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A VIOLÊNCIA NO FUTEBOL

Carlos Bachinski
Promotor de Justiça

         A violência social, política, econômica, educacional e moral - que muitos cognominam, com razão, de violência institucionalizada - há muito tempo vem aterrorizando o sofrido povo brasileiro. A cada dia que passa, os órgãos de imprensa, com requintada ênfase, revelam as mais variadas formas de expressão da violência e, em decorrência, o desespero, o medo, o pavor que ela tem feito habitar no coração, na alma e na mente do brasileiro. Doença de esperança quase incurável, tem trazido a conseqüência do ensinamento das pessoa; o encarceramento em suas residências e apartamentos e o vislumbre, em cada semelhante seu - desconfiadamente - de um agente da violência. Desconfiança, aliás, que, nas circunstâncias sociais hodiernas, se torna a arma mais eficaz de prevenção a essa mesma violência. E o que pensar de um povo, de uma sociedade que, para viver (viver?) tem a necessidade insubstituível de usar, contra seu semelhante, a arma - humanamente imperdoável e terrível - da desconfiança?

De raízes tão profundas, a violência campeia solta, altiva, soberana e quase totalmente impune também nos campos esportivos. Diariamente assistimos, ao vivo, pela televisão, cenas de verdadeira selvageria, praticadas quer por esportistas, quer por desportistas (jogadores profissionais ou amadores, dirigentes (= cartolas), treinadores, torcedores, etc.). Principalmente - diga-se - pelos amantes do futebol, o esporte preferido do brasileiro.

Todo e qualquer tipo de violência deve e precisa ser combatido. Um dos poucos remédios e alegria ainda ao alcance do castigado povo deste terra é o esporte, nas suas várias modalidades. Claro, preferencialmente o futebol: tanto é verdade que o Brasil, certo ou errado, é chamado de O País do Futebol. Por mais esta razão, pois, a violência, no esporte, precisa, com o máximo rigor possível, ser combatida. Combatida para que, num último esforço, sobreviva o esporte... e ressuscite o futebol...

A prática esportiva, no entendimento geral dos mestres do direito penal, é uma faculdade reconhecida pelo Estado. O que joga, está exercendo uma ação amparada pelo poder público. Assim, se não violar as normas do jogo; se não agir com dolo ou com culpa, as lesões que eventualmente venha a cometer serão meros acidentes, acobertados pela autorização do Estado. O mesmo se diga com relação aos dirigentes em geral, com relação aos treinadores, árbitros, bandeirinhas e torcedores.

É preciso reconhecer, contudo, que a violência mostrada pela televisão, em praças esportivas, deixa transparecer, claramente, que o agente, além de violar as normas do jogo (= jogador), age de maneira dolosa ou culposa ou contravencional.

A violência, nas praças esportivas, porquanto uma violação às normas do jogo (quando praticada pelo jogador) deve ser reprimida, quer administrativa, quer legalmente. Ou seja, através do Código Brasileiro Disciplinar de Futebol (CBDF), do Código Penal (lesões corporais dolosas ou culposas, homicídios dolosos ou culposos, etc.), da Lei das Contravenções Penais (vias de fato, etc.) e de eventual e pertinente Lei Extravagante. Os nossos dirigentes esportivos têm grande parcela de responsabilidade na luta contra a violência esportiva.

Assim, entendo que em nível mundial as regras e normas do futebol poderiam ser aperfeiçoadas no sentido de se pôr fim ao cognominado carrinho. O carrinho (por trás, pelos lados ou pela frente) tem se consubstanciado numa arma criminosa contra os jogadores de futebol, principalmente contra aqueles que proporcionam verdadeiros espetáculos nos campos (os jogadores clássicos, os verdadeiros jogadores de futebol). O carrinho tem sido responsável por ações, efetivamente, criminosas, por lesões corporais seríssimas, quando não irreparáveis. A FIFA, através das autoridades competentes, deveria incluir nas regras disciplinares do futebol norma proibindo o "carrinho" e coibindo-o, instantânea e automaticamente, com o "cartão vermelho". Seria uma forma de se evitar ou, ao menos, de se minimizar e prevenir a violência.

A Confederação Brasileira de Futebol (CBF), as Federações Estaduais e os Tribunais de Justiça Desportiva poderiam e podem, através de medidas sérias, prevenir e reprimir atos que levam ou podem levar à violência.

O mesmo se diga dos dirigentes, em geral, dos treinadores, dos árbitros e bandeirinhas. O árbitro é a autoridade máxima dentro das quatro linhas do campo de futebol. Ao conduzir uma partida, terá que fazê-lo com a energia que, no transcorrer do jogo, se fizer necessária. Fiscalizará, com consciência e responsabilidade, jogada por jogada, sem temer a eventual cara feia de dirigente ou treinador, sem se deixar ofuscar, e sem ter medo de mostrar o cartão amarelo ou vermelho, quando for o caso, ao jogador mais caro, ao jogador mais famoso do time.

Administrativamente, portanto, se houver colaboração e interesse de todos os que fazem o mundo esportivo, é possível, sim, prevenir e reprimir a violência no futebol.

E no campo penal, o que se pode fazer para prevenir e reprimir a violência?... Há muito o que ser feito. Primeiro, no aspecto da prevenção. O mundo jurídico de cada Comarca - OAB, Poder Judiciário, Ministério Público, Polícia Militar e Polícia Civil, através de seus representantes - tem o dever implícito de orientar, através dos mais variados meios (órgãos de imprensa, debates, palestras, etc.), os esportistas e desportistas sobre a diferença entre a verdadeira prática esportiva e a violência - culposa ou dolosa - empregada sob o pretexto de prática esportiva. Os conceitos de ação amparada pelo Estado, de violação de normas, de dolo, de culpa, de prisão em flagrante, etc., são imprescindíveis para que se previna a "violência esportiva" entre dirigentes, técnicos, árbitros, bandeirinhas, jogadores e torcedores de futebol. Nesse sentido, cresce também a responsabilidade dos narradores e comentaristas esportivos. Têm eles, abraçados com os órgãos de imprensa, o dever da conscientização antiviolência esportiva.

Como se disse em tópico anterior, a prática esportiva é uma faculdade reconhecida pelo Estado. Quem joga futebol (já que estamos falando dessa modalidade esportiva) exerce uma ação amparada pelo poder público. Assim, se não violar as normas do jogo; se não agir com dolo ou com culpa, as lesões que eventualmente venha a cometer, no jogo, serão meros acidentes, acobertados pela autorização do Estado. É preciso reconhecer que a violência (= carrinhos, pontapés, socos, cotoveladas, agressões generalizadas, etc.) mostrada pela televisão, nos jogos de futebol, deixa transparecer, claramente, que o jogador, além de violar as normas do jogo, age de maneira dolosa e/ou culposa. Essa violência deverá ser reprimida penalmente. Assim, se um jogador de futebol, em lance qualquer, de forma dolosa, vier a fraturar a perna de um "adversário" (jogador de outro time) estará ele cometendo um ilícito penal, um crime (= lesão corporal de natureza grave) e poderá e deverá ser preso em flagrante, observadas as formalidades legais, evidentemente. Age dolosamente o jogador quando quer o resultado (= dolo direto) ou quando assume o risco de produzi-lo (= dolo eventual). Formulemos uma hipótese: um determinado jogador, em "perseguição" à jogada de um "adversário" (jogador de outro time) dá um "carrinho", por trás, atingindo e fraturando-lhe uma perna. Estaria caracterizado o dolo direto se quisesse o resultado, se visasse ao resultado certo e determinado: fraturar a perna do adversário. De outra forma, estaria caracterizado o dolo eventual se não quisesse o resultado, mas, com sua conduta, pudesse prever aquele resultado e, assim mesmo, admitisse e aceitasse o risco de produzi-lo.

Nesse caso, possivelmente (digo possivelmente porque há, é preciso que se diga, árbitros que não vêem ou não querem ver nada...), o jogador agressor seria expulso do campo pelo árbitro e sofreria também as sanções normatizadas pelo Código Brasileiro Disciplinar de Futebol.

Na hipótese do exemplo dado acima, possível seria, também, a prisão em flagrante. Embora sempre odiosa e detestável, a prisão, quando em flagrante, se torna uma necessidade. Ou, como dizia FLAMAND: um mal necessário. Não é medida arbitrária, mas medida "que atende ao impulso natural do homem de bem, em prol da segurança e da ordem".

"Justifica-o a conveniência de obstar o comportamento delituoso, ou, quando já consumado, de assegurar a plena eficácia das providências com que visa à tutela indireta exercida pela pena" (FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO - "Processo Penal" - 3º volume - 2ª edição - Editora Jalovi - 1977 - pág. 294).

Ensina o Professor BASILEU GARCIA:

"... permitindo a lei se detenha o criminoso no momento em que delinqüe ou acaba de fazê-lo, o direito sanciona e legitima um impulso natural e necessário de defesa da coletividade, determinado pelo sentimento de repulsa ao procedimento violador das normas de coexistência social."

O Código Penal, no art. 301, assim preceitua:

"Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito."

Quando se tratar de qualquer do povo, pois, a lei lhe concede apenas a faculdade de efetuar a prisão. É uma colaboração facultativa para com o Estado. O cidadão, no caso, estará exercendo um direito público subjetivo de natureza política. Segundo ALTANILLA, um caso interessante de função pública exercida por particular.

Assim, pois, temos que o próprio árbitro (ou bandeirinha) pode mandar prender em flagrante um jogador. Aliás, o árbitro e os bandeirinhas, por estarem próximos às jogadas, têm mais condição de flagrar o jogador em ação dolosa ou culposa. Ad exemplificandum: se o jogador "A", de uma determinada equipe der uma cabeçada ou cotovelada - ação dolosa - no nariz do jogador "B" - seu adversário -, vindo a fraturá-lo, o árbitro, além de expulsar (deverá expulsá-lo) o jogador "A" do campo, poderá prendê-lo em flagrante. Se, contudo, não exercer essa faculdade, se não prestar essa colaboração para com o Estado, a autoridade encarregada da segurança nas praças esportivas deverá fazê-lo. É o dever jurídico que lhe é imposto. Aliás, o não-cumprimento desse dever, dependendo, é claro, do caso concreto, sujeitará a autoridade omissa às sanções de natureza administrativa, e, às vezes, às sanções de natureza penal, pois poderão realizar-se os elementos definidores e caracterizadores do crime de "Prevaricação".

Nesse mesmo exemplo, praticada a ação dolosa pelo jogador "A" contra o adversário "B" e não vindo o árbitro a expulsar o agressor (jogador "A"), a autoridade encarregada da segurança, após o término da partida, deverá proceder à devida prisão em flagrante. É que, nas circunstâncias, o estado de flagrância, como bem se depreende do art. 302 e incisos do CPP, estará caracterizado e a prisão em flagrante, ao término da partida, será perfeitamente legal.

Preceitua o art. 302 do CPP e seus incisos:

"Art. 302. Considera-se em flagrante delito, quem:

I - está cometendo a infração penal;

II - acaba de cometê-la;

III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;

IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração."

Segundo a maioria dos penalistas pátrios, os incisos I e II tratam do flagrante em sentido próprio. O inciso III do flagrante impróprio ou quase flagrante e o inciso IV do flagrante presumido.

De ressaltar-se que, ao fazer uso da expressão infração penal, o art. 312 da Lei Adjetiva Penal pátria quis e quer fazer compreender e abranger o crime e a contravenção. É possível, pois, a prisão em flagrante tanto nos crimes quanto nas contravenções penais.

As ações culposas e/ou contravencionais também podem ocorrer dentro dos campos de futebol. E, aliás, ocorrem freqüentemente. Diz-se o crime culposo "quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia (art. 18, inc. II, do CP). Em outras palavras, o agente prevê o resultado, mas espera que não ocorra (culpa consciente). Ou, o agente não quer o resultado e nem prevê, embora fosse previsível (culpa inconsciente). Na culpa, o agente não pretende praticar um crime, falta, porém, com o dever de diligência exigido pela norma. Deixa de prever o resultado que era previsível e, em razão da imprudência ou da imperícia ou da negligência, acaba praticando um fato típico.

Vamos citar um caso concreto que poderia ter se transformado num crime culposo. Em data de 16 de outubro de 1983, no Estádio Willie Davids, em Maringá - PR, jogavam Cascavel X Maringá. Aos 45 minutos do primeiro tempo, ao espalmar uma bola jogada, pelo alto, contra a sua meta, o goleiro Juarez, do Cascavel, dependurou-se no travessão, vindo a quebrá-lo. Por sorte, o travessão não atingiu nenhum jogador, sendo o jogo, por obviedade, suspenso. Tivesse, contudo, o travessão atingido e ferido algum jogador, o goleiro Juarez, pela atitude imprudente, teria cometido, em tese, o crime de lesão corporal culposa. Tivesse o travessão, no mesmo exemplo, atingido e matado (sem querer ser trágico) algum jogador, concretizado estaria, também em tese, o homicídio culposo. O travessão não foi feito para o goleiro nele se dependurar...

Vários são os conceitos de fato típico contravencional. O mais simples, claro e objetivo é o dado pelo mestre DAMÁSIO E. DE JESUS, "Lei das Contravenções Penais Anotada", Editora Saraiva, 2ª edição, atualizada, 1994, pág. 4:

"É o comportamento humano (positivo ou negativo) que provoca um resultado (em regra), encontrando-se descrito em lei como contravenção."

É, pois, o comportamento humano, traduzido num fazer ou não fazer, que provoca um resultado e que se encontra descrito na Lei das Contravenções Penais ou em lei extravagante definido como contravenção penal.

No futebol, a contravenção penal mais corriqueira é a denominada vias de fato e tipificada no art. 21 da Lei das Contravenções Penais. Vejam um exemplo:

"O jogador de uma determinada equipe dá um tapa no rosto de um jogador da equipe adversária, não deixando qualquer marca na vítima (= jogador agredido). Concreto fosse o exemplo, teria ocorrido aí, em tese, a contravenção tipificada como vias de fato. Empregando determinado jogador empurrões, tapas, sacudidelas, e mesmo socos e pontapés, sem ferir e sem dolo de dano à vítima (= jogador adversário ou companheiro, ou torcedor, etc.), há a caracterização contravencional de vias de fato.

Nos crimes dolosos (lesões corporais leves) e culposos (lesões corporais culposas) e nas contravenções penais (qualquer delas) há que observar-se os termos da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, no que for de específica pertinência (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais).

Assevera o art. 61 da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais:

"Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial."

As contravenções penais, a lesão corporal dolosa leve e a lesão corporal culposa, nos termos do art. supracitado, caracterizam-se como infrações de menor potencial ofensivo. Nos dois casos de lesões corporais (= dolosa leve e culposa), como bem se infere do art. 129, "caput" e 129 § 6º, do Código Penal, a pena máxima é de 1(um) ano de detenção.

A autoridade policial, ao tomar conhecimento da ocorrência de alguma infração de menor potencial ofensivo, na prática esportiva, deverá - efetuadas as formalidades legais - lavrar termo circunstanciado e encaminhá-lo imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais, se e quando necessários.

Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso de ali comparecer, não se importará prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. É o que dispõe o art. 69 e parágrafo único da citada Lei, que cuida dos Juizados Especiais Criminais.

A prisão em flagrante não será imposta e a fiança não será exigida, repita-se, sempre que o autor do fato típico, considerado de menor potencial ofensivo, for - após a lavratura do termo circunstanciado - imediatamente encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer.

Ocorrida qualquer infração de menor potencial ofensivo, portanto, nos campos de futebol, a autoridade policial competente providenciará (deverá providenciar) todos os atos necessários para o devido cumprimento do estatuído no art. 69 e parágrafo único da L. 9.099, de 26 de setembro de 1995.

O esporte é vida, saúde, lazer. E, além disso, ganha-pão para os profissionais. A violência, dentro dele, é uma infração penal que necessitará - sempre -, formal e legalmente, ser tratada como tal pelas autoridades competentes. Ou se acaba com a violência no futebol ou, mais dias menos dias, a violência acabará com o futebol. É por isso que a luta contra a violência é a legítima defesa do jogador leal, do craque, daquele que tem, no campo, intimidade e fidelidade amorosas tão-somente com a bola. Por essa atitude de legítima defesa todos somos responsáveis. A culpa pela proliferação da violência do futebol cai bem, como já se disse, para todos: para os árbitros, física e tecnicamente (às vezes, moralmente) despreparados; para o torcedor que, na cadeira ou na arquibancada, não sabe o que é "torcer"; para o jogador profissional que precisa se conscientizar que está sendo pago única e exclusivamente para jogar; para os dirigentes e treinadores que, ao invés de invadirem os campos e pressionarem os árbitros e bandeirinhas, precisam aprender a transmitir o verdadeiro espírito esportivo e o verdadeiro sentido de liderança; e para a justiça desportiva e a justiça comum, que têm que se conscientizar que a impunidade é a maior e a mais eficiente incentivadora da violência.

A luta contra a violência, vale repetir, é a legítima defesa do jogador-arte, dos "bons" espetáculos esportivos, do chamamento das torcidas aos estádios e, enfim, da sobrevivência verdadeira do futebol...

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