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Aborto
Luiz Vicente Cernicchiaro
Ministro do Superior Tribunal de Justiça,
Professor titular da Universidade de Brasília e
Autor do livro ‘‘Questões Penais’’

 

            O anteprojeto de reforma do Código Penal (Parte Especial) manteve, como critério para classificação dos crimes, o bem juridicamente tutelado. Conservou o conceito de pessoa de evidente influência do Direito Canônico; por isso, o aborto continua a integrar o rol dos crimes contra a vida; começa, juridicamente, no instante da concepção, prolongando-se até a morte, entendida hoje como falecimento dos órgãos vitais (coração, pulmões, por exemplo) e o silêncio cerebral por sessenta segundos contínuos. A ciência, mercê do progresso, não mais se contenta com os chamados sinais de probabilidade. O Congresso de Genebra, reforçado por posterior reunião em Varsóvia, estabeleceu os critérios, agora, vigentes.

            O aborto (preferiu-se a abortamento como reclamam alguns puristas do idioma) continua infração penal. A polêmica é evidente, acirrada a respeito do assunto. Digladiam-se, fundamentalmente, a intransigência absoluta e a liberalização desde que a mulher assim o deseje, ao fundamento de ela ser dona de seu corpo. Há legislações (ilustrativamente, a francesa e a italiana) que admitem a interrupção da gravidez até certo mês da gravidez. Entre nós, a divergência não evidencia sinais de conciliação.

            O anteprojeto foi cauteloso. Hoje, há duas espécies de aborto legal: 1) para salvar a vida da gestante; 2) quando a gravidez resultar de estupro. Preferiu ampliar esses dois casos, tornando lícito se visar a preservar a saúde da mulher de grave perigo. E mais. Se a gravidez decorrer de ato contrário à vontade da mulher; por isso, emprega a expressão, resultante da violência física, ou moral, ou fraude. Claro, não alcança o simples risco de acontecer a gestação de que incidente com o preservativo é exemplo de fácil compreensão. Aí, a mulher consentira a relação sexual, devendo arcar com suas conseqüências.

            O legislador não pode restar alheio à jurisprudência. A interpretação dos tribunais é indispensável à boa análise do Direito. No Brasil, os juízes têm consentido essa ampliação, o que fazem preferindo a justiça ao legalismo formal. E mais. A lei exerce, sem dúvida, importante papel pedagógico, visando a orientar a conduta dos homens. Não pode, entretanto, fazê-lo de modo ortodoxo, intransigente, sob pena de evidenciar carência de eficácia. Ligeiro olhar para a realidade social???? mostra, sem dificuldade, ser prática a interrupção da gravidez. Infelizmente, só responde criminalmente jovens menos favorecidos economicamente. Não faz muito tempo, conceituada revista semanal brasileira entrevistou socialites e apresentadora de televisão que disseram haver praticado aborto. Não há notícia de inquérito policial ou ação penal. O pormenor é relevante, configura indício de tolerância da sociedade. Ampliou-se ainda situação que, de certa forma, chamara a atenção dos romanos, por eles denominado monstro. Vale dizer, não apresentava as características do ser humano. A título de exclusão de ilicitude (a conduta, por isso, não contrasta norma jurídica) foi consagrada autorização para interromper a gravidez quando o produto da concepção evidenciar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais que tornem o nascituro inviável. Não se visa ao aperfeiçoamento de raça, como, apressadamente, alguns críticos averbaram. Não há nenhuma inspiração em métodos de regimes totalitários. A Exposição de Motivos encerra ilustrativa comparação. Inadmissível interromper a gravidez se o feto for portador de Síndrome de Down. Apesar da anomalia, está presente um ser que merece viver. Ao contrário, no caso de anencefalia, faz-se ausente um órgão característico da pessoa humana. E mais. A medicina explica, levada a gravidez a termo, a sobrevida não ultrapassará cinco dias. A segurança jurídica não foi esquecida. Tanto assim, imprescindível o fato ser atestado por dois outros médicos, não se tomando, pois, a opinião do profissional que fará a cirurgia. Também aqui, a jurisprudência mostra-se sensível e, com a devida cautela, dá autorização para o aborto. Legislação expressa se faz imprescindível a fim de ser afastada qualquer dúvida.

            A Folha de S. Paulo, em editorial de 6 de fevereiro de 1999, menciona que o anteprojeto autoriza expressamente o que, na verdade, já ocorre na prática. Afinal, quando o feto não terá sobrevivência após o parto — quando é ‘‘inviável’’, segundo terminologia legal — já existem sentenças judiciais que autorizam a interrupção da gravidez. É igualmente importante destacar que existe hoje conhecimento científico suficiente para identificar casos como esse de inviabilidade de sobrevivência do feto, a exemplo de ausência de massa cerebral. A autorização parece, pois, um expediente legítimo e humanitário para atenuar sofrimentos.

            O Direito existe para o homem a fim de disciplinar sua conduta, buscando, por meio de valores, alcançar propósitos que exprimam a própria realização.


                                                            Extraído do site do jornal Correio Braziliense


Retirado de :http://www.ufsm.br/direito/artigos/penal/aborto.htm