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A reforma penal e os  crimes contra a dignidade sexual.

Eneida Orbage de Britto Taquary

Desde os primórdios de nossa civilização o homem buscou formas de controlar a sua conduta, prevendo regras básicas de convivência e respeito. Para limitar os seus impulsos sexuais, evitando assim que ocorressem desavenças entre os demais componentes do grupo, o homem experimentou as primeiras formas de casamento, estabelecendo sanções cruéis para aqueles que desrespeitassem a família e também a moralidade sexual.

No Brasil a proteção à liberdade sexual remonta às ordenações do Reino, onde não havia distinção entre os crimes que ofendiam a moralidade sexual e a família. No Código Criminal do Império o referenciado bem jurídico foi protegido no título relativo aos crimes contra a segurança individual e delimitados entre os crimes contra a segurança da honra.

Note-se que ao lado do crime de estupro, que exigia o defloramento da mulher virgem menor de dezessete anos ou então que a cópula carnal fosse obtida por meio de violência ou ameaça, contra mulher honesta, dispunha também o legislador os crimes de calúnia e injúria. Obviamente, confundia-se o atributo individual liberdade sexual com a honra.

Nosso Código da República persistiu no equívoco, estabelecendo os crimes de violência carnal, defloramento e estupro entre os que ofendiam a segurança da honra e honestidade das famílias e o ultraje público ao pudor, desprezando a prevalência do bem jurídico liberdade sexual sobre a honra e a família. Inovou, apenas, quando permitiu que no crime de violência carnal a vítima fosse pessoa de ambos os sexos, restringindo, entretanto, no estupro que a vítima fosse mulher virgem.

A Consolidação das Leis Penais não previu nenhuma alteração substancial na tutela dos crimes supracitados, o que somente veio a acontecer no Código Penal em vigor, que passou a prevê-los entre os crimes contra os costumes, dividindo-os em seis capítulos: crimes contra a liberdade sexual (estupro, atentado violento ao pudor, posse sexual mediante fraude e atentado ao pudor mediante fraude); sedução e corrupção de menores; rapto; disposições gerais aos crimes sexuais; lenocínio e tráfico de mulheres e ultraje público ao pudor.

O legislador penal tratou a liberdade sexual não como atributo da pessoa humana, mas no contexto da moralidade pública sexual, levando em conta, na abordagem dos referidos crimes, o efetivo dano causado não só a vítima, mas à coletividade.

Inovação grandiosa ocorrerá com a alteração da Parte Especial do Código Penal, por intermédio do projeto, ainda não encaminhado ao Congresso Nacional. Neste o título Crimes Contra os Costumes será substituído pelo título Crimes Contra a Dignidade Sexual.

Passa o legislador a tutelar a liberdade sexual, protegendo-a como atributo da pessoa humana e não mais sob o enfoque da moralidade pública sexual, prevendo-a no Título II, logo após os Crimes Contra a Pessoa.

Além da mudança do nomen iuris do título, o legislador manteve no capítulo referente aos crimes contra liberdade sexual os já conhecidos crimes de estupro e atentado violento a pudor, alterando o crime de rapto, para possibilitar a proteção a pessoa do sexo masculino, excluindo conseqüentemente a expressão ‘‘mulher honesta’’. Ao inovar incluiu os crimes mental ou incapacidade de oferecer resistência, a satisfação da própria lascívia e, finalmente, o crime de assédio sexual.

O capítulo hoje denominado Lenocínio e Tráfico de Mulheres passa a denominar-se Da Exploração Sexual, prevendo crimes que visam a punir o incremento, a organização e exploração da prostituição alheia feminina ou masculina.

Acompanhando a legislação internacional em quase unanimidade, não prevê o projeto a criminalização da prostituição, mas somente das condutas que visam organizar, dirigir, controlar, recrutar e tirar proveito da prostituição alheia, inclusive com a prática do sexo-turismo e do tráfico de pessoas.

Os crimes de favorecimento da prostituição, casa de prostituição e rufianismo são excluídos, integrando a fórmula genérica do crime denominado lenocínio.

Expurga, ainda, o projeto os crimes de posse sexual e atentado ao pudor mediante fraude, sedução e corrupção de menores, desprezando, sabiamente, o elemento normativo mulher honesta, além dos elementos objetivos fraude, virgindade e justificada confiança, que integram os dispositivos penais acima.

Dentre as causas especiais de aumento de pena que integram o título Crimes contra a Dignidade Sexual, além das já previstas no nosso Código Penal, adicionou-se uma de grande relevância ‘‘se o agente abusa de estado de abandono ou de extrema necessidade econômica da vítima’’. Incluiu-se aqui a conduta daqueles que ‘‘compram’’ crianças e adolescentes de seus responsáveis legais para seviciá-los e prostituí-los, valendo-se da condição de miserabilidade econômica ou desamparado.

Por fim nos crimes que ofendem ao pudor persiste o erro da denominação Ultraje Público ao Pudor, ao invés de Ultraje ao Pudor Público, eis que o bem jurídico tutelado é o puder público, sentimento de vergonha vigente na sociedade, lastreado pelos princípios e valores morais em matéria sexual. Ademais, o ultraje ao pudor, em regra, não é realizado pelo público ou por grande massa de pessoas. Ao contrário, pode atingir o bem jurídico de número indeterminado de pessoas.

Ressalte-se, ainda, que permanecem no capítulo acima os crimes de ato obsceno e escrito ou objeto obsceno. São incluídos os crimes de representação de espetáculo obsceno e o de pornografia infantil, em dispositivos autônomos. O primeiro, todavia, compõe o atual art. 234, parágrafo único, do CP, enquanto o segundo reproduz os arts. 240, 241 e 242 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Adicionou-se ao tipo já existente a expressão representação circense, o que certamente dará ensejo a aplicação dos princípios regentes do conflito aparente de normas, notadamente o da especialidade.

A legislação penal sem dúvida necessitava de alterações para adequar-se aos novos fatos sociais, inclusive à nova roupagem atribuída aos valores éticos e morais sexuais, que são violados com a prática dos crimes sexuais acima mencionados. Não poderiam continuar inseridos no título Crimes Contra os Costumes, porque decorrentes de valores vigentes na década de 1940, logo cinqüenta anos atrás, e ainda porque a proteção à dignidade da pessoa humana, em especial no tocante ao seu direito de escolha e ao livro arbítrio em matéria sexual, é que torna uma sociedade elevada e respeitável em seus valores e princípios éticos e morais.

Eneida Orbage de Britto Taquary
Delegada da Polícia Civil do Distrito Federal e professora de Direito Penal do Centro Universitário de Brasília (Ceub)

Extraído do site do jornal Correio Braziliense

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Fonte: http://www.neofito.com.br/artigos/penal96.htm