conduta não é criminosa, ou seja, não contraria o direito, como ocorre nos casos de "legítima defesa". É por isso que "matar alguém", embora seja uma conduta típica, não será criminosa se o agente matar alguém em "legítima defesa". E o mesmo acontece com o "estado de necessidade" (pessoa que furta alimentos para saciar a fome), com o "estrito cumprimento do dever legal" (policial que prende alguém que está cometendo um crime, ainda que seja necessário o uso de força) e com o "exercício regular do direito" (o boxer que, durante a luta, atinge seu adversário com um soco no rosto ferindo-o). Essas hipóteses legais estão previstas no artigo 23 do Código Penal. Já com relação ao abortamento, o Código Penal é mais específico e descreve duas situações especiais que afastam a antijuridicidade da conduta típica: no "abortamento necessário" (praticado como única forma de salvar a vida da gestante) e no "abortamento sentimental" (quando a gravidez resulta de estupro) não há crime. Essas hipóteses, previstas no artigo 128 do Código Penal, são chamadas de "aborto legal". O correto seria dizer "abortamento não criminoso em razão da exclusão da antijuridicidade". Mas a expressão "aborto legal" está consagrada e deve ser adotada e aceita. Assim, se o médico pratica o abortamento como única forma de salvar a vida da gestante, pratica uma conduta típica mas não comete crime. E o mesmo acontece quando o médico pratica o abortamento se a gravidez resultou de um estupro. Aliás, é bom lembrar que está tramitando no Congresso Nacional um projeto de reforma do atual Código Penal, que é de 1940, na qual está sugerida a ampliação das hipóteses de "aborto legal". Pretende-se seja criada mais uma hipótese de "aborto legal": "quando há fundada probabilidade, atestada por dois outros médicos, de o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais". Todavia, enquanto essa proposta não for aprovada pelo Congresso nacional, enquanto não "virar lei", prevalecerão apenas aquelas duas já mencionadas.

 

2.1 - O ABORTAMENTO NECESSÁRIO

Para a caracterização do "aborto necessário" é imprescindível, em primeiro lugar, que o abortamento seja praticado por um médico. Assim, somente o médico pode praticar o abortamento quando essa é a única forma de salvar a vida da gestante. E o enfermeiro? Não pode praticar o abortamento nessa hipótese? E a própria gestante? Também não pode ? E o engenheiro, o policial, o dentista, o professor, o balconista ? Não podem ? Podem. Se uma pessoa não médica pratica o abortamento como única forma de salvar a gestante, não está praticando um crime porque está agindo em "estado de necessidade", que é uma forma genérica da exclusão da antijuridicidade da conduta típica. Nesses casos, embora não fique caracterizada a excludente específica do artigo 128, inciso I, do Código Penal ("aborto necessário"), fica configurado o "estado de necessidade", previsto no artigo 23, inciso I do Código Penal. De qualquer forma, seja como for, não há falar em abortamento criminoso se foi ele praticado como única forma de salvar a vida da gestante. Em segundo lugar, lembre-se que o "abortamento necessário" não depende do consentimento da gestante. Ora, se a gestante está inconsciente, quem poderá dar a autorização para o abortamento? Parentes da gestante poderiam querer optar pela vida do feto, o que é inadmissível. Assim, se o abortamento é a única forma de salvar a vida da gestante, o médico deve agir e deve fazer o abortamento, com ou sem o consentimento da gestante ou de qualquer outra pessoa. Aliás, o artigo 46 do Código de Ética Médica dispõe que "é vedado ao médico qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida". Em terceiro lugar, lembre-se que não há necessidade de "autorização judicial" para a prática do "abortamento necessário". Ora, se a conduta não é considerada criminosa, não há necessidade de pedir autorização do juiz para praticá-la. Aliás, seria um absurdo exigir que o médico consultasse um juiz para saber se pode ou não salvar a vida da gestante em iminente perigo de vida. Se alguém está sendo atacado por um inimigo, não precisa ir ao juiz para pedir licença para defender-se, obviamente. A situação do abortamento necessário, mutatis mutandis, é a mesma.

2.2 - ABORTAMENTO SENTIMENTAL

Em primeiro lugar, lembre-se que apenas e tão-somente o médico pode praticar o abortamento quando a gravidez resultou de estupro. E nesse caso não há exceções admissíveis. Em segundo lugar, lembro que o consentimento da gestante, ou de seu representante legal, é imprescindível para o "abortamento sentimental". E também não há exceções. Em terceiro lugar, lembre-se que o "abortamento sentimental" somente é permitido se a gravidez resultou de "estupro", que exige, para a sua configuração típica, a penetração vaginal (conjunção carnal) mediante violência ou grave ameaça. Mas, se a gravidez resultou de um ato libidinoso diverso da conjunção carnal, é possível a prática do "abortamento sentimental"? Sim. É que, embora o artigo 128, inciso II do Código Penal diga expressamente que não há abortamento criminoso apenas nos casos de gravidez resultante de "estupro", os doutrinadores e os juízes têm entendido, em uníssono, que, por analogia, os "atos libidinosos diversos da conjunção carnal" devem ser equiparados à "penetração vaginal" para permitir-se o "aborto legal". E nos casos de inseminação artificial sem o consentimento da mulher? O "abortamento sentimental" é autorizado pelo Direito? Sim. Também por analogia, há de ser admitido o "aborto legal" nessa hipótese. Finalmente, lembre-se que também não há nenhuma necessidade de "autorização judicial" para a prática do "abortamento sentimental". É verdade que muita vez o médico não tem suficiente segurança para acreditar na história da gestante que afirma ter sido vítima de um "estupro" ou de qualquer outra violência sexual. Entretanto, mesmo assim não há necessidade nenhuma de pedido de autorização judicial. Cabe aos hospitais adotar normas de conduta e procedimento para o atendimento da gestante que afirma ter sido vítima de estupro, para que o abortamento possa ser regularmente praticado. Aliás, lembro que vários hospitais no Brasil já adotaram normas de conduta e procedimento bastante claras e seguras para praticar o "aborto legal" e, assim, dar assistência especialmente à mulher que engravida em razão de uma violência sexual. E não se olvide de que, nos três últimos anos, foram realizados, em Campinas, em Brasília e em Porto Alegre, fóruns interprofissionais para discutir o atendimento ao "aborto legal" nos hospitais da rede pública de saúde. É, pois, imprescindível que os profissionais da área de saúde, e especialmente os médicos, consultem as conclusões e recomendações desses fóruns, as quais inclusive já foram publicadas pela revista Femina. Ademais, o Ministério da saúde editou recentemente normas técnicas para "a prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes", visando especialmente à implantação do serviço de "aborto legal" na rede hospitalar pública. Mas, e se a mulher estiver mentindo? Se o médico for enganado e, acreditando na mulher, praticar o abortamento, poderá ser punido criminalmente? Não. É que, se o médico acreditou na mulher depois de tomar todas as providências e cautelas cabíveis, especialmente de acordo com as normas acima referidas, não poderá ser punido porque praticou um "abortamento sentimental putativo". No Direito Penal existe uma figura chamada "descriminante putativa", prevista no seu artigo 20, parágrafo 1º, que assim dispõe: "É isento de pena quem, por erro plenamente justificável pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima". Para melhor explicá-la, lembro um exemplo relacionado com o homicídio: João tem um inimigo, Antônio, que o ameaça de morte e é muito perigoso; certo dia, João encontra-se com Antônio; este caminha na direção de João e coloca a mão no bolso da jaqueta; certo de que está na iminência de ser atacado por Antônio, João atira contra ele, para defender-se; todavia, Antônio não estava prestes a sacar uma arma, mas, sim pretendia tirar do bolso da jaqueta uma flor, que iria oferecer a João como ícone de paz e reconciliação. Como se vê, nesse exemplo lembrado, João não agiu em "legítima defesa", porque Antônio não estava realmente prestes a agredí-lo. Todavia, todas as circunstâncias, pretéritas e presentes, levaram João a supor que estava diante de uma agressão iminente e injusta. Logo, João não agiu em "legítima defesa", mas agiu em "legítima defesa putativa". E, por isso, não poderá ser punido. Ora, nos casos em que o médico é levado a erro pelas circunstâncias e supõe estar praticando um "abortamento sentimental", a situação jurídica, bastante semelhante àquela, também caracteriza uma "descriminante putativa", posto específica. Com efeito, se o médico pratica o abortamento, acreditando que a gestante foi estuprada, não será punido, embora ela realmente não tenha sido vítima de uma violência sexual. Nesse caso, embora o médico não tenha praticado um "abortamento sentimental", praticou, sim, um "abortamento sentimental putativo". E não será punido. Todavia, de qualquer forma, não se pode deixar de lembrar que a palavra da mulher, nessas situações, merece credibilidade na condução dos procedimentos adotados para a prática do "aborto legal". É que, nessa situação, não se pretende inculpar ninguém pela prática do estupro, mas, sim, dar assistência para a mulher. Aliás, até mesmo no julgamento dos acusados de estupro, quando a cautela deve ser maior na análise das provas, os tribunais brasileiros têm dado bastante credibilidade para a palavra da mulher (v. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, in Revista dos Tribunais, v. 419, p. 88, v. 455, p. 352 e v. 671, p. 305). Ademais, lembre-se que toda mulher tem direito a uma vida livre e sem violência, tanto na vida pública como na privada, que toda mulher tem direito ao reconhecimento, ao exercício e à proteção de todos os direitos humanos e que toda mulher tem o direito a que se respeite sua vida, sua integridade física, psíquica e moral, sua dignidade e sua família, como dispõe a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher (Convenção de Belém do Pará, de 1994). Aliás, nos termos do Tratado Internacional acima mencionado, o Brasil, que o subscreveu e o adotou como dogma constitucional, nos termos do artigo 5º, caput e parágrafos de sua Constituição, comprometeu-se a adotar todos os meios apropriados para prevenir, punir e erradicar qualquer violência contra a mulher, oferecendo a ela, inclusive, programas eficazes para permitir a plena participação da vida pública, privada e social. É evidente, pois, que o Estado tem o dever de tomar providências para que a mulher, vítima de estupro, possa ser atendida plenamente e, se for o caso, para que o "abortamento sentimental" seja praticado. Finalmente, lembro que, se a gestante não é maior de 14 anos ou se ela é alienada mental ou débil mental, e o agente conhecia essa circunstância, o "abortamento sentimental" é perfeitamente admissível, porque o "estupro", nesse caso, é presumido. Com efeito, é o que dispõe o artigo 224 do Código Penal. Assim, se a gestante não é maior de 14 anos ou é alienada ou débil mental, não há nenhuma dúvida: presume-se o "estupro" e o "abortamento sentimental" é cabível, sem necessidade de autorização judicial.

3 - ABORTAMENTO, CRIME E CULPABILIDADE

Para que o abortamento seja considerado criminoso não basta afirmar a tipicidade e antijuridicidade da conduta. É imprescindível, também, que a conduta do médico seja censurável ou reprovável. E, para a reprovação ou censura de uma conduta típica e antijurídica é indispensável que, nas circunstâncias de sua prática, seja possível exigir-se do agente uma conduta diferente. Como ensina o jurista Damásio Evangelista de Jesus, "só há culpabilidade quando, devendo e podendo o sujeito agir de maneira conforme o ordenamento jurídico, realiza conduta diferente, que constitui o delito. Então, faz-se objeto do juízo de culpabilidade. Ao contrário, quando não lhe era exigível comportamento diverso, não incide o juízo de reprovação, excluindo-se a culpabilidade" (Direito Penal, v. 1, p. 417, Saraiva, 1985). E também é o que ensinam os juristas Anibal Bruno (Direito Penal, Tomo II, p. 31) e Magalhães Noronha (Direito Penal, v. 1, p. 100). Portanto, se não é possível exigir conduta diversa do médico, ou da gestante, o abortamento não pode ser considerado criminoso, ainda que típico e antijurídico. Lembro uma situação que merece referência: uma mulher está grávida e é diagnosticada a anencefalia fetal; não há viabilidade de vida extra-uterina para o feto; essa gravidez é de alto risco; e a mulher não pode ser obrigada a suportar todos os riscos, todos os sofrimentos físicos e mentais e inconvenientes de uma gravidez nessas circunstâncias; portanto, nessa hipótese, a prática do abortamento é admissível, porque não se pode exigir dela, juridicamente, conduta diversa, porque não se pode censurar ou reprovar o abortamento nessas circunstâncias. Como se vê, no exemplo citado, a prática do abortamento, posto que típica e antijurídica, não é reprovável nem censurável juridicamente. Não há falar em punição, portanto, nem para o médico nem para a gestante. E, nesse caso, também não há necessidade de autorização judicial para a prática do abortamento.

4 - CONCLUSÃO

Por derradeiro, devo lembrar que as hipóteses de "aborto legal" existem há mais de cinqüenta anos, pois o atual Código Penal está em vigor desde 1940. Entretanto, depois de mais de meio século do reconhecimento legal da possibilidade do abortamento nas hipóteses referidas, até hoje, infelizmente o Estado ainda não tomou providências concretas para assistir as mulheres que vivenciam tais situações, salvo raríssimas exceções. E não se olvide de que o Brasil, ao subscrever a declaração de Pequim, adotada pela 4ª Conferência mundial sobre as mulheres (ação para igualdade, desenvolvimento e paz), comprometeu-se a assegurar o respeito aos direitos humanos das mulheres. Mas não é só. Subscrevendo também a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, o Brasil também se comprometeu a assegurar a assistência à saúde das mulheres. E não é só. O Brasil também subscreveu a Convenções Internacionais que o obrigam a dar assistência para todos os homens e mulheres submetidos a tortura ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, bem como a tomar providências concretas para prevenir, punir e erradicar toda e qualquer violência contra a mulher, garantindo especialmente assistência à sua saúde (Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica, Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes e Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher - Convenção de Belém do Pará). Urge, pois, que todos os profissionais da área da saúde, e especialmente os médicos, conheçam os aspectos jurídicos e técnicos relacionados com o "aborto legal" para que os direitos das mulheres e de toda a sociedade sejam efetivamente garantidos... ou então, como as DENAIDES, as mulheres continuarão condenadas a carregar os seus direitos em um jarro furado.

 

 

Retirado de: http://www.jep.org.br/abort.htm