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A INSIGNIFICÂNCIA NO DIREITO PENAL MODERNO: O DIREITO PENAL DA CONSCIÊNCIA SOCIAL

 

 

Flávio Augusto Maretti Siqueira

 

 

 

 

I-) OS FUNDAMENTOS JURÍDICOS DO DIREITO PENAL MODERNO MÍNIMO:

 

O Direito Penal moderno tem com fundamento basilar a intervenção mínima deste ramo nas condutas humanas. A área penal deve ser vista sob a ultima ratio, ou seja, a última solução para o problema jurídico apresentado para apreciação e enquadramento, e isso se dá pela aspereza da resposta apresentada pelo sistema penal a condutas que violem seus preceitos típicos, com a cominação da pena que passa da restrição ou limitação da liberdade humana até a multa penal.

 

A fragilização do microsistema penal se dá em virtude do legislador expandir sua margem solucionadora dos desequilíbrios sociais. A ampliação ilimitada dos horizontes do direito penal, para que solucione problemas que outras áreas jurídicas não resolvam, dá margem a uma distorção na própria caracterização desse ramo como ciência, fugindo dos seus objetivos traçados nos primórdios da vida humana em sociedade, que é o repúdio aos bens jurídicos em que a tutela é mais importante na hierarquia constitucionalmente firmada. Isso se dá assim, pois, hodiernamente vivemos uma “criminalização política” das condutas e “legislando no impacto dos fatos”, sem ponderação da real importância da tutela penal e da necessidade de sua existência no cenário jurídico.

 

A crise da ciência penal hoje em dia parte da sua utilização sem precedentes, invadindo áreas onde o ilícito é meramente administrativo, civil ou tributário. A importância do tipo penal e sua significação na estruturação da proteção da sociedade encontram-se desgastada e em detrimento ao princípio constitucionalmente firmado da intervenção mínima estatal, importando ao legislador quando da feitura das leis penais uma maior reflexão.

 

Esse princípio que acima mencionamos é bem explicado por Luiz Régis Prado: “O princípio da intervenção mínima ou da subsidiariedade estabelece que o Direito Penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa. Desse modo, a lei penal só deverá intervir quando for absolutamente necessário para a sobrevivência da comunidade, como ultima ratio” .

 

Assim, o Estado deve-se valer das forças do direito penal quando: demonstrar claramente a insuficiência dos demais ramos do direito em punir com a veemência necessária a conduta e quando restar provado que o ilícito violou valores cuja alçada de atribuição para punir é do direito penal. Dessa sorte, tudo que afasta essas duas áreas de atuação escapa a aplicabilidade do direito penal. E isso se dá por força de mandamento constitucionalmente firmado, com status de cláusula pétrea (artigo 60 § 4º, IV, CR).

 

René Ariel Dotti lembra: “O princípio da intervenção penal mínima foi recepcionado pela CF através de cláusula geral prevista pelo § 2º do art. 5º: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. O princípio em análise tem sua raiz no art. 8º da Declaração dos Direitos do homem e do cidadão (Paris, 1789), ao proclamar que a lei deve estabelecer “penas estrita e evidentemente necessárias” . Os tratados internacionais os quais o Brasil é signatário e contém normas de direitos fundamentais trazem automaticamente para o rol do artigo 5º com igual força e relevância os comandos, sendo pela teoria da recepção incorporados.

 

Hans Welzel quando de seus escritos mencionou o caráter social da lei penal, ao mencionar a necessidade de “adequação social” da figura penal, ou seja, a sociedade admitir tal conduta como afrontosa aos valores sagrados a manutenção da paz e equilíbrio a esfera jurídica, então, demandando a aplicação de pena visando o controle social, que é máxime da norma penal. Francisco de Assis Toledo explica que: “podem as condutas socialmente adequadas não ser modelares, de um ponto de vista ético. Delas se exige apenas que se situem dentro da moldura do comportamento socialmente permitido ou, na expressão textual de Welzel, dentro do quadro da liberdade da ação social” .

 

II-) A INSIGNIFICÂNCIA PENAL:

 

Atualmente a insignificância penal ganha aceitação, haja vista, o notório insucesso das penas como meio ressocializador do réu, que ao adentrar no sistema carcerário por muitas vezes acaba sendo corrompido e a sanção penal acaba por se perder dos seus objetivos finais.

 

Dessa forma, as condutas que lesem bens jurídicos de pequena relevância, onde o impacto social do crime é leve a tendência é a de atestar a atipicidade da conduta pela insignificância do bem lesado ou pela inocorrência da lesão embora haja a violação do tipo penal. O que se questiona na aplicação desse princípio é a eficácia do preceito penal e isso, ao nosso ver, é interessante, pois, perquirir a vox socialis é sacramental para o direito.

 

. A doutrina penal moderna inclina-se a esse princípio para que se excluam delitos em que não haja o alcance da resposta demandada pela sociedade, como o que ocorre com o crime de dano (art. 163, CP), sendo na verdade é um ilícito civil, que atinge a esfera patrimonial e se resolveria com uma reparação de danos ou uma ação de regresso, sendo a via penal desnecessária em situações desse porte. Damásio de Jesus faz interessante ponderação: “...recomenda que o Direito Penal, pela adequação típica, somente intervenha nos casos de lesão jurídica de certa gravidade, reconhecendo a atipicidade do fato nas hipóteses de perturbações jurídicas mais leves (pequeníssima relevância material)” .

 

III-) A CORRELAÇÃO ENTRE A PROPORCIONALIDADE E A INSIGNIFICÂNCIA E A NÃO REEDUCAÇÃO COM A PENA:

 

A insignificância penal tem a aplicação devida, pois, os limiares do que é irrelevante para a lei penal, onde não ocorreu a lesão ao bem tutelado ou esta foi de pouca monta não vem sendo utilizados.

 

A provocação da instância penal revela-se injusta, pois, o desvalor da conduta foi pequeno e o valor das custas pode ser mais caro do que a repressão ao indivíduo, caso seja apenado pelo furto de uma cabeça de alho ou de quebrar uma vassoura. Além, da punição por conduta onde o resultado lesivo foi ínfimo ou inexistente e a ação não revela uma potencial periculosidade no agente, perguntamos porque colocar esse indivíduo sem aparente desvio de personalidade ou capacidade de transtornar-se em delinqüente, as raias da lei penal. A transposição de um indivíduo a lei penal pode gerar um efeito contrário, remetendo-nos a época do legalismo extremo que era cego, desatento aos clamores sociais, que é a fonte primária do direito como um todo.

 

Os filósofos já traçavam um paralelo entre o direito e a justiça, devendo esta para Platão revelar uma virtude suprema geradora do equilíbrio, sendo complementado por Aristóteles que acrescentou o elemento proporção. A proporcionalidade visa ponderar o direito penal que é intenso no apenamento contrapondo-o à luz do social, com o coração da comunidade que sofre os impactos do crime. Dessa forma, o direito penal, bem como todo o sistema deverá se guiar pela justiça como forma de balancear e manter o controle social.

 

A reeducação é um dos ideais da pena, embora esteja em desgaste, com a sociedade que interessa em ver a punição como única finalidade para a condenação. A submissão do indivíduo ao direito penal não passível de iluminação social pode dar vida ao desvio no cidadão, que por um pequeno crime será apenado como os demais. Essa sensação de rebeldia (como a população diz: “justiça só existe para os pobres”) poderá gerar impactos sociais profundos e até mesmo a descrença no direito penal, por não prezar pela igualdade entre aqueles submetidos ao império da lei penal.

 

O direito penal sem o caráter sancionador rígido pode funcionar melhor do que aquele atrelado ao positivismo. A lógica no direito penal sem pena está em que a educação e a cidadania são remédios muito mais eficazes do que a submissão de um rélis furtador de batatas a uma pena de 1 a 4 anos de reclusão. A conscientização e o um processo de massificação, acesso a cultura e as condições de subsistência podem ter efeitos melhores do que uma sentença condenatória, mesmo que a pena seja uma restritiva de direitos, por causa da inexistência do temor e da pressão extrema do Estado em situações desnecessárias. A justiça nesse novo milênio busca intensamente uma forma celeridade e simplificação e por via desse direito penal onde a pena emerge na consciência, poderemos liberar uma parte dos processos onde existem denúncia por delitos de pouca repercussão social e dano percebido.

 

Cezar Roberto Bitencourt ensina o criado por Claus Roxin: “Segundo esse princípio, que Klaus Tiedemann chamou de princípio de bagatela, é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado” .

 

Em se tratando de delitos como o furto privilegiado (art. 155 § 2º, Código Penal), onde a coisa é de pequeno valor e no caso de violação ao artigo 16 da Lei 6.368/76 por ser pequena a quantidade de entorpecentes, há a tentativa excluir a ilicitude da conduta pela insignificância do delito.

 

Para nós, no caso do entorpecente teremos um consentimento do ofendido de um bem ao qual o titular não pode dispor a saúde, além de em segundo plano o amparo penal recair sobre a paz pública, a tranqüilidade e a saúde pública, todos estes, bens onde não há a disponibilidade ao titular do bem por tratar-se de interesse coletivo. Aquele que detém a posse de pequenas quantidades de entorpecente para uso próprio, antes de ter cometido um crime, é uma vítima, pois, sofre os martírios e agouros, os quais a droga submete aquele que é seu dependente, e tratarmos como um marginal seria no mínimo desigual.

 

E no caso do furto, uma questão perigosa nos apresenta, porque paulatinamente os agentes podem perder noção das raias daquilo que é de pequeno valor, ínfimo, inestimável e haver um avanço delituoso, pela impunidade que a aplicação do princípio de forma desgarrada de sua conceituação geraria. Mas, pela outra mão, visualizaríamos um cenário onde um réu de pequena capacidade ofensiva seria posto as barras do sistema carcerário deturpador de caráter, com absurdos como o de prender quem furta uma cebola, onde temos o desvalor da conduta e do resultado.

 

Luiz Flávio Gomes em sensata observação prática diz: “Conseqüências práticas: ninguém pode ser preso em flagrante por fato absolutamente insignificante (por ser atípico). Ninguém pode ser processado por isso. O correto, portanto, em razão da atipicidade penal do fato, é arquivar o caso logo no princípio. O delegado faz um simples boletim de ocorrência e o promotor pede o arquivamento. E se o promotor denunciar ? Cabe ao juiz rejeitar a denúncia, com base no art. 43, I, do CPP ("a denúncia ou queixa será rejeitada quando o fato narrado evidentemente não constituir crime"). Tipo legal não é a mesma coisa que tipo penal. Subsunção formal não é adequação típica material. O Direito penal já não se coaduna com a dogmática formalista do século XX. Por força do princípio da intervenção mínima nem toda ofensa ao bem jurídico merece sanção penal. Os critérios de política criminal (intervenção mínima, por exemplo) fazem parte do Direito penal (Roxin). Esse é o novo Direito penal, que se mostra antagônico frente ao Direito penal formalista e literalista do século passado” .

A solução para aparente conflito entre o status libertatis e o jus puniendi está no princípio da insignificância. Convém, lembrarmos que existem formas extrapenais de ressocialização sem que passe pelo sistema penal, que aliás encontra-se totalmente lotado, com presos de periculosidade. Assim, a chave para o contorno do desvio acarretado pela conduta está na educação, e esta poderia ser por via de palestras, ações sociais e governamentais, que devem consolidar a Constituição dando condições à dignidade da pessoa humana, onde a conscientização se daria sem uma repressão estatal cheia de martírios e injustiças. E aí reside o princípio da proporcionalidade que para Julio Fabbrini Mirabete: “cada crime deve ser reprimido com uma sanção proporcional ao mal por ele causado. Essa característica, entretanto, é abrandada no direito positivo: a Constituição Federal determina que “a lei regulará a individualização da pena” (art. 5º, XLVI), e o Código Penal refere-se, quando da aplicação da pena, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente (art. 59), à reincidência (art. 61, I) etc” , bem como notarmos que dentre as circunstâncias judiciais notaremos a suficiência da pena, que também baliza a justiça na pena, e a pena seria justa nesses crimes?

 

Pela contraposição dos princípios explanados podemos concluir que a conjugação destes poderá levar a justiça penal, mas que o excesso em qualquer um deles poderá dar azo ao estado de impunidade e atipicidade penal extremada, com a perda das raias do que é ilícito penal e do teor da lesão, do dano e a gravidade do mesmo. A aplicação seqüenciada dos princípios nos levará a justiça norteada pela verdade real e ressocialização, antes da função punitiva estatal de mantença da ordem e paz sociais.

 

 

IV-) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

 

BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal – vol. I. 6ª Ed. Saraiva. São Paulo/SP. 2000.

DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 1ª Ed. Forense. Rio de Janeiro/RJ. 2001.

GOMES, Luiz Flávio. Prisão por furto de uma cebola . Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 58, ago. 2002. Disponível em: . Acesso em: 09 dez. 2002.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal - vol. 1. 22ª Ed. Saraiva. São Paulo/SP. 1999.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal - vol. I. 17ª Ed. Atlas. São Paulo/SP.2001.

PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro - vol. I. 2ª Ed. RT. São Paulo/SP. 2001.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Basilares de Direito Penal. 2ª Ed. Saraiva. São Paulo/SP.1986.

 

 

 

 

Retirado de: www.argumentumjuridico.com.br