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A situação carcerária no Brasil e a miséria acadêmica*







James Louis Cavallaro**& Salo de Carvalho***







Primeiramente gostaríamos de explicitar perspectiva que difere significativamente da maioria apresentada. Somos, em primeiro lugar, pesquisadores e ativistas na área de direitos humanos e, em segundo lugar, estamos preocupados com a pesquisa acadêmica. Como resultado, o foco da nossa pesquisa está nas violações dos direitos humanos. No contexto do trabalho em penitenciárias, nossa atenção, e também das instituições a qual pertencemos – Human Rights Watch (HRW), Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (!TEC) e Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) –, voltou-se aos massacres em prisões e as péssimas condições que dominam os centros de detenção nas Américas, particularmente no Brasil. Neste momento, gostaríamos de situar os centros de detenções brasileiros no contexto Latino Americano e, então, discutir as pesquisas realizadas até agora e que acreditamos deveriam ser continuadas. Levando em consideração o fato que Rosa del Olmo já expôs os principais problemas que dizem respeito à América Latina, levaremos em conta até que ponto, e com que freqüência, os mesmos problemas são apresentados no Brasil.

O Brasil possui a maior população carcerária da América Latina, com 170.000 presos em 512 prisões – dados do Censo Penitenciário de 1997 divulgado no ano passado. A população nestas prisões tem crescido regularmente desde a década passada. Apesar disso, o número de prisioneiros por 100.000 habitantes é o mesmo da maioria da América Latina, sendo menor do que alguns de seus vizinhos. Os gráficos de 1997, relativos ao número de encarcerados por 100.000 habitantes, mostram o seguinte: (a) Chile – 173; (b) Colômbia – 110; (c) México – 108; (d) Venezuela – 113; Estados Unidos – 645; Brasil – 108.

Rosa del Olmo explicou em detalhes como o uso aberrante de detenções antes de sentença transitada em julgado resulta em superpopulação, aumentando os problemas relacionados ao encarceramento em quatro países latino-americanos. De fato, recente trabalho da Human Rights Watch sobre as condições carcerárias na Venezuela, registrado no livro chamado "Punishment Before Trial", focalizou este assunto. Embora o encarceramento antes do julgamento seja muito comum no Brasil, os números não são tão graves quanto os de muitas outras nações latino-americanas. Exemplificativamente podemos notar que enquanto mais de 70% dos presos na Venezuela não foram condenados, e mais de 90% no Paraguai ainda esperam pela sentença, este quadro, no Brasil, gira em torno de 30% nos últimos anos.

Apesar disso, este problema seria significativamente mais grave se a polícia fosse mais eficiente ao prender pessoas procuradas pelo Sistema Judiciário. De acordo com o Censo Penitenciário de 1994, havia 275.000 intimações ainda não cumpridas no Brasil. Especialistas em prisão, bem como policiais consultados, concordaram que este quadro é demasiado inflacionado, podendo inclusive duplicar, por causa de presos que tem mais de uma intimação e de outros que já estão até mesmo mortos. Seus pontos de vista nessa superestimação, no entanto, variam. Mas, se empregarmos uma estimativa conservadora de 70.000, ou aproximadamente 25%, a população carcerária sofreria um aumento de cerca de 40% e haveria, na realidade, mais prisioneiros detidos antes do julgamento do que condenados.

Talvez mais preocupante que os reais números de prisioneiros brasileiros, sejam as recentes tendências que demonstram um crescimento contínuo da população carcerária e a estagnação virtual na construção de novos centros de apartação. No relatório do ano de 1989, a Human Rights Watch, então Americas Watch, relatou que os gráficos governamentais de 1987 indicavam déficit de 50.934 vagas no sistema carcerário. No ano de 1997, aquele quadro quase duplicou, alcançando 96.010, por haver 2,3 prisioneiros por cada vaga no sistema carcerário formal. O número de prisioneiros por 100.000 passou significativamente de 95 em 1995 para 108 em 1997.

Em São Paulo, um dos pouquísssimos estados que tem mostrado esforços na ampliação de vagas, o programa de construção obteve como resultado aproximadamente 18.000 vagas. A principal meta do projeto era capacitar as autoridades estaduais a remover os prisioneiros das delegacias de polícia e transferí-los para o sistema penitenciário. Entretanto, nos dois anos desde que as construções começaram a população carcerária estadual cresceu a tal ponto que a redução da rede de prisioneiros em celas localizadas em delegacias de polícia foi zero. Após junho de 1997, havia aproximadamente 30.000 prisioneiros fora do sistema penitenciário formal, o mesmo número registrado no início desta semana.

Ao verificarmos a literatura existente sobre as condições carcerárias no Brasil, revisamos duas publicações clássicas dos últimos vinte anos. "A Questão Penitenciária", de Augusto Thompson (1976) e "Os Direitos do Preso", de Heleno Cláudio Fragoso, Yolanda Catão e Elisabeth Sussekind (1980). Infelizmente, ficamos impressionados ao percebermos que as condições nas prisões mudaram muito pouco nas duas últimas décadas. Estes autores citaram uma série de problemas crônicos que incluem: (a) notável distância entre os direitos legalmente reconhecidos e aqueles garantidos na prática aos prisioneiros; (b) o uso de prisões locais (celas em delegacias) como centros de detenções por longo tempo; (c) tratamento médico precário; (d) falta de assistência legal; (e) falta de trabalho para os prisioneiros; (f) acentuada superpopulação em celas de delegacias; e, (g) falta de camas e o uso do chão como espaço para dormir.

Por mais de seis meses, os pesquisadores da Human Rights Watch juntamente com Joanne Mariner, pesquisaram as condições de quarenta centros de detenções em sete estados brasileiros e no Distrito Federal. As averiguações das instituições duraram a maior parte do dia, ou mais, em algumas centros. Foram ouvidos prisioneiros individualmente, sendo entrevistados mais de 300 deles. Suas celas foram medidas, suas refeições foram comidas e suas reclamações foram ouvidas. Também foram realizadas entrevistas com funcionários das prisões, chefes dos distritos policiais, guardas e ONGs que trabalham nesta área. O que de imediato se constatou sobre as condições carcerárias foi reproduzido em "Behind Bars in Brazil", diferindo ligeiramente das situações descritas por Thompson e Fragoso, Catão e Sussekind nas décadas passadas.

Em suma, foram documentadas condições físicas muito precárias na maioria das instalações, acentuada superpopulação (mais ou menos 40 presos em celas com estrutura para seis ou oito homens em algumas delegacias), violência institucionalizada (incluindo tortura em muitas das instalações policiais), atenção médica legal inadequada, falta de oportunidade de trabalho e estudo, etc.

Dois outros assuntos também chamaram atenção. O primeiro envolve a freqüente inaplicabilidade das penas alternativas à prisão (de acordo com o Censo de 1995 apenas 1,5% dos condenados receberam tal condenação). As estatísticas brasileiras são terrivelmente baixas se comparadas às dos Estados Unidos e Europa. Já o segundo diz respeito ao crescente uso de instalações de delegacias, construídas para detenção por períodos curtos, como centros de detenções. Em alguns estados, a maioria da população carcerária está sendo mantida nestes centro de custódia. Em Minas Gerais, por exemplo, de acordo com dados da CPI estadual de 1997, 82% da população carcerária é mantida nestas ‘prisões improvisadas’ (delegacias de polícia). Em São Paulo, unidade federativa que sozinha detém 40% de toda a população carcerária do país, aproximadamente metade de todos os internos têm sido mantidos em prisões inicialmente designadas para detenções em períodos temporários. Naturalmente, não existe nestes centros a infra-estrutura necessária para fornecer trabalho, educação ou qualquer outra ajuda que, remotamente, possa chegar perto de instalações de reabilitação sugeridas pela Lei de Execução Penal.

Apesar de não ser o foco de nossa pesquisa, outro assunto também chamou nossa atenção. Nos referimos à violência sexual entre prisioneiros que, segundo vários funcionários penitenciários, baixou radicalmente desde que as visitas íntimas foram implementadas nos anos 70. O efeito das visitas de companheiras, bem como dos filhos, sob os presos nos centros de detenção é estudo que vale a pena ser explorado. Além de tornar o contato sexual íntimo possibilidade legítima, estas visitas tem impacto importante na dinâmica social do sistema: o sistema social não é mais exclusivamente masculino, pelo menos por um período de tempo que varia de uma semana a um mês. Deste dado nasce a indagação: qual seu efeito no sistema social da prisão?

Anteriormente, o Professor Luis Rodríguez Manzanera referiu-se as prisões mexicanas como uma bomba relógio. No Brasil, cremos justo dizer que a bomba explodiu. A manifestação desta explosão são as revoltas (rebeliões ou motins) que tornaram-se, literalmente, eventos diários. Tais revoltas geralmente são seguidas por tentativas frustradas de fuga e comumente envolvem reféns (geralmente guardas ou outros prisioneiros). Só em 1997, por exemplo, 195 rebeliões foram registradas nas prisões que estão sob a responsabilidade da polícia de São Paulo.

Enquanto este número é assustador, achamos que seria interessante direcionar a questão a partir de outra perspectiva que já havia sido proposta por vários pesquisadores ao explicarem a questão criminal nos últimos dias. Ao invés de perguntar porque a criminalidade têm crescido radicalmente, qualquer pessoa poderá questionar porquê mais habitantes socialmente excluídos que fazem parte da minoria urbana pobre não se voltam ao crime? No contexto carcerário, qualquer pessoa também poderá questionar porquê prisioneiros jovens que são brutalmente maltratados não se revoltam? Estas questões nos conduzem ao que consideramos um espaço significante na literatura carcerária brasileira e que tem consequências diretas e importantes na prevenção de revoltas trágicas e violentas.

A questão a qual nos referimos é a seguinte: porquê alguns centros carcerários e delegacias literalmente explodem enquanto outras, que são mais populosas, não? Esta questão nos leva ao assunto sobre o controle do sistema social e carcerário, o qual inúmeros estudos têm sido realizados por toda parte.

Ao enfatizar a pesquisa no Brasil, vemos relativa abundância de estudos legais que se centralizam na necessidade de reformas judiciais (v.g. a redução de superpopulação através de uso muito amplo das penas alternativas). Neste sentido, Julita Lemgruber da Penal Reform International (PRI), atualmente ouvidora da polícia do Rio de Janeiro, publicou livro e organizou conferências procurando avançar no uso de alternativas para as penas carcerárias.

Poucas pesquisas, porém, têm sido realizadas sobre as condições carcerárias a partir de uma perspectiva acadêmica. De fato, além dos trabalhos de Thompson e Fragoso (et. al.) anteriormente referidos, e de João Batista Herkenhoff ("Crime: tratamento sem prisão", 1987) e Odete Maria de Oliveira ("Prisão: um paradoxo social", 1984), a maioria das pesquisas feitas sobre as condições carcerárias tem sido realizadas por ONGs. Mesmo assim, por muitos anos, a maioria dos trabalhos realizados pelas ONGs sobre sistema carcerário consistiu apêndices de trabalhos mais amplos sobre as violações dos direitos humanos no Brasil. Em outubro de 1992, após o massacre na Casa de Detenção do Carandiru em São Paulo, uma mudança nesta tendência ocorreu. As organizações Human Rights Watch (1992) e Anistia Internacional (1993), por exemplo, lançaram relatórios específicos sobre aquela tragédia, bem como foi instaurada Comissão Especial pela Bar Association.

Desde então, surgiram inúmeras iniciativas institucionais, a dizer, (a) críticas às violações dos direitos da população carcerária, como a realizada pelo Relatório Azul - publicação anual da Comissão sobre Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul (CCDH); (b) viabilização de processo de "descarcerização" pelos sistemas judiciários e executivos, como o projeto para implementar penas alternativas realizados pelo ILANUD em São Paulo, Mato Grosso e Rio Grande do Sul; e, (c) investigação legislativa sobre irregularidades administrativas – São Paulo em 1996 e Minas Gerais em 1997, onde foram implementadas CPIs acerca dos sistemas penitenciários. O trabalho do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP) no "Dossiê dos Direitos Humanos no limiar do séc. XXI" (SP: USP 1998) também proporcionou importantes contribuições na área.

Em síntese, gostaríamos de mostrar um pouco das necessidades mais óbvias de pesquisa acadêmica na esfera prisional: (a) pesquisa sobre o problema da reincidência, seu seu tratamento pela legislação penal e o impacto no sistema de garantias; (b) estudos sobre os sistemas de controle carcerário, sua eficácia e sua relação com os direitos humanos; (c) estudos sobre o papel das visitas íntimas e seus efeitos nos apenados, na violência sexual carcerária e na dinâmica do sistema social das prisões; (d) avaliação acerca dos laudos e exames criminológicos e seus efeitos em nível de garantias individuais da pessoa presa; (e) investigação sobre o impacto da militarização do controle penitenciário em algumas unidades da federação (em dois estados visitados a Polícia Militar foi levada às prisões e atualmente é responsável pelo controle interno).

Enfoque geral nestas pesquisas, que acreditamos ser promissor, é a transdisciplinariedade e a união entre sociedade acadêmica e civil. É que não invariavelmente as ONGs têm acesso à informações e meios de apoio que faltam aos centros de estudos e pesquisas acadêmicas; no entanto, em alguns casos, as ONGs pecam pela falta de capacitação e/ou do "know-how" dos pesquisadores universitários. A pesquisa carcerária é uma área em que esforços conjuntos poderiam produzir resultados importantes, não apenas para a compreensão da realidade Latino Americana, mas, principalmente, para a inteligente ação de mudá-la.
 
 

* Publicado no Boletim do IBCcrim, ano 07, no. 86, Janeiro de 2.000, p.14-15.
 
 

retirado da internet:

 http://www.direitopenal.adv.br/artigo56.doc