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Lavagem de dinheiro

Luiz Vicente Cernicchiaro

Ministro do Superior Tribunal de Justiça
 

        O Direito Penal é expressão do Estado de Direito Democrático. A explicação se coloca atrás das repetidas palavras de Carrara de que os romanos foram gigantes no Direito Civil e pigmeus no Direito Penal. Com efeito, promoveram a teoria geral do primeiro, embora considerassem a matéria penal, como atestam as Instituições do Gaio e Justiniano. Não houve, entretanto, a sistematização. Compreende-se, levando em conta as características familiares, civis e políticas daquela sociedade. Os homens eram separados em dois grupos: patrícios e plebeus. Os primeiros, titulares de direitos; os outros, sem os famosos três stati, destituídos desses direitos. Em conseqüência, quando havia litígio entre patrícios o Direito era invocado; então, fazia-se interpretação das normas. Com isso, chegou-se à análise sistematizada. Entre os plebeus e escravos o fenômeno não acontecia. E quando praticassem conduta ilícita, hoje considerada crime, a reação social e institucionalizada se fazia imediatamente e quase sempre de modo violento. A sanção, diga-se assim, era aplicada conforme a vontade e a possibilidade do ofendido. Inexistia, no caso, a preocupação do devido processo legal. Faltava, pois, o clima para surgimento da teoria geral do Direito Penal, o que vai acontecer mais tarde, em outro contexto político, com Carmignani e Carrara. Esse aspecto deve ser considerado pelos abolicionistas do Direito Penal, preocupados, e fazem bem, com a pequena eficácia das normas, o que acarreta o desalento dos resultados. Cumpre levar em conta, antes de tudo, o esquema normativo de proteção ao mais fraco. Se não atingiu o alcance pretendido, o que se conquistou é estímulo para prosseguir a jornada.

        Nessa linha, chame-se, ainda que impropriamente, de conquistas, urge levar em conta as características da criminalidade. De início, dirigida apenas aos desprotegidos sociais e políticos; ao depois, firma-se o conceito de crime do colarinho branco. Poder-se-á dizer: o Direito Penal volta-se também para outra classe social. Hoje, num terceiro estágio, outra meta é atingida: o crime organizado. Não se confunde com a definição do art. 288 do Código Penal — quadrilha ou bando. Embora o conceito ainda não esteja definitivamente elaborado, o que evidencia a última reunião de Viena, alguns dados vão ganhando aceitação: pluralidade de agentes, constituição de pessoas jurídicas para dar a aparência de atividade lícita, divisão territorial das atividades, exploração de atividades ilícitas, contudo, sem censura social, como acontece com a exploração de jogos de azar, da prostituição, tráfico de entorpecentes. Não se esqueça o enfraquecimento da atuação dos agentes dos controles formais da criminalidade. E também a lavagem de dinheiro. Aliás, esse o nomen iuris empregado no projeto de lei encaminhado ao Congresso Nacional. ‘‘Branqueamento de dinheiro’’, na legislação portuguesa, por inspiração da lei francesa. Na Itália, prefere-se ‘‘reciclaggio’’. É, pois, a transformação do dinheiro obtido ilicitamente por exploração de atividades criminosas em aparente resultado de operações lícitas.

        O tema é de preocupação recente no Brasil. Aliás, os países somente agora começam a dar a necessária importância ao assunto. A elaboração da lei não é difícil. O mencionado projeto adotou, como regra, o critério de a lavagem de dinheiro ser crime acessório, ou seja, vinculado a crime anterior, como acontece com a receptação.

        O combate ao ilícito é a preocupação maior. A remessa de capitais, hoje, para qualquer parte do mundo não reclama mais do que pulsar uma tecla de computador. O sistema on-line permite a troca de valores em segundos.

        A lavagem de dinheiro, normalmente, implica remessa de valores para determinados lugares, chamados paraísos fiscais.

        O esforço e a colaboração internacionais se fazem indispensáveis. Sem isso, a legislação, ainda que tecnicamente perfeita, será insuficiente. Não gozará de eficácia.

        Os Estados que recepcionam o produto do crime, conferindo-lhe aparente legalidade, simulando operações lícitas, são, indiscutivelmente, o estímulo maior para a expansão dessa espécie de criminalidade, cuja dimensão, dia a dia, com o progresso técnico, ganha vulto cada vez maior. Daí dizer-se, também, crimes sem fronteiras.

        A lei não pode ser interpretada desconsiderando a realidade social. Os Estados precisam rever a ilicitude meramente formal de condutas, vedando-as, com a definição de crime, porque a sociedade as admite, a criminalidade encontra campo amplo e fecundo de atuação.

        Neste momento, mostra-se a verdade: a cultura de um povo, tantas vezes, é o obstáculo maior para o combate ao crime. A legislação, por isso, precisa considerar esse pormenor.

        Na lavagem de dinheiro (inspirada no ‘‘laudring money’’) há outro complicador: a cultura de outro país. E não será exagero acrescentar um terceiro: a política econômica desse país.

        O tema é de grande importância. Mais uma vez, fico pensando na distinção entre ‘‘vigência’’ e ‘‘eficácia’’ da norma penal. Enquanto o dinheiro tiver a importância que tem, o Direito Penal se faz necessário, conjugado com a sociedade.
 

Retirado de: http://www.solar.com.br/~amatra/lavagem_1.html