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A questão social da segurança

Cristina Zackseski


Quando a sociedade manifesta sua preocupação com o tema da segurança, existe por trás da mensagem um pedido para que os responsáveis pela formulação e condução das políticas de segurança atendam à demanda. E ela pode ser atendida de várias maneiras, quando não é ignorada. Uma das respostas possíveis e freqüentes é a que vai ao encontro dos chamados movimentos de lei e ordem, intensificando-se as ações de natureza repressiva. A outra forma, muito difundida nos últimos tempos, é a de natureza preventiva. Estas distintas abordagens serão utilizadas para o desenvolvimento deste artigo.

No primeiro tipo de resposta temos representada a crença no funcionamento do sistema punitivo, reafirmada pela falsa noção de que os indivíduos transgressores das normas estarão sujeitos aos procedimentos estatais que impedirão que suas ações criminosas prossigam, atinjam membros sadios da sociedade e a coesão da mesma em torno das normas possivelmente violadas. Com isso organizam-se as forças repressivas voltando-as para a própria sociedade na forma de uma violência institucionalizada.

Os fracassos terceiromundistas na ‘‘luta contra o crime’’ são freqüentemente amparados em argumentos como a falta de condições operacionais da polícia, a morosidade da resposta judiciária e a ausência de novos complexos penitenciários para abrigar todos os nossos ‘‘marginais’’.

Alimentamos o sonho de um dia sermos norte-americanos e termos mais de 1,7 milhão de pessoas presas e mais 3 milhões sendo assistidas pelo sistema, seja em liberdade condicional ou sob sursis. Contudo, o sonho americano envolve gastos astronômicos, como os 120 bilhões de dólares investidos no sistema de justiça criminal só no ano de 1996. Nos últimos vinte anos foram inauguradas naquele país, em média, três prisões por mês, sem que isso tenha resolvido o problema da superlotação. Mesmo nos EUA as inversões ao sistema significam menos investimentos em áreas como o da educação e todos esses custos são dirigidos, em sua maior parte, a delitos de menor potencial ofensivo, como demonstram, por exemplo, os 0,1% de prisões para o crime de homicídio (¹).

Essa é a lógica dos programas de tolerância zero, onde acredita-se que exista uma resposta institucional a todo e qualquer ato perturbador da ordem. Isto para quem nunca ouviu falar em cifra oculta da criminalidade, composta por aqueles atos que nunca tiveram registros oficiais.

Como podemos sonhar com tolerância zero num país que há muito não tolera as diferenças e nem mesmo aceita progressos nesse sentido, como claramente demonstram as afirmações de que os Direitos Humanos ‘‘só servem para proteger bandido’’? Este tipo de manifestação reflete o que pensa boa parte da população que de alguma forma desfruta de certas garantias frente à possíveis arbitrariedades, enquanto intolerância significa intensificar as agressões e encarcerar justamente aqueles que não possuem tais garantias.

A intolerância relativa ao problema da segurança também possui outras conseqüências, como a extensão dessa postura aos desafios do cotidiano, ao mesmo tempo em que conseguir controlar eventos perturbadores da tranqüilidade dos governantes não é o mesmo que criminalizá-los e muito menos a resposta para o que provoca a insegurança dos cidadãos. Dizer que controlando a pequena e média delinqüência estaremos controlando também os eventos mais prejudiciais é dizer que a criminalização das pessoas menos requintadas serve de exemplo às demais. Ao contrário, o sistema que radicaliza na atuação direcionada àqueles agentes está apenas deixando bem claro qual é a sua clientela.

Os norte-americanos não são menos fracassados, pois fizeram uma escolha cara e inútil, uma vez que apesar de todos os investimentos a observação do fenômeno criminal registrado não apresenta decréscimos (²). Em se tratando de escolhas, podemos optar por um modelo diferente, que privilegie as ações preventivas. É o segundo tipo de resposta.

Todas as pessoas transgridem normas, nem todas estão à margem, pois a margem é o lugar de muitos, mas não de todos os transgressores. Se existem pessoas à margem, elas devem ser recolocadas e não definitivamente excluídas como indica o caminho mais fácil, nas nem por isso barato, nem mesmo em custos sociais. Pobreza não significa delinqüência, como já foi explicado um dia pela observação da ‘‘criminalidade dourada’’, (até crime de rico tem nome bonito).

A pobreza requer uma tomada de posição no sentido de garantir condições mínimas de participação das comunidades carentes na tomada de decisões diante de problemas consistentes com os seus problemas de segurança. Pensar de outra forma é reafirmar a realidade elitista de quem não tem fome e sofre de insegurança. Quando é que pobre vai poder se preocupar com segurança?

Quando os programas de prevenção acenam com mecanismos que possibilitem condições mais dignas às populações carentes não estão querendo dizer que a pobreza é a causa da criminalidade, e sim que uma sociedade mais equilibrada favorece os processos de interação social que são necessários para criar um ambiente propício para a resolução de questões dessa natureza.

Se não acreditamos em ressocialização, quando encarceramos pessoas, e muito mais grave, um grande número delas, estamos aí demonstrando nosso fracasso. Estamos fechando as portas da sala ‘‘vip’’, onde cabem poucos e é bem mais confortável. A lógica da prevenção é a mesma da tolerância, é dar condições para que as pessoas tenham alternativas de vida condizentes com o desenvolvimento de suas potencialidades. A tolerância envolve diálogo, espaços comuns, ambiente social sadio. Não é um processo simples, nem rápido, nem fácil e, principalmente, exige disposição para resolver um problema ao invés de ocultá-lo.

A segurança é uma questão social onde todos devem estar representados. Dizer que é uma questão de polícia é deixar que algumas pessoas resolvam à sua maneira, seja ou não o que a sociedade toda precisa.

Insegurança é não saber se vai haver espaço para todo mundo. Enquanto este espaço não existir, precisamos ser, pelo menos, tolerantes.

(¹) Dados fornecidos por Eric Lotke, do National Center on Institutions and Alternatives, em seu artigo ‘‘A Dignidade Humana e o Sistema de Justiça Criminal nos EUA’’, traduzido por Ana Sofia Schmidt de Oliveira e publicado na revista º 24 do IBBCrim, p. 39-50.

(²) Op. Cit.
 
 

Cristina Zackseski
Mestre em Direito, professora de Direito Penal e Criminologia do Centro de Ensino Universitário de Brasília (Ceub) e membro do Núcleo de Estudos pela Paz e Direitos Humanos da Universidade de Brasília
 

Extraído do site do jornal Correio Braziliense

retirado de: http://www.neofito.com.br/artigos/jurid165.htm
 
 
 
 

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