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Abuso de crianças: Punir não basta

 

 


 

Nuno Melo

 

 

A União Europeia reconheceu especificamente no Tratado de Amesterdão, a importância e a necessidade de se combater a criminalidade contra crianças, a quem é muitas vezes negado o apoio de que necessitam, para desenvolverem todo o seu potencial como seres humanos.
Por seu lado, em Portugal, a discussão parlamentar foi colocada durante o mês de Fevereiro, no sentido da necessidade de se alterar a actual redacção do art.º 178º do Código Penal, por forma a conferir, com algumas excepções, natureza pública aos crimes de abuso sexual contra crianças, cujo procedimento criminal deixará de depender de queixa. Compreende-se, no essencial, da tese que justificou este impulso legislativo. Mas o legislador fará pouco e será irresponsável, se a par da consagração da natureza essencialmente pública de tais crimes, não for capaz de implementar medidas paralelas de promoção e protecção de crianças e jovens em perigo, e medidas protecção e assistência a crianças vítimas de violência. A acção do Estado, terá de ser duplamente preventiva. Em primeiro lugar, compete ao Estado implementar, a montante, medidas tendentes a evitar que potenciais situações de risco familiar e social, se venham a materializar em actos de violência contra crianças, que pela simples circunstância do seu dia a dia, se encontram em constante perigo.
Em segundo lugar, compete ao Estado garantir, a jusante, que – quando ocorram tão hediondos crimes – por força dos procedimentos criminais instaurados e das penas aplicadas aos seus agentes, não resulte um prejuízo ainda maior para as crianças que os sofreram. E aqui, colocam-se, desde logo, dois problemas. O primeiro problema, tem que ver com o facto da publicidade do julgamento comprometer muitas vezes a necessidade sentida pelas crianças vitimadas, de verem salvaguardada a reserva da sua intimidade. Por via do julgamento, os actos hediondos de que foram vítimas, que as traumatizaram, que as envergonharam, que querem esconder e se possível, esquecer, tornam-se públicos e conhecidos da comunidade em que se inserem.
Crianças vítimas de violência e abusos, passam também a ser crianças estigmatizadas e apontadas pelo dedo.
O segundo problema tem que ver com o facto de grande parte dos agentes dos crimes desta natureza, praticados contra crianças, serem seus familiares próximos – muitas vezes pais, ou irmãos – que uma vez cumprida a pena, é de prever retornem ao convívio dos menores, com intuitos persecutórios e de vingança.
Por isso, pensando o tratamento dos crimes de abusos sexuais contra crianças, apenas pelo ponto de vista da alteração da sua natureza, o Estado poderá garantir que respectivo o agente será julgado e punido.
Não poderá é garantir que daí não resulte um dano muito superior para a vítima.
Refira-se até, a este propósito, que em sede comunitária, a decisão quadro do conselho relativa à luta contra a exploração sexual de crianças é bem clara quando refere que "os estados membros garantirão que as investigações criminais e os procedimentos penais não causem danos adicionais à vítima."
Foi precisamente com esta preocupação, que o Grupo Parlamentar do Partido Popular – CDS/PP apresentou na Assembleia da República o Projecto de Resolução n.º 104/VIII.
Através deste Projecto de Resolução, aprovado por unanimidade no passado dia 1 de Fevereiro, foi recomendado ao Governo que proceda à regulamentação urgente, através de diploma legal, do regime previsto para defesa e protecção de crianças, actualmente previsto no art.º 35º da lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, de apoio junto aos pais, de apoio a outros familiares, de confiança a pessoa idónea, de apoio para a autonomia de vida, de acolhimento familiar e de acolhimento em instituição. Se esta regulamentação não for efectuada, o Estado só estará a tentar resolver parte do problema. O Estado conseguirá, é certo, reforçar a sua iniciativa penal no que toca aos crimes de abusos sexuais contra crianças, garantindo uma mais fácil acção criminal contra os respectivos agentes.
Mas não conseguirá é garantir que o procedimento criminal não reforce os danos sofridos pelas crianças, que, como referido, para além dos actos de que foram vítimas, terão também de sofrer os inconvenientes da sua publicitação em julgamento e principalmente, a possibilidade DE um novo convívio com os agentes dos crimes, marcado pelo ressentimento e pela vontade de vingança.
A Assembleia da República, por iniciativa do Partido Popular-CDS/PP, entendeu, por unanimidade, fazer uma recomendação ao Governo.
Resta agora esperar, que o Governo seja capaz de dar conta do recado.


Justiça e Cidadania, Suplemento do Primeiro de Janeiro, 23-Fev-2001