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ALGUMAS QUESTÕES RELATIVAS AOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA

Hugo de Brito Machado
Juiz (aposentado) do Tribunal Regional Federal da 5ª Região
Professor Titular de Direito Tributário da UFC

Sumário: 1. Introdução; 2. O dever de informar e o direito ao silêncio; 3. O prévio exaurimento da via administrativa; 3.1. O lançamento tributário; 3.2. Equívocos da jurisprudência; 3.2.1. Quanto à apropriação indébita de tributo; 3.2.2. Quanto à condição de procedibilidade; 3.3. Relevância do conceito jurídico tributo; 3.4. O art. 83 da Lei nº 9.430/96; 4. Distinção entre crime e erro na interpretação da lei tributária; 5. O crime de não pagar tributo; 5.1. Apropriação indébita; 5.2. A curiosa jurisprudência do TFR; 5.3. Situação peculiar do ICMS; 6. Inexigibilidade de outra conduta.

1. INTRODUÇÃO

O estudo dos crimes contra a ordem tributária ganha maior importância na medida em que aumentam os segmentos do Fisco e do Ministério Público que acreditam ser possível aumentar a arrecadação tributária pela intimidação, e por isto cuidam de tornar efetiva a aplicação das sanções penais.

Muitas são as questões ainda sem equacionamento adequado. Algumas já levadas aos tribunais, e malresolvidas. Outras ainda sequer submetidas ao crivo do Judiciário. Poucas versadas pela doutrina, que se divide entre tributaristas e penalistas; os primeiros, despreparados para enfrentar questões penais, e os últimos, geralmente desprovidos de conhecimentos do Direito Tributário e por isto mesmo sem condições de enfrentar o tema com segurança.

Como questão fundamental, coloca-se desde logo a questão de saber a razão pela qual o legislador optou pela criminalização da conduta do contribuinte descumpridor de seus deveres especificamente tributários.

A doutrina espanhola ensina, com inteira propriedade, que "la criminalización de la infracción tributaria puede responder a dos planteamientos diferentes: puede ser el fruto de la convicción de que se ha logrado un sistema fiscal, dentro de lo que cabe, justo, merecedor del respeto de todos y de que, por tanto, la infracción tributaria resulta intolerable, o puede ser el producto de la comprobación estadística de que casi todo el mundo defrauda y que, por consiguinte, es preciso desencadenar el terror penal para que la gente satisfaga los tributos.

El primer planteamiento parece acertado. El segundo inadmisible, porque pretende usar la pena criminal, con fines meramente utilitaristas, para encubrir en definitiva un fracaso del propio sistema fiscal" (1).

Não se pode, a rigor, dizer que o sistema tributário brasileiro é justo. Pelo contrário. Se justa é a tributação proporcional à capacidade econômica, pode-se afirmar que o nosso sistema tributário é injusto.

Por outro lado, o Fisco, no Brasil, costuma descumprir os seus deveres para com o contribuinte. Não nos referimos ao Estado, em sua expressão mais ampla, mas ao Fisco, ou Estado como arrecadador de tributo. Na restituição do indébito tributário, no reconhecimento de imunidades e isenções e na outorga de estímulos legalmente previstos, o Fisco tem pouco ou nenhum apreço pelos direitos do contribuinte (2). Não é razoável, pois, esperar-se que este se sinta estimulado ao cumprimento de seus deveres para com aquele. Além disso, todos reclamam a reforma do sistema tributário, o que parece suficiente para demonstrar que ele não é "merecedor del respecto de todos".

É razoável, portanto, admitir-se que a criminalização do inadimplemento de obrigações tributárias entre nós, infelizmente, representa "el terror penal para que la gente satisfaga los tributos".

Por outro lado, não de pode deixar de reconhecer que a criminalização do inadimplemento de obrigações tributárias pode ter a vantagem de diminuir as inadimplências, pela intimidação dos obrigados, mas tal vantagem, a rigor, é mais aparente do que real, e termina por ser superada por graves inconvenientes, entre os quais podem ser apontados o direito ao silêncio, universalmente reconhecido ao criminoso, a competência privativa do Poder Judiciário para aplicar as sanções penais e as formalidades processuais destinadas a garantir o direito à liberdade e o direito de defesa dos acusados.

De todo modo, cumpre-nos examinar o Direito positivo, posto que a opção do legislador, boa ou má, é fato consumado. Entre as questões relevantes no âmbito dos crimes contra a ordem tributária, destacamos para exame no presente estudo as que dizem respeito: a) às implicações do direito ao silêncio, garantia constitucional em favor dos acusados de práticas de ilícito penal, e o dever do contribuinte de prestar informações ao Fisco; b) à exigência do prévio exaurimento da via administrativa como condição de procedibilidade; c) à distinção, que se impõe, entre o crime de excluir ou reduzir tributo e a conduta decorrente de erro na interpretação da lei tributária; d) à configuração do crime pelo simples inadimplemento de obrigação tributária principal; e, finalmente, e) à ocorrência da justificativa da inexigibilidade de outra conduta, nos casos de dificuldades financeiras do contribuinte.

2. O DEVER DE INFORMAR E O DIREITO AO SILÊNCIO

Ao ensejo das XVI Jornadas Latino-americanas de Direito Tributário, em Lima, dias 5 a 10 de setembro de 1993, realizou-se seminário sobre "O Delito Tributário", no qual o Professor NUNO SÁ GOMES suscitou a questão de saber como fica o dever do contribuinte de prestar informações ao Fisco, diante do direito ao silêncio, constitucionalmente assegurado aos acusados em geral.

Segundo o ilustre Professor da Faculdade de Direito de Lisboa, que é autor de várias obras jurídicas, uma das quais sobre "Direito Penal Fiscal", publicada em 1982, na medida em que o ilícito tributário é definido como crime, tem-se um conflito entre o dever de prestar informações ao Fisco, e o direito de não se auto-incriminar, constitucionalmente assegurado aos acusados de práticas delituosas.

A questão é de grande importância e está a merecer a análise dos juristas, em face do ordenamento de cada país, levando-se em conta, especialmente, a hierarquia das normas.

Como registra PINTO FERREIRA, o acusado tem o direito de não se auto-incriminar, pois o direito que tem de não dizer a verdade é um direito, já reconhecido por MONTESQUIEU, à la defense naturelle (3).

No Brasil o direito ao silêncio está expressamente assegurado pela vigente Constituição Federal: "O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado..." (4). Para CELSO RIBEIRO BASTOS, cuida-se de explicitação, fiel à rica tradição constitucional de proteção ao acusado, da garantia que se encontrava embutida no art. 153 da Constituição anterior, e está implícita nos incisos LIV e LV do art. 5º da atual (5).

ADA PELLEGRINI GRINOVER, eminente Professora de Direito Processual Penal e membro do Ministério Público do Estado de São Paulo, doutrina, com propriedade: "O réu, sujeito da defesa, não tem obrigação nem dever de fornecer elementos de prova que o prejudiquem. Pode calar-se ou até mentir". E ainda: "O retorno ao direito ao silêncio, em todo seu vigor, sem atribuir-lhe nenhuma conseqüência desfavorável, é uma exigência não só de justiça, mas sobretudo de liberdade. O único prejuízo que do silêncio pode advir ao réu é o de não utilizar a faculdade de autodefesa que se lhe abre através do interrogatório. Mas quanto ao uso desta faculdade, o único árbitro há de ser a sua consciência, cuja liberdade há de ser garantida em um dos momentos mais dramáticos para a vida de um homem e mais delicado para a tutela de sua dignidade" (6).

Ocorre que, segundo o Código Tributário Nacional, "para os efeitos da legislação tributária, não têm aplicação quaisquer disposições legais excludentes ou limitativas do direito de examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos comerciais ou fiscais dos comerciantes, industriais ou produtores, ou da obrigação destes de exibi-los" (7). E a Lei nº 8.137, de 27 de janeiro de 1990, define como crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, mediante as condutas que indica, entre as quais omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias (8).

Leva problema, assim, a questão de saber se tendo ocorrido uma das condutas definidas como crime contra a ordem tributária, o contribuinte, a quem a mesma pode ser imputada, está obrigado a prestar informação capaz de consubstanciar prova daquele cometimento criminoso.

Parece-nos que as informações, cuja prestação constitui dever do contribuinte, e em alguns casos até de terceiros, e cuja omissão ou falsidade configuram crime, nos termos do dispositivo acima citado, são apenas aquelas necessárias ao lançamento regular dos tributos. Não quaisquer outras informações necessárias ao exercício da fiscalização tributária. Tal compreensão concilia o dever de informar ao Fisco, com o direito ao silêncio, assegurado constitucionalmente a todos os acusados. O dever de informar precede a configuração do crime contra a ordem tributária. Cometido este, seu autor não tem o dever de prestar informação alguma, útil para a comprovação daquele cometimento, que configuraria auto-incriminação.

De todo modo, se outra interpretação se pretender dar às disposições das leis ordinárias pertinentes ao dever de prestar informações ao Fisco, de sorte a ver configurado o dever de informar mesmo para aqueles que, já autores de crime contra a ordem tributária, possam ter naquelas informações uma forma de auto-incriminação, ter-se-á configurado o conflito entre normas. Normas infraconstitucionais, assim interpretadas, estarão em conflito com norma da Constituição, e tal conflito haverá de ser resolvido pela prevalência da norma hierarquicamente superior.

Assim, a conclusão será sempre a de que o contribuinte não tem o dever de prestar informações ao Fisco, que possam servir como prova do cometimento de crime contra a ordem tributária, ou qualquer outro.

A não ser assim, ter-se-ia violado o princípio da isonomia, posto que aos autores de quaisquer crimes, por mais hediondos que sejam seus cometimentos, sempre é assegurado pela Constituição o direito ao silêncio, vale dizer, o direito de não se auto-incriminarem. O contribuinte não há de ser tratado diferentemente.

3. O PRÉVIO EXAURIMENTO DA VIA ADMINISTRATIVA

3.1 O Lançamento Tributário

Questão das mais sérias é que diz respeito à independência das instâncias, invocada como fundamento para a propositura de ação penal contra contribuintes, contra os quais não há nem mesmo lançamento tributário.

O exame adequado dessa questão exige que se faça, de início, uma reflexão sobre o lançamento, e sua relevância no contexto do tipo penal definido no art. 1º da Lei nº 8.137/90.

Nos termos do Código Tributário Nacional "compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade cabível" (9).

É através do lançamento tributário que se faz a constatação da ocorrência dos fatos que nos termos da lei fazem nascer as obrigações tributárias. Constatada a ocorrência de um fato gerador de obrigação tributária principal, é cabível o lançamento do tributo correspondente. Constatada a ocorrência de um fato gerador de obrigação acessória, e constatado também o inadimplemento desta, é cabível o lançamento concernente à penalidade respectiva.

Embora diga o art. 142 do Código Tributário Nacional que no lançamento é proposta a aplicação da penalidade, penso que no lançamento ocorre mesmo a aplicação, e não apenas uma proposta de aplicação. "Se o lançamento constitui o crédito tributário, tornando líquida e certa a obrigação correspondente, não se compreende que apenas proponha a aplicação da penalidade cabível, conforme o caso. O que na verdade a autoridade administrativa faz, com o lançamento, é aplicar a penalidade. Somente assim é possível determinar o montante do crédito tributário. Sem que esteja aplicada a penalidade não é possível calcular o montante do crédito tributário de cuja constituição se cogita, porque a penalidade pecuniária integra esse montante." (10)

Assim, nenhuma autoridade que não seja a responsável pela administração tributária pode dizer que alguém é devedor de tributo. Ou, mais exatamente, nenhuma autoridade, que não seja a competente para fazer o lançamento, pode dizer que ocorreu certo fato gerador de obrigação tributária, ou, em conseqüência, dizer que ocorreu o inadimplemento de uma obrigação tributária, seja acessória ou principal.

A atividade de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional da autoridade administrativa. Assim, se esta não efetua o lançamento tributário, sendo este cabível, deve ser responsabilizada por sua falta. Inadmissível, porém, que outra autoridade, por mais importante que seja, pratique aquela atividade.

3.2 Equívocos da Jurisprudência

3.2.1 Quanto à apropriação indébita de tributo

Pensamos que a jurisprudência cometeu um equívoco quando admitiu que o não-recolhimento de tributo pode configurar apropriação indébita independentemente do dolo específico.

Realmente, o antigo Tribunal Federal de Recursos, por seu Plenário, rejeitou a argüição de inconstitucionalidade do dispositivo do Decreto-Lei nº 326/67, que definiu como apropriação indébita o não-recolhimento de tributo, ao argumento de que "o ‘caput’ da referida regra legal não criou novo tipo penal, limitando-se a proibir que o contribuinte empregue o produto do imposto em fim outro que não seja o recolhimento aos cofres da União e cujo descumprimento reúne em si os elementos do crime definido no art. 168 do estatuto" (11).

Depois, todavia, chegou a afirmar, por sua 2ª Turma, que a configuração da apropriação indébita do IPI não exige o dolo específico, porque, não obstante o art. 2º do Decreto-Lei nº 326/67 tenha utilizado a rubrica do art. 168 do Código Penal, "criou um delito de formato próprio, com tipicidade determinada" (12).

A evidência do equívoco dispensa comentários. Ou o Decreto-Lei instituíra tipo novo, e neste caso seria inconstitucional, ou então a configuração da apropriação indébita não poderia prescindir do dolo específico.

3.2.2 Quanto à condição de procedibilidade

Tem entendido a jurisprudência que a conclusão do procedimento administrativo não constitui condição de procedibilidade para a ação penal nos denominados crimes fiscais. Em outras palavras, a propositura da ação penal seria independente da conclusão do processo administrativo de apuração e exigência do crédito tributário. Ou processo de lançamento do tributo.

É possível, assim, que em certos casos alguém seja condenado pelo cometimento do crime de sonegação fiscal, embora a autoridade da Administração Tributária, a única competente para dizer se ocorreu fato gerador de obrigação tributária, chegue depois à conclusão de que não há tributo devido.

O equívoco é evidente.

A solução coerente é, sem dúvida, a de se considerar que a propositura da ação penal deve ficar condicionada ao julgamento definitivo da ação fiscal, na esfera administrativa. Somente depois que a Administração tiver certeza da ocorrência da sonegação do tributo, vale dizer, tiver certeza de que a ação do contribuinte teve por escopo evitar o pagamento de tributo devido, é que se justifica a propositura da ação penal.

Pode-se, é certo, argumentar que a lei não coloca o julgamento administrativo da ação fiscal como condição de procedibilidade da ação penal, e que as instâncias administrativa e penal são independentes. Tal argumento, todavia, não obstante acolhido no passado pela jurisprudência, tem hoje validade apenas aparente. Já não resiste ao exame feito em face da Constituição Federal de 1988.

Com efeito, a vigente Constituição Federal, além de garantir que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens, sem o devido processo legal (13), determina que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" (14).

No devido processo legal compreende-se o direito à elaboração regular e correta da lei e de sua razoabilidade, de sua aplicação através do instrumento hábil, que é o processo, no qual deve ser garantida a igualdade entre as partes (15).

Não se pode considerar razoável a lei que admita a propositura da ação penal, por crime de sonegação fiscal, se ainda nem a própria Administração pode afirmar a existência de sonegação, porque ainda não encerrado o processo administrativo a este fim destinado. Muito menos que esteja sendo a lei corretamente interpretada. E menos ainda que exista igualdade entre as partes, no processo administrativo fiscal, se o Estado-Fisco dispõe, antes de apurados os fatos, do instrumento de atemorização, que é a ação penal, posto que a ameaça de seu uso constitui, induvidosamente, forma evidente de coação.

A ampla defesa, a seu turno, resta sacrificada com a ameaça do uso da ação penal contra o contribuinte, que se verá na iminência de ser condenado, de perder a própria liberdade, antes mesmo de serem examinadas, na esfera administrativa, as razões que tenha oferecido para demonstrar a improcedência da imputação a ele feita pelos agentes do Fisco.

Não pode haver dúvida, portanto, de que a propositura da ação penal só é possível depois de feito, definitivamente, o lançamento tributário, sobretudo porque, com a Lei nº 8.137/90, o resultado passou a integrar o tipo penal (16). Sem tributo devido não pode haver o crime.

3.3. Relevância do conceito jurídico "tributo"

É da maior relevância notar-se que, nos tipos penais supressão ou redução tributo, e apropriação indébita de tributo, o conceito jurídico do que seja o tributo é decisivo.

Assim, não pode ser considerado autor desses crimes o contribuinte que agiu na firme e sincera convicção de que, na hipótese considerada, não havia tributo, mas exigência fiscal ilegal ou inconstitucional.

Sem a consciência de estar suprimindo, ou reduzindo, um tributo (prestação legalmente devida, nos termos da Constituição), não se completa o tipo penal de que se cuida.

Por outro lado, sem que a autoridade competente tenha afirmado que o tributo é devido, não se pode excluir o direito que tem o contribuinte de questionar a validade jurídica da exação.

Imaginemos que um contribuinte, por não recolher contribuições de seguridade, que o INSS pretende haver sobre a remuneração de autônomos e dirigentes de empresas, tivesse sido denunciado, e condenado. Ou que isto tivesse ocorrido com um contribuinte que não recolheu a contribuição para o FINSOClAL. Seria redobrado absurdo admitir-se tais ocorrências, quando em seguida o Supremo Tribunal Federal declara serem tais exações inconstitucionais.

3.4 O Art. 83 da Lei nº 9.430/96

O art. 83 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, estabeleceu que "a representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária definidos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, será encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente".

Cuidou, então, o Procurador-Geral da República de promover Ação Direta de Inconstitucionalidade daquele dispositivo, que estaria em conflito com o art. 129 da Constituição, que coloca entre as funções institucionais do Ministério Público "promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei" (17). O STF indeferiu a medida liminar, sendo o voto do Relator, Min. JOSÉ NÉRI DA SILVEIRA, no sentido de que a norma atacada não impede o Ministério Público de promover a ação penal, independentemente da representação fiscal.

Não temos dúvida de que o dispositivo legal supratranscrito instituiu uma condição de procedibilidade. É certo que os crimes contra a ordem tributária estão definidos como de ação pública, e que o Supremo Tribunal Federal já afirmou a inexistência, nesses crimes, de condição de procedibilidade, vale dizer, afirmou serem tais crimes de ação penal pública incondicionada. É fácil de ver-se, porém, que tudo isto se encontra no plano da lei ordinária.

Pelas razões já aqui expostas, parece-nos que nos crimes contra a ordem tributária a definição, pela autoridade administrativa, da existência ou não de tributo devido é indispensável para que se tenha aperfeiçoado o tipo penal. A decisão da autoridade administrativa, portanto, consubstancia questão prejudicial, como bem entendeu a ilustre Juíza SILVIA STEINER, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (18), que acolheu inteiramente a tese por nós sustentada (19).

Seja como for, o importante é notar-se que a Constituição não define crimes de ação pública, nem diz quando deva existir, ou não, condição de procedibilidade. Tudo isto é matéria de lei ordinária. Não há, portanto, razão nenhuma para se questionar a constitucionalidade do art. 83 da Lei nº 9.430/96.

4. DISTINÇÃO ENTRE CRIME E ERRO NA INTERPRETAÇÃO DA LEI TRIBUTÁRIA

O Egrégio Supremo Tribunal Federal já decidiu:

"Crime Contra a Ordem Tributária – ICMS – Alíquotas Diferenciadas – Creditamento – Fraude. A fraude pressupõe vontade livre e consciente. Longe fica de configurá-la, tal como tipificada no inciso II do artigo 1º da Lei n 8.137, de 27 de dezembro de 1990, o lançamento de crédito, considerada a diferença das alíquotas praticadas no Estado de destino e no de origem. Descabe confundir interpretação errônea de normas tributárias, passível de ocorrer quer por parte do contribuinte ou da Fazenda, com o ato penalmente glosado, em que sempre se presume o consentimento viciado, e o objetivo de alcançar proveito sabidamente ilícito." (20)

O Ministro Relator do caso assim manifestou-se:

"Conforme salientado pelo Juízo, ao proferir sentença absolutória, passou-se ao Fisco a informação de que o creditamento resultava da diferença de alíquota, isso mediante lançamento, claro e preciso, nas respectivas guias. Como, então, falar em fraude? O que houve foi impropriedade da interpretação conferida à legislação tributária, e isso pode acontecer, sem configuração de crime, na vida de qualquer contribuinte e, também, no atuar da própria Fazenda, o que, aliás, é repetitivo." (21)

"Adquiriram-se mercadorias em outro Estado da Federação, pagando alíquota interestadual (menor incidente neste tipo de operação). Por ocasião da compensação com o ICMS, devido em razão da revenda no Distrito Federal aos seus clientes/consumidores, utilizaram como crédito não apenas o valor destacado na nota fiscal da compra emitida pelo fornecedor alienígena (valor efetivamente recolhido), mas uma quantia maior, encontrada mediante a aplicação da alíquota interna (maior), como se este é que houvesse incidido na operação anterior, e não aquela.

Com isso, creditou-se de valor superior ao que seria de direito, o que implicou recolhimento do ICMS menor do que o realmente devido (redução de tributo)." (22)

Desse julgado conclui-se que a Corte Maior admitiu, no caso, que o erro de direito não-penal exclui o caráter criminoso da conduta do contribuinte que suprimiu, ou reduzir tributo em face de errônea interpretação da lei tributária.

Aliás, a não ser assim, estaria implantado um regime de verdadeiro terrorismo fiscal, no qual o contribuinte teria de primeiro consultar a repartição competente para poder decidir sobre a conduta a adotar nos casos, muito freqüentes, de lei tributária de duvidosa interpretação.

5. O CRIME DE NÃO PAGAR TRIBUTO

5.1 Apropriação Indébita

O tipo penal hoje por muitos considerado como de simples conduta, de não pagar, começou como apropriação indébita. O legislador colhia a idéia de que o apropriar-se de coisa alheia é socialmente reprovável.

A Lei nº 8.137, de 27 de novembro de 1990, estabelece que constitui crime contra a ordem tributária "deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado na condição de sujeito passivo da obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos" (23).

A existência de dispositivos legais semelhantes, anteriores e posteriores a este, bem revela a segurança dos que manejam a elaboração das leis, na incriminação da conduta nessa norma descrita. Talvez em razão de tal insegurança, somada ao desejo persistente de impor ao contribuinte inadimplente pena corporal, levou o legislador a definir o mesmo fato, em tempos idos da ditadura, e agora, recentemente, como caracterizador da situação de depositário infiel.

Ambas as definições, como autor de crime, e como depositário infiel, de uma situação que não vai além de simples inadimplemento de dívida, constituem o que em boa doutrina se pode chamar de fraude à Constituição.

Realmente, a Constituição Federal estabelece que "não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel" (24). Como ensina CELSO RIBEIRO BASTOS, nos tempos modernos já não se aceita mais prisão do devedor inadimplente, sendo cabível, em seu lugar, a execução do patrimônio do responsável por dívida (25).

Não se diga que a vedação constitucional, porque se reporta apenas à prisão civil, não se opõe à lei ordinária que define como crime o inadimplemento de dívida, para reprimi-lo com pena prisional. Não é assim. A lei ordinária que define como crime o simples inadimplemento de uma dívida, e comina para o que nele incorre pena prisional, conflita com a norma da Constituição que proíbe a prisão por dívida. Há, na verdade, evidente antinomia entre a norma da Constituição que proíbe a prisão por dívida, e aquela, da lei ordinária, que define como crime o inadimplemento de dívida, para viabilizar, dessa forma, a aplicação da pena prisional ao devedor inadimplente.

Toda norma jurídica alberga valor, cuja presença permite que se estabeleça a coerência do sistema jurídico. Na proteção de cada bem jurídico, de cada bem da vida, tem-se de evitar a incongruência. Por isto, doutrina USERA: "La sistematicidad en el ámbito constitucional alcanza su mayor relieve en la necessaria ponderación de bienes igualmente protegidos" (26).

A norma da Constituição que proíbe a prisão por dívida alberga direito à liberdade, colocando-o em patamar superior ao direito de receber um crédito. Isto não quer dizer que o direito de receber um crédito restou sem proteção jurídica. Quer dizer que essa proteção não pode chegar ao ponto de sacrificar-se a liberdade corporal, a liberdade de ir e vir. Limita-se, pois, à proteção do direito de receber um crédito ao uso da ação destinada a privar o devedor de seus bens patrimoniais, a final desapropriados no processo de execução.

O sistema jurídico, considerados os valores que alberga, é necessariamente coerente. Suas eventuais antinomias devem ser eliminadas, e quando em conflito se encontram normas de diversa hierarquia a eliminação se faz sem qualquer dificuldade, porque "o juiz, quando se encontrar frente a um conflito entre uma norma superior e uma norma inferior, será levado a aplicar a norma superior" (27).

É certo que estamos falando de inadimplência de dívida, e não de práticas fraudulentas. "O que o bom senso repele é responder a liberdade individual pelo pagamento de dívidas, salvo em caso de fraude. A liberdade poderá responder pela fraude, e não pela dívida em si." (28)

Não se diga que o não-pagamento do IPI, ou do Imposto de Renda retido na fonte, ou de contribuições de seguridade social descontadas de empregados, corresponde à apropriação indébita, definida no art. 168 do Código Penal. O contribuinte não se apropria, porque o dinheiro lhe pertence e não ao Fisco, que é simplesmente credor.

No Imposto sobre Produtos Industrializados, o sujeito passivo da relação obrigacional tributária é o comerciante, o industrial, ou o produtor, nos termos do art. 51 do Código Tributário Nacional. O que este recebe de quem adquire seus produtos é o preço destes. Há, entre o comerciante, industrial ou produtor, e seu cliente, que lhe compra os produtos, uma relação jurídica de direito comercial, que não se confunde com a relação jurídica de tributação. Tanto assim é que se o comprador não paga, nem por isto deixa o contribuinte de ser devedor do tributo.

Pode, é certo, estar o valor do IPI incluído no preço dos produtos vendidos. Isto, porém, não faz do industrial mero intermediário, nem do comprador do produto contribuinte do IPI. O valor dos salários pagos pelo industrial também pode estar incluído no preço dos produtos, como o valor do aluguel do prédio em que é instalada a indústria, o valor da conta de energia elétrica, o valor das matérias-primas, entre outros. Nem por isto, se pode afirmar que o comprador dos produtos é o empregador, nem o inquilino, nem o cliente da empresa fornecedora de energia, ou da empresa fornecedora de matérias-primas. Nem se pode dizer que o preço dos produtos é formado necessariamente de todos esses elementos.

"O preço pode, de fato, ser assim decomposto, mas não formado, pois o seu ‘quantum’ é fixado pelas condições de mercado, podendo dar maior, menos ou nenhum lucro e até mesmo prejuízo." (29)

No caso do Imposto de Renda na fonte, ou das contribuições descontadas dos salários, embora possa parecer que há uma apropriação, na verdade ela não existe, porque o empregador, ao pagar o salário, ou a fonte, ao pagar o rendimento sujeito à incidência do imposto, na verdade está pagando parte de seu débito, e fica a dever o restante, a ser pago ao Fisco. A relação jurídica, em qualquer desses casos, com o Fisco, é uma relação de direito obrigacional. A ação executiva, a ela correspondente, é pessoal. Jamais a ação executiva é real. A distinção já foi apontada, com propriedade, por PONTES DE MIRANDA (30).

Em qualquer caso, se o contribuinte escritura, em sua contabilidade, os valores a serem pagos ao Tesouro, resta ausente o elemento subjetivo do tipo penal. O dolo é a "vontade livre e consciente de o sujeito se apropriar de coisa alheia móvel de que tem a posse ou detenção" (31). E com essa vontade, que é elementar na apropriação indébita, é inteiramente incompatível a escrituração contábil, como débito do contribuinte, a crédito do Tesouro, das quantias correspondentes aos tributos a serem pagos.

5.2. A Curiosa Jurisprudência do TFR

O antigo Tribunal Federal de Recursos chegou a afirmar, por sua 2ª Turma, que na apropriação indébita do IPI não exige o dolo específico, porque não obstante tenha o art. 2º do Decreto-Lei 326/67 tenha utilizado a rubrica do art. 168 do Código Penal, "criou um delito de formato próprio, com tipicidade determinada" (32). Curioso, porém, é observar que o mesmo Tribunal, por seu Plenário, já havia rejeitado a argüição de inconstitucionalidade do mesmo Decreto-Lei, ao argumento de que o "caput" da referida regra legal não criou novo tipo penal, limitado-se a proibir que o contribuinte empregue o produto do imposto em fim outro que não seja o recolhimento aos cofres da União e cujo descumprimento reúne em si os elementos do crime definido no art. 168 do estatuto" (33).

Se as normas que dizem ser crime o não-recolhimento de tributos nos prazos legais criam tipo novo, diverso da apropriação indébita, são inconstitucionais porque afrontam a proibição de prisão por dívida. Se apenas explicitam que esse não-recolhimento configura o tipo do art. 168 do Código Penal, sua aplicação somente há de se dar quando presentes todos os elementos daquele tipo, entre os quais o dolo específico, a vontade consciente de fazer próprio o dinheiro do Fisco. E tal elemento, como se disse acima, é inteiramente afastado pela escrituração contábil da dívida, que há de ser entendida como induvidosa e até eloqüente manifestação que é, do propósito de responder pela dívida. Propósito que, evidentemente, não se concilia com a vontade de apropriar-se.

5.3. Situação Peculiar do ICMS

No que diz respeito ao ICMS, pode-se acrescentar ainda um argumento: tal imposto não é cobrado do adquirente da mercadoria, posto que ele integra o preço desta. Tanto assim é que a jurisprudência já entendeu ser o valor do ICMS parte integrante da base de cálculo de contribuições que incidem sobre o faturamento, ou receita bruta das empresas.

6. INEXIGIBILIDADE DE OUTRA CONDUTA

É sabido que o crime, salvo disposição legal em sentido contrário, somente se configura quando presente o dolo. Relevante, portanto, é a questão de saber qual a qualificação jurídica adequada para a conduta descrita no inciso II do art. 2º da Lei nº 8.137/90, tendo-se em vista que o deixar de recolher pode resultar:

a) do propósito puro e simples de não pagar o tributo, tendo o contribuinte condição de fazê-lo normalmente, sem qualquer prejuízo para suas atividades normais; ou, então,

b) da absoluta impossibilidade material de fazer o pagamento, à míngua de recursos financeiros; e, finalmente,

c) de decisão do contribuinte de utilizar os recursos de que dispõe para efetuar outros pagamentos, indispensáveis para que sua empresa continue em atividade.

As circunstâncias referidas nas letras b e c, acima, podem resultar de culpa do contribuinte, que administrou seu patrimônio com imperícia, ou imprudência, ou de situação adversa que pode ocorrer mesmo para os que administram suas empresas com perícia e prudência indiscutíveis. Situação adversa que pode decorrer inclusive de culpa do próprio Fisco credor, como no caso de execução fiscal indevida, com a penhora de contas bancárias do contribuinte.

Seja como for, se o deixar de recolher é omissão que independe da vontade, o omisso não comete crime, porque crime nenhum pode ser cometido contra a vontade do agente. Não existe crime de configuração inteiramente objetiva.

Apenas na hipótese da letra a, acima, tem-se configurado o crime, posto que presente o elemento subjetivo que o integra, porque na hipótese da letra c tem-se configurada a justificativa da inexigibilidade de outra conduta, como a seguir será demonstrado.

Na hipótese da letra c, acima, em que o não-recolhimento do tributo se deve a decisão do contribuinte de utilizar os recursos financeiros para pagar empregados e fornecedores, com o fito de evitar o fechamento da empresa, não se tem uma situação igual àquela em que o não-pagamento se deve à ganância do contribuinte, que pretende apenas aumentar o seu capital de giro durante o tempo que lhe permite a ineficiência dos meios de cobrança coercitiva, simplesmente para aumentar os seus lucros.

Alguns membros do Ministério Público, e do Judiciário, entendem que o não-pagamento, pura e simplesmente, de tributos, como o IPI, o ICMS, o Imposto de Renda retido na fonte e as contribuições de seguridade social descontadas dos empregados, configura o crime previsto no art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.137. E os mais rigorosos afirmam que o contribuinte, diante da situação financeira difícil, não pode deixar de pagar aqueles tributos para pagar empregados, ou fornecedores, de sorte que tal circunstância, geralmente alegada pela defesa, não tem relevância na configuração do crime.

Não importa questionar aqui a posição da culpabilidade em relação à estrutura jurídica do crime. Seja como for, o que não é razoável é equiparar-se a conduta daquele que deixa de pagar em razão de dificuldades financeiras que colocam em risco a continuidade da empresa, à daquele que deixa de pagar movido apenas pela ganância.

O juízo de reprovabilidade da conduta é relevante, e no âmbito deste não se pode desconsiderar a diferença, absolutamente inegável, entre as duas situações aqui colocadas. Seja na configuração da ilicitude, seja no âmbito da culpabilidade, a influência da dificuldade financeira da empresa é circunstância relevantíssima, que não pode ser desconsiderada, a menos que não se leve em conta o princípio da razoabilidade.

Merecem, portanto, especial registro as decisões dos Tribunais Federais da 3ª (34) e da 4ª (35) Regiões, adotando a tese da inexigibilidade de outra conduta, para absolver empresários que, em face de dificuldades financeiras cabalmente demonstradas, deixaram de recolher contribuições à Seguridade Social.

Tais decisões acolheram a doutrina de ASSIS TOLEDO, segundo a qual "cabe ao juiz que exprime o juízo de reprovação avaliar a gravidade e a seriedade da situação histórica na qual o sujeito age, dentro do espírito do sistema penal, globalmente considerado: sistema que jamais pretende prescindir de um vínculo com a realidade histórica na qual o indivíduo age e de cuja influência sobre a exigibilidade da ação conforme o direito o único juiz deve ser o magistrado".

Tem-se de entender, outrossim, que a inexigibilidade de outra conduta não se restringe àquela situação na qual o empresário, por ser pobre, precisa da empresa como condição de sobrevivência pessoal. Se há risco para a sobrevivência pessoal, configura-se o estado de necessidade, que embora esteja contido na inexigibilidade de outra conduta com esta não se confunde, exatamente porque mais abrangente.

Com efeito, diz-se que há inexigibilidade de outra conduta nas circunstâncias em que não é razoável exigir-se do homem médio conduta diversa daquela que adotou. No estado de necessidade é assim. Não é razoável exigir-se daquele que age em estado de necessidade conduta diversa. Mas a inexigibilidade de outra conduta vai além, para alcançar situações não abrangidas pelo estado de necessidade.

Em uma empresa, grande ou pequena, em crise financeira, na qual o não-pagamento do tributo é a única forma de permitir o pagamento de empregados e fornecedores, e assim a única alternativa para manter a empresa funcionando e tentar a superação da crise, nem sempre se configura o estado de necessidade. Este configurado estará apenas nos casos em que o empresário, o agente, depende da empresa para sobreviver, por isto mesmo equiparáveis ao do tradicional exemplo do furto para matar a fome. Para a configuração da inexigibilidade de outra conduta, porém, basta que o pagamento do tributo não seja possível sem que daí decorra o encerramento da atividade, sem que se questione a situação pessoal do empresário.

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