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A NATUREZA DA VIOLÊNCIA UMA ABORDAGEM CRÍTICA

Jeanine Nicolazzi Philippi(*)


O desencanto do mundo - metáfora moderna por excelência - apreendido na lenta passagem de uma ordem recebida para um universo marcado pelas produções humanas, relativizou a idéia de uma determinação transcendente, traduzida em termos de lei absoluta, capaz de conduzir o destino dos sujeitos e de orientar suas trocas sociais. O ocaso dos ritos divinos permitiu a liberação dos potenciais cognitivos e propiciou a ressignificação dos mercados simbólicos a partir de operações racionais.

O desenvolvimento das formas operacionais de pensamento delineava a perspectiva de supressão das irracionalidades, mediante a decodificação de princípios que, libertos do jugo dos mandamentos divinos e das determinações sobrenaturais, habilitavam-se a oferecer soluções para conter o arbítrio dos poderes instituídos e o lado sombrio da natureza humana.

A metáfora da luz, emergindo após um longo período de sombra, se impôs universalmente. Nessa via, a retórica, que desde a filosofia socrática foi concebida como um antídoto contra a força(), traduzia a renúncia da agressividade e o triunfo da razão. O flagelo cósmico, representado pela ordem antiga, foi contraposto , através dessa redução simbólica, à emergência de um novo dia marcado pelo advento de uma ordem "legítima", cujos enunciados fundadores impunham-se, com força de lei, contra a miséria e a violência.

Mas, apesar da aparente ruptura com a liturgia antecedente que veiculava a possibilidade da salvação do homem pela religião, os projetos racionais subseqüentes, centrados na concepção de um progresso ilimitado da humanidade, continuaram investindo na "construção" imaginária de um futuro radiante, projetado em um horizonte sempre distante e fugidio, convertendo-se, por fim, na face secular da idéia de providência divina. Esse movimento paradoxal - representado por compromissos emancipatórios que, certamente, contribuíram para reorganizar os níveis de composição social e de equilíbrio do poder, e pela manutenção operativa de determinadas "potências obscuras" - não foi, entretanto, capaz de conter a busca, sempre reativada, da redenção humana deslocada para um topos mítico, situado além da história que reedita a utopia arquetípica da edificação do paraíso terrestre.

A crença no progresso linear da humanidade, veiculada nas mais diversas formas de planejamento racional da ordem social e da produção do conhecimento, reflete, sobretudo, as falácias dos sistemas onicompreensivos que procuram explicar a totalidade dos processos sociais e dos papéis dos seus atores. As vias dogmáticas, que ao longo da era moderna pretenderam traçar os contornos de uma natureza humana eterna e imutável, tradutora da essência dos deslocamentos do sujeito no mundo, acabaram por gerar, na contraface desse projeto, heteronomias muito mais sutis do que aquelas que os mentores do novo tempo procuraram exorcizar. De fato, o aperfeiçoamento dos processos cognitivos não correspondeu a um aprimoramento ético da humanidade. Os campos de concentração, a ameaça de aniquilação nuclear, o incremento das práticas racistas e discriminatórias, a devastação ambiental conformam uma rede de violência difusa, propagada em escala mundial, que expõe, às portas do século XXI, a parcela de sombra que persiste sob a luz de uma razão pensada como infinita e absoluta.

Hoje, portanto, quando os grandes relatos da modernidade enfrentam as duras réplicas da história, percebe-se que as promessas não cumpridas pela razão estão sendo , cada vez mais, acolhidas por discursos questionáveis que procuram recolocar a possibilidade de fundamentação das trocas sociais em bases transcendentes e dogmáticas. Tal apelo pode, atualmente, ser identificado em projeções que abarcam desde os fundamentalismos religiosos até a "teologia" do mercado incorporada ao movimento de uma economia global.

A história, com efeito, não progride de forma linear; ao contrário, ela produz sentidos marginais que revelam a impossibilidade de classificar a pluralidade das expressões humanas em padrões exclusivos de representação. Em um momento no qual as paisagens familiares estão sendo relativizadas, faz-se necessário destacar, para além das conseqüências discursivas que, ao longo dos tempos, asseguraram a verdade e a pertinência dos programas oficiais, a implausibilidade da elaboração de um saber hegemônico sobre a essência do sujeito e da sociedade. A indeterminação que, segundo Kant, distingue a insociável sociabilidade dos seres humanos() não permite, portanto, a tematização da violência a partir de uma natureza de atos e de sujeitos que, em virtude de sua especificidade, não se conformam, a priori , a padrões de representação válidos em todo tempo e espaço.

Certamente, não se pode englobar o conjunto das ações praticadas por indivíduos, grupos e instituições - que veiculam traços implícitos ou explícitos de violência - em planos precisos de homogeneizações discursivas sustentadas em uma suposta condição humana inalterável. Os atos violentos - como também aqueles que os executam ou suportam os seus efeitos - não possuem uma natureza determinada. A violência, conforme argumenta Sônia Felipe, deve ser compreendida, antes de tudo, como uma ação momentânea ou "... uma série de atos praticados de modo progressivo com o intuito de forçar o outro a abandonar o seu espaço constituído e a preservação da sua identidade como sujeito das relações econômicas, políticas, éticas, religiosas e eróticas... No ato de violência, há um sujeito ... que atua para abolir, definitivamente, os suportes dessa identidade, para eliminar no outro os movimentos do desejo, da autonomia e da liberdade."() Assim, como pensar a ação supressora do sujeito que suporta o peso da sua inscrição em uma perspectiva diversa das abstrações mutiladoras e das reduções simbólicas que pretendem identificar os traços violentos do homem através de determinismos naturais, históricos, econômicos ou sociais?

Essa questão, será trabalhada neste texto em uma perspectiva interdisciplinar()que articula um diálogo possível entre a psicanálise e a filosofia política, no qual a dialética comum às paixões da alma e da cidade será destacada com o intuito de identificar as tensões que operam no limite entre força e símbolo, esclarecendo alguns elementos pouco problematizados da barbárie(). Para além do horror de um corpo lacerado, tal leitura cruzada procura enfatizar outras situações, como a fome, a miséria, a desigualdade na distribuição dos benefícios sociais que traduzem uma forma de violência específica ligada à transgressão da lei simbólica, ou seja, o signo que distingue, metaforicamente, o plano da mediação entre os homens.

A discussão dos impasses gerados no limite entre a ética e a violência é retomada pelo discurso psicanalítico a partir do lugar e função do sujeito, sustentada em dois pressupostos heterogêneos e conflitivos: o corpo pulsional e a ordem simbólica. O primeiro remete ao território anárquico das pulsões() , ou seja, das forças parciais persistentes na exterioridade do psiquismo humano, enquanto o segundo funda a constituição do ser desejante no campo do Outro(), distinguindo um eixo alteritário sem o qual a sexuação() do corpo e o advento do sujeito seriam impossíveis. Essa divisão estrutural() revela, por sua vez, a incompletude de um ser que, para se constituir, necessita apelar a um Outro que o redimensiona enquanto criação do desejo e não da necessidade.

Para a teoria psicanalítica, contudo, enfatizar o desejo humano não significa "... discipliná-lo nem tampouco fazer dele - da sua satisfação - uma apologia estética. Não se trata de uma filosofia da vida nem de uma tomada de posição nas alternativas da moral vigente. Há uma mutação da problemática. O que a invenção de Freud articula para o sujeito é um dispositivo onde, ‘se ele quiser’ fazer a experiência da sua incompletude e de sua exclusão do saber, terá a possibilidade de eventualmente tirar algumas conseqüências e advir onde o seu gozo o fixava."() Ao indicar o ponto impossível do gozo, inscrito em um momento de suspensão no qual a lei simbólica emerge como mediação entre a força e a representação, a experiência analítica destaca um instrumento teórico interessante para orientar incursões que extrapolam o campo da clínica, na medida em que remete o ser humano ao confronto com o limite das suas possibilidades, no qual a ética e a violência se impõem indicando o traçado dos possíveis caminhos de uma existência complexa e precária.

Força, símbolo e lei. Esta tríade, que Freud destaca na estruturação subjetiva do ser humano, pode ser igualmente identificada na teoria contratualista - marca indelével da história das organizações políticas modernas - que pretendeu delimitar as condições de possibilidade do pacto social mediante a explicitação de princípios legitimadores do poder civil. Quando a explicação acerca da origem divina das normas destinadas a reger o gênero humano começou a perder prestígio, foi pensada a ficção do contrato para explicar o momento estruturante do laço social, que colocou um termo nas condições primevas do convívio humano - caracterizadas pelo estado de natureza, no qual todos possuíam o direito sobre todas as coisas, inclusive o corpo do outro - e estabeleceu, na forma da lei, os limites da sociabilidade . A condição natural de liberdade absoluta foi, então, substituída por um estado social de direitos e deveres que igualava os contratantes. Para Hobbes, o medo da morte fez com que os indivíduos constituíssem uma mediação, um poder simbólico, comprometido com a garantia da paz e da segurança contratadas no pacto originário. Nesse sentido, a perda de liberdade sofrida pelo homem na passagem do estado de natureza para a sociedade justifica-se em nome da obrigação do soberano em preservar uma sociabilidade segura(). Dessa forma, para impedir que a resolução dos conflitos fosse dada exclusivamente pela utilização da violência e que o poder continuasse concentrado nas mãos dos mais fortes, o contrato foi articulado como uma proposta de estruturação de um espaço igualitário, representativo dos interesses nele implicados, indistintamente. No transcorrer desse processo, a força bruta - signo da dominação peculiar ao estado de natureza - converteu-se em lei.

Essa lei, apesar de não possuir uma forma unívoca de expressão, traduz, em suma, o fundamento ético de uma sociedade e os seus interditos fundamentais. Para Kant, a lei não é algo transcendente. A indeterminação natural dos homens os distingue não apenas como criaturas da necessidade mas, sobretudo, como seres da liberdade, dotados de uma vontade que os coloca na posição de legisladores. Os humanos, portanto, segundo Kant, são os únicos animais que vivem sob a representação de leis, ou seja, colocam as suas próprias regras e as seguem por dever. Nessa perspectiva, a abertura incerta, ditada pelas múltiplas possibilidades da existência humana, articula-se com ideais e valores que permitem ao sujeito esboçar os contornos de um destino comum mediatizado por uma lei universal que os iguala em dignidade.

Assim, o que se coloca em questão é justamente o sentido dessa lei, a sua dimensão simbólica. Hobbes - trabalhando a inserção do homem em sociedade - e Freud - pesquisando os embates do sujeito consigo mesmo - destacaram a importância da lei na organização social e na estruturação subjetiva individual. Para eles, a lei representa um limite, não meramente repressivo, que possibilita a emergência do sujeito e a formação do cidadão. Hobbes, como foi visto, sustenta a inscrição da lei a partir do temor da injúria ao corpo. Freud, na sua leitura desse argumento hobbesiano, traduz o medo da morte em termos de exigências narcísicas - ligadas ao horror diante do esfacelamento da imagem e do desaparecimento do desejo - que invocam a submissão da subjetividade à lei simbólica que marca o limite entre a força e a representação.

Todavia, esses autores estavam igualmente conscientes de que a atitude dos homens frente à lei não é indiferenciada; sabiam, portanto, que não há nada que assegure um respeito idêntico, por parte de todos, às normas estabelecidas, uma vez que estas são postas e mantidas, em última instância, em razão da sua própria transgressão. Nesse sentido, então, Hobbes afirma a necessidade da espada para conter as violações do contrato. Freud, entretanto, argumenta que o temor da sanção não é suficiente para coibir as pulsões dos sujeitos e esgotar os (des)caminhos do desejo. Tal dedução remete à necessidade de uma negociação incessante entre os humanos, em relação à perda da plenitude do gozo, e expõe o equilíbrio precário estabelecido entre as forças equivalentes no registro simbólico que pode ser rompido a qualquer momento.()

A descrição do sujeito elaborada ao longo da teoria psicanalítica enuncia a impossibilidade de representá-lo como uma interioridade absoluta na medida em que a subjetividade remete sempre a um sentido de exterioridade, a uma instância mediadora que articula as escolhas do sujeito e as relações sociais. A ordem simbólica, portanto, contrapõe-se ao sistema das pulsões operando como "instância legiferante" que busca regulamentar a anarquia daquelas forças constantes que imprimem uma marca característica ao psiquismo humano. Todavia, apesar desse sinal sensível, a psicanálise revela, igualmente, a persistência de algo que, a partir do corpo, não se inscreve como sujeito e resiste à absorção pelo Outro, denunciando uma desarmonia constitutiva das relações intersubjetivas caracterizadas pelo investimento permanente em distinguir uma diferença face à universalidade do espaço social.()

O ser humano, de fato, não "reconhece" facilmente os obstáculos impostos à fruição do seu gozo(). O engano narcísico que se instaura a partir do reflexo da imagem do Outro indica, antes de tudo, que o desejo do homem é o desejo do Outro, ou seja, é como Outro que ele deseja. Esse momento da estruturação subjetiva do sujeito, explica Lacan, é marcado pela primeira captação imaginária na qual se delineia a dialética das identificações relacionadas ao fenômeno da percepção precoce, na criança, da forma humana. O júbilo triunfante do pequeno ser diante da imagem especular evoca o dinamismo afetivo centrado em uma imago, uma unidade ideal sumamente valorizada em virtude da desolação que marca os primórdios da existência humana. Assim, é nessa espécie de encruzilhada estrutural que a teoria lacaniana procura situar as discussões em torno da agressividade humana, implicada com a formação do ego do sujeito e a eleição dos objetos significativos ao desejo. Como adverte Lacan, a "... relação erótica na qual o indivíduo se fixa em uma imagem que o aliena de si mesmo, é a energia e a forma onde toma sua origem essa organização passional a qual se chamará eu. Essa forma se cristalizará, com efeito, em uma tensão conflitiva interna do sujeito, que determina o despertar do seu desejo pelo objeto do desejo do outro: aqui o concurso primordial se precipita na competição agressiva, e dela nasce a tríade do próximo, do eu e do objeto, que estilhaçando o espaço da comunicação especular, se inscreve no sujeito segundo um formalismo próprio..."() A agressividade, nesse sentido, configura uma dimensão estrutural de um ser que se constitui através da miragem do outro, e, por isso mesmo, não pode ser reduzida a um resíduo eliminável da estrutura do sujeito, produzido a partir da frustração de uma necessidade qualquer, que levaria o indivíduo a uma "regressão" e, dessa forma, à agressão. Ao contrário, ela traduz uma tendência correlativa à identificação narcísica que determina a estrutura formal do ego humano.

De fato, explica Freud, os homens não são criaturas gentis que, no máximo, podem defender-se quando atacadas, mas seres aos quais os dotes pulsionais lhes imprimem uma significativa cota de agressividade, cujos efeitos podem ser apreendidos na apropriação que fazem dos outros, utilizando-os não apenas como um ajudante ou objeto sexual, porém como um outro qualquer sobre o qual a descarga pulsional efetiva-se de diversas formas, como na exploração do trabalho, nas humilhações, torturas e mortes. A agressividade é intrínseca às funções do eu do homem, ou seja, uma estrutura distinguida por uma tensão agressiva, por uma intenção de agressão. "Tensão no sentido de oposição, já que o outro sempre se opõe, disputa o mesmo lugar do eu. Para o eu humano só existe um lugar possível: se eu não estou certo, se não ocupo o lugar daquele que está certo, então... estou errado e é o outro quem está certo; para o eu, é como se o outro tivesse se apropriado desse lugar... Só há um lugar buscado pelo eu, um lugar onde habita a perfeição, a mesma perfeição experimentada quando no estádio do espelho, uma imagem total, completa, perfeita vem unificar uma experiência fragmentária... Tensão também no sentido de rigidez, porque essa tensão fria, paralisante, é uma espécie de morte que coloca o eu no constante competir com seres imaginários...()

Essa especificidade da condição humana reflete-se, por sua vez, no movimento pendular , na oscilação entre o amor e ódio, que distingue a relação dos sujeitos com os semelhantes. O outro é amado na medida em que seu olhar oferece um suporte à imagem do corpo; e odiado porque é percebido como uma totalidade depositária de um gozo que escapa ao próprio sujeito. As trocas humanas comportam, com efeito, uma certa marca persecutória: o outro sempre porta consigo uma promessa de amor ou uma ameaça possível que evoca no indivíduo o drama inicial da sua existência. O caos primordial - projeção dos medos, dúvidas e ruína possível do sujeito face a um outro que pode se revelar como perseguidor e malfeitor - permanece presente de maneira alucinante ou encantadora em cada gesto e pensamento humanos. O homem, portanto, está constantemente confrontado com a possibilidade de desintregar-se a qualquer momento, desde que a miragem fantasmática do carrasco converta-se em "realidade".

A psicanálise, entretanto, diferencia para além das especificidades do eu ideal, um outro topos, o ideal do eu como função regulamentadora das identificações egóicas que invoca um "terceiro lugar" - a lei e os valores culturais - a partir do qual o sujeito pode encontrar uma outra via para expressão da sua agressividade.() "Enquanto no ego ideal o eu se coloca como sendo o próprio ideal, não existindo, então, qualquer instância transcendente no estabelecimento do ideal; no ideal do ego o eu se submete a um outro valor que funciona como mediação entre os sujeitos. O que implica dizer que a alteridade como valor encontra-se apenas a nível de ideal do ego onde existe efetivamente o registro da intersubjetividade, o que não ocorre no ego ideal."() Pode-se dizer, enfim, que o ideal do eu, conecta a subjetividade individual com a normatividade cultural, ligada, desde o início da aventura humana, à representação da lei que distingue os limites traçados entre a força e o símbolo, dois ângulos de um problema que marcou a filosofia política desde Hobbes e que continua a colocar, na atualidade, os termos básicos sobre os quais a modernidade se constituiu.

Neste final de século, a emergência de expressões renovadas de racismo, nacionalismo e guerras, expõem à luz do dia o potencial agressivo inerente ao ser humano que o compele, em situações propícias, a explorar, roubar, escravizar e matar o seu semelhante, indicando, portanto, que os objetivos emancipatórios que caracterizaram o percurso dos ocidentais modernos - traduzidos por ideais de igualdade, progresso e liberdade - não foram suficientes para imunizar a condição pulsional do sujeito...

Na sociedade brasileira, por exemplo, o assassinato cruel de crianças, jovens e adultos praticado em proporções assustadoras, como também as situações extremas de fome e de miséria, constituem emblemas significativos da complacência dos homens face ao horror. A destruição, segundo Jurandir Freire Costa, "... às vezes pode tornar-se o único objetivo capaz de empolgar povos e indivíduos. O gozo com a morte, o sofrimento e a degradação de si ou do outro é uma das características da espécie humana"(), facilmente percebida em situações históricas nas quais o relativismo ético adquire um caráter próximo do macabro.

Em um contexto no qual a apropriação, a pilhagem e até mesmo a dizimação do outro convertem-se em algo banal, o contrato cede lugar a uma condição de guerra, na qual predomina a lei que impõe aos homens o dever de "levar vantagem em tudo". Ora, apenas "eu" posso levar vantagem em tudo, mas sempre à custa do outro. Assim, como toda lei que se preze, esta se impõe, igualmente, de forma universal. () Nesse processo, os fraudadores do INSS, os banqueiros corruptos, os assassinos dos sem terra, os exterminadores de plantão, os parlamentares que trocam seus votos por um favor qualquer , dentre outros, passam, então, a constituir uma "nova" normalidade que, aos poucos, vai conquistando o respaldo legal. Nesse sentido, alerta Maria Rita Kehl, que "... se existem marginais hoje no Brasil, talvez seja gente sem charme e sem carisma. Como os professores da rede pública, que continuam ensinando coisas com que ninguém mais se importa, a troco de salário nenhum. Como esses homens que puxam pelas ruas carroças com jornal velho, num simulacro de trabalho digno, com que, por algum motivo obscuro, eles preferem se identificar. De marginais e trabalhadores, o Brasil ainda está cheio e eles vão... morrer anônimos sem ter tido direito aos seus 15 minutos... de cidadania."()

Certamente, o futuro não pertence a ninguém, mas pode-se argumentar com Freud que, enquanto os homens continuarem incapazes de perceber a virulência das práticas mortíferas que se escondem sob a máscara das ilusões narcísicas, não haverá possibilidade de pensar um contrato efetivo, para além das regras que determinam a sua encenação...

(*) Doutoranda em Direito - Universidade Federal de Santa Catarina

(1)LACAN, Jacques. Escritos. 17 ed. Trad. Tomás Segovia. México: Siglo Veintuno, 1994. p. 99

(2)BRAZIL, Horus Vital. As ideologias do desejo, utopias e inconsciente político. In: FRANÇA, Maria Inês et alii. Desejo, barbárie, cidadania, Petrópolis: Vozes, 1994. p. 39

(3)FELIPE, Sônia. Violência, agressão e força. In: FELIPE, Sônia et PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. O corpo violentado: estupro e atentado violento ao pudor. Florianópolis: Gráfica/UFSC, 1996. p. 25

(4)A proposta interdisciplinar lançada neste trabalho não implica a identidade do objeto teórico específico a cada campo de conhecimento envolvido nas articulações que se seguem, mas uma interpretação diferenciada das questões referentes à ética e à violência, recortada a partir da operacionalização de conceitos fundamentais das disciplinas eleitas nesta proposta de leitura cruzada.

(5)LACAN, op. cit., p. 114

(6)As pulsões não devem ser consideradas como força simbólica ou psíquica, mas como uma via que se abre marcando as fronteiras que distinguem a ordem da natureza (corpo) do universo cultural. BIRMAN, Joel. Psicanálise, ciência e cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 125

(7)O Outro, nesse sentido, é anterior ao sujeito. Mesmo antes de nascer, o ser humano já faz parte de um mundo de palavras que o distingue enquanto lugar do desejo. Esse universo de relações que o precede fala dele de inúmeras maneiras através de toda uma história de gerações e lendas familiares. Esse mar de significações no qual o sujeito é mergulhado e que traduz o lugar no qual a linguagem se inscreve e para o qual o indivíduo se dirige para conferir autoridade ao seu discurso, é designado por Lacan como Outro. Universo de representações de coisas e de afetos, o vasto domínio do inconsciente se reatulaizará sempre em relação à palavra dirigida a esse Outro, a "outra cena" que encerra em si todo mistério e heterogeneidade do ser falante.

(8)É importante ressaltar que o sexual para a teoria psicanalítica não se reduz ‘... às necessidades orgânicas da reprodução; refere-se mais às condições de gozo das quais apenas uma das conseqüências diz respeito à continuação da espécie." POMMIER, Gérad. Freud apolítico? Trad. Patrícia Cleitone Ramos. Porto Alegre, Artes Médicas, 1989. p. 15

(9)A estrutura pode ser definida "... como um conjunto aberto em relação ao qual se dá a posição do sujeito. Conjunto de que? Conjunto de signos da linguagem, pode se chamar Outro ou ainda mãe. Como qualificar os signos da linguagem que constituem esse conjunto? Antes de tudo, pela característica que nenhum deles pode definir a si mesmo. Cada um deles remeterá a um outro. Deste modo, tal conjunto merece com razão ser qualificado de aberto." Idem, p. 40

(10)ROCHA, Antônio Carlos. O discurso analítico: obstáculos à sua transmissão. In: FRANÇA, op. cit., p. 90

(11)Nesse sentido, é importante destacar que as transgressões cometidas pelos súditos seriam, então punidas com as leis ditadas pelo soberano; mas, quando o não cumprimento do contrato parte do soberano, a questão fica mais difícil de ser esclarecida. Em um primeiro momento do pensamento contratualista - Hobbes - , não se admitia a hipótese de injustiça cometida pelo soberano em virtude da sua própria natureza. Todavia, no transcorrer do desenvolvimento dessa corrente da filosofia política moderna, tal possibilidade foi admitida desde que a paz e a segurança dos indivíduos estivessem sendo ameaçadas, pois esse fato , em si mesmo, denuncia a falência do soberano no cumprimento dos deveres que lhe competem. Fica assim subscrita a limitação da onipotência, uma vez que o contrato não é passível de ser rompido apenas por uma das partes, a mais "sensível" às paixões, isto é, os súditos; ele pode, também ser quebrado a partir do pólo responsável por sua vigilância na medida em que esta parte contratante é igualmente composta por homens, sujeitos às mesmas paixões que animam os súditos.

(12)BIRMAN, Joel. Retórica e força na governabilidade - sobre a política e o poder no discurso freudiano. In: FRANÇA, op. cit., p. 74

(13)BIRMAN, op. cit., p. 127

(14)O gozo, segundo Nasio, pode ser entendido como "... uma moeda que tem duas caras: a cara da dor e a cara da satisfação. O gozo é tanto satisfação como dor... Uma dor e uma satisfação parcial para evitar uma dor maior... um gozo parcial para evitar um gozo maior... Para Freud, o prazer é a diminuição da tensão. O prazer é temperar a tensão e, justamente aquilo que ameniza a tensão é o que coloca uma barreira ao gozo... O prazer é baixar a tensão; o gozo é maximizar a tensão. O gozo é o ponto máximo em que o corpo é posto à prova. Quiçá o exemplo mais sensível de que o corpo é posto à prova é a dor." Pode-se dizer então... "o prazer é a barreira do gozo e o desejo é um desejo que se satisfaz parcialmente com objetos do prazer". NASIO. Juan D. El magnifico niño del psicoanalisis. Buenos Aires; Gedisa, 1988. p. 21/22

(15)LACAN, op. cit., p. 102

(16)GOMES, Mauro Hermes. Agressividade, violência. Florianópolis: mimeo, 1995. p. 4/5

(17)Idem, p. 6

(18)BIRMAN, op. cit., p. 132

(19)COSTA, Jurandir Freire. O Laboratório de assassinos. In: Folha de São Paulo, São Paulo, 31/03/96. p. 5-3

(20)GOLDENBERG, Richard. Uma nação de espertos. In Folha de São Paulo, São Paulo, 21/04/96. p. 5-3

(21)KEHL, Maria Rita. Marginais, nunca mais. In: Folha de São Paulo, São Paulo, 21/04/96 . p. 5-3

Retirado de: http://infojur.ccj.ufsc.br/arquivos/Revistas_do_CCJ/Sequencia_numero33/Philippi.A_NATUREZA_DA_VIOLÊNCIA-UMA_ABORDAGEM_CRITICA.html