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O fetichismo da norma no discurso jurídico

Adriano de León -
Mestre em Sociologia pela UFPB e doutorando em sociologia pela UFPE -
Membro do Conselho editorial da Revista Dataveni@.

Resumo

A partir da sentença da Juíza do Tribunal do Júri de Brasília sobre a morte do índio Pataxó por adolescentes, parte-se para uma reflexão sobre o Direito, a ideologia e o poder. Partindo-se da premissa de que o sistema jurídico reflete uma rede de poderes, a tese da impossibilidade de se discutir sentenças judiciais cai por terra. Discutir uma sentença é, antes de mais nada, enxergar a rede de poderes dos vários grupos que se organizam em sociedade.

Palavras-chaves: poder, sentença, ideologia, discurso

"Há 500 anos caçamos índios e operários,

Há 500 anos queimamos árvores e hereges,

Há 500 anos estupramos livros e mulheres,

Há 500 anos sugamos negras e aluguéis."

(Que País é Este ? de Affonso Romano de Sant'Anna)

As decisões de um juiz ou juíza, diz o bom senso da norma ética, não se discutem; se cumprem, apenas.

A possibilidade da discussão de uma sentença em juízo se dá em dois planos: o plano jurídico, onde as instâncias legais, instigadas por inúmeros recursos, julgam e mantêm o contrato social através de novas sentenças, acórdãos e alvarás; o plano civil, local próprio dos debates da imprensa, dos meios de comunicação, dos autores de artigos, em resumo, dos que têm, de resto, o direito de espernear contra fatos e julgados da mais ilibada procedência legal e também da mais descarada falta de coragem de se opor diante das inumeráveis injustiças.

Este artigo, assim, se propõe a investir contra uma decisão judicial, a priori indiscutível, não para desafiar uns e fiar outros, mas para traçar os rumos do discurso reto e neutro que torna a morte de um índio Pataxó, cremado vivo, uma "lesão corporal grave seguida de morte." A polêmica que levanto, pois, não possui apenas uma "raiz emocional" nas palavras da juíza Sandra de Mello; é, antes, um estudo dos grilhões com os quais insistem em se amarrar aqueles que lidam com o Direito separado e acima das humanidades e das utopias.

A decisão da juíza em tela foi construída, na minha hipótese, a partir de três pontos:

1°) o estrito cumprimento do que reza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), quanto ao adolescente que participou do assassinato;

2°) a crença de que a lei existe por se encontrar estruturada nos códigos e resoluções aceitas pela sociedade, na sua maioria;

3°) o medo de expor o caso ao Tribunal do Júri, instituição perfeita em sua filosofia, mas imperfeita na práxis do cotidiano.

Antes de mais nada, examinarei os atores desta tragédia brasileira, arranjada à base de quatro rodas, cartões de crédito, fogo e mais um mendigo nas ruas da capital federal. De um lado há a classe alta, abasbacada como os seus "meninos" praticantes de um ato só visto nas mais pobres e podres favelas. Inquisidora por tradição, esta esfera social tenta se excluir das crueldades do dia-a-dia evocando os mais variados discursos, que percorrem o politicamente correto, o legal, o institucional, o psicológico e o moral. Do outro lado, no percurso noturno dos adolescentes de futuro garantido, havia um nativo Pataxó, fazendo as vezes de mendigo, ente ignorado pelo Estado, pela cidadania e pelos processos sociais. Mendigo é indigente, é sem nome, sem tempo, sem espaço.

Quanto ao respeito da juíza ao ECA e a crença nos rigores da lei, estes são pontos pacíficos. Contudo, a hipótese do medo do Tribunal do Júri é algo que merece maior reflexão.

Foucault, em debate com Delleuze sobre o Tribunal do Júri e sua gênese, comenta que o tribunal popular não é a expressão da justiça popular, mas, muito ao contrário, tem por função histórica reduzir a justiça popular, dominá-la, sufocá-la, pois

"o aparelho judicial, de uma maneira geral (...) sempre funcionou de modo a introduzir contradições no seio do povo."

Para este autor, o Tribunal do Júri é a maneira mais eficiente de reinscrever a justiça popular no interior de instituições características do aparelho do Estado. Pode parecer contraditório, mas Foucault pretende desta maneira analisar como o Estado e suas instituições se valem de um discurso popular para justificar sua probidade dentro de um sistema judicial "livre de qualquer influência ideológica". A própria disposição do Tribunal do Júri visa conferir ao julgador uma posição de neutralidade eqüidistante dos pólos discordantes do processo. Acima deste a cruz que o redime de possíveis lapsos, ilumina os sete jurados, e define a retidão das falas sacramentadas pelo juramento no Livro Sagrado. Está cego o juiz, pois que só espera pelo pesar de um dos pratos da balança, que ora liberta, ora pune. Seu martelo silencia a massa e anuncia o destino do réu traçado pelo debate dicotômico e teatralizado das partes.

Mas que medo haveria, pois, deste corpo tão bem conformado ? Decerto que, sem o peso da toga sobre seus ombros, a juíza veja claramente que o Tribunal de Brasília, como todos, é um tribunal de uma classe, daquela classe que não se permite ser interposta à julgamento a não ser por si mesma. A este respeito Arruda Jr. Diz que o reflexo de uma sociedade tão estratificadamente repartida é uma justiça que fala por um destes estratos, por aquele que a elaborou e a ela, por força da intelectualidade, lhe conferiu a soberania da exatidão e da neutralidade. Nesta base, é mister perguntar-se quantos índios, quantas pessoas do seio do povo irão compor o conjunto de 7 jurados ? Pergunta-se mais, se ao tempo do julgamento, com a enorme carga dos recursos possíveis, quão vivo estaria o fato do Pataxó queimado vivo na mente dos jurados ?

O destino deste debate incide numa antiga discussão sobre o que significa punir delituosos, e no poder da dosimetria que se faz segundo o enquadramento do delito. Para Foucault, o sistema penal foi criado com endereço próprio. Primeiro, para aqueles que nada fazem, aos quais seriam-lhes imputado as penas de trabalho forçado. Depois, aos indivíduos que possuíam maior mobilidade dentro da sociedade: os violentos, sempre prontos a uma ação armada, a exemplo dos expropriados, dos pequenos ladrões e dos cambistas. Para estes a proposta seria a de isolamento completo, seja nas prisões, seja nos hospitais, seja nos hospícios. Assim, loucos, sifilíticos, prostitutas, mendigos e ladrões podiam ter um mesmo destino para que não pudessem servir de ponta de lança aos movimentos populares. Isto tanto é verdadeiro que, ao alvorecer da revolução Francesa, a Bastilha teve seus loucos, lazarentos e ladrões postos a correr às ruas de Paris, livres do eito dos monarcas, prestes a cair nas armadilhas dos burgueses. Visa o sistema carcerário, com efeito, tornar os trabalhadores, que por ventura pratiquem qualquer delito, uma ameaça potencial ao conjunto da sociedade. Esta é uma das razões que torna o sistema penal sempre discriminante e nunca ressocializante.

Esta instigação promovida pelo sistema judiciário de produzir contradições na sociedade se mascara a partir do estabelecimento de uma moral que se auto-intitula neutra e eternamente vigente. Assim, a decisão não se discute, pois é baseada em princípios morais da maioria da população escrito sob forma de lei. Sua refutação se dá, apenas, via códigos lingüísticos próprios, artimanhas recheadas de latim vulgar, impessoais na sua essência, cinicamente e supostamente desideologizados.

Por que não ouvir as impressões populares ? Por que deixar que a indignidade não passe de um esperneio de curta duração e memória ? Há uma razão de ordem ideológica: os que julgam quase sempre o fazem com toda serenidade, pois que se acham fora da coisa julgada. A mentalidade do neutro se reflete no fato de que alguma decisão só é justa se for moldada por alguém exterior à questão, seja ele um intelectual, um especialista, ou indivíduo de notório saber.

A contra-argumentação à proposta de uma justiça atrelada às instituições, classes e conceitos, é feita pelo discurso da objetividade do Direito. Em sendo objetivo, o Direito não se deixa impressionar pelas contradições da sociedade que o gerou, porque, acima de todas as ideologias, ele visa manter coeso o organismo social. A Sociologia Jurídica tradicional, em prol deste objetivismo, vem, pelas mãos de Durkheim fazer valer a máxima de que um fato social existe por si mesmo. Desta ótica, o Direito pelo Direito é a regra fundamental para solucionarmos debates da natureza deste aqui tratado. Neutralidade, exatidão, coesão e harmonia são códigos lingüísticos que vêm a justificar que uma norma ou decisão só podem ser revistas por outras que as valham. O debate fora do Direito é, ele mesmo, inútil e enraizado em irracionalismos emocionais, dizem aqueles que se valem da lei como unidade moral fundamental. Neste caso, a lei visa separar o joio do trigo, ou seja, os estados normais dos estados patológicos da sociedade, segundo as concepções organicistas vigentes no século XIX , e até hoje no Brasil.

Mialle, investigando a tese de que o Direito é fato social, diz que isto não implica que este seja incompreensível; pelo contrário, uma vez elaborado pela razão humana, o Direito possui uma natureza compreensível, isto é, racional. A tese da racionalidade de Mialle, muito embora indo contra a tese do Direito absoluto, não abandona a idéia do Direito como fonte regulamentadora. Por sua vez, Weber propugna ser o Direito racional por estar ligado a determinados valores, estes também racionais, o que significa na teoria weberiana uma orientação capitalista. Sim, o Direito é racional, mas é racional frente a valores originados de uma classe que legisla, julga e pune. Este afastamento da razão humana em relação à natureza e às coisas resulta dos pressupostos de Kant. Esta razão de valores transformou o Direito natural no Direito racional a partir da obra de Montesquieu. Assim, surge uma razão jurídica única, separada da opinião pública, pois que esta última é desprovida de valores normativos e recheada de valores supersticiosos e pueris.

Há que se fazer neste ponto uma crítica ao Direito Positivista, glorioso nos idos do século passado, mas ainda decantado no Direito Brasileiro, escolas e mestres, salvo raras e brilhantes exceções.

O Direito Positivista se acerca de forma tão umbilical aos seus valores ao ponto de considerar qualquer oposição à lei estabelecida como inexistente, colocando esta oposição no âmbito do debate dos ideólogos, segundo Reale. Nas palavras deste autor, esta oposição se configura num paradoxo. Ora, uma vez não se podendo criticar o Direito Positivista em nome de um Direito ideal, o primeiro se propõe a ser auto-normativo, auto-reflexivo e autogênico. Se o jurista, então, abandonar o terreno científico do Direito Positivista ele volta a ser cidadão e, portanto, se encontra incapacitado de refletir cientificamente sobre o Direito.

Chamo isto de fetichismo da forma. Uma extrema dogmatização de regras e artigos que parecem vir de ninguém. E é este fetichismo da forma que nos faz tentar organizar a sociedade com códigos, os quais as raposas do Direito tratam de desbaratar através de uma avalanche de recursos, de casuísmos, de debates que visam apenas o retardamento da aplicação da lei. Assim foi com o ECA, com a Lei dos Crimes Hediondos, com a Constituição Federal estilhaçada por inúmeras emendas. No caso brasileiro em particular, o empiricismo de Lessa foi levado a extremos. O referido autor propõe a possibilidade de partir de fartos concretos para alcançar as leis por processos de abstração e generalização. No entanto, a retórica casuística levou os nossos legisladores ao exagero de querer resolver problemas sociais pela mão dos preceitos legais.

Além do já descrito, a aplicação da norma jurídica se fundamenta num debate epistemológico sobre direito, sujeito e objeto. Conforme Del Vecchio, o Direito se realiza entre um sujeito e um objeto ao qual se refere, mas com o agravante de que o objeto pode constituir-se em outro sujeito. Quando o objeto é também sujeito, a exemplo do homicídio, se estabelece um vácuo na teoria do Direito objetivo, posto que há um vínculo visível entre um indivíduo perante um outro. Muito embora o objetivismo no Direito tenha a tendência de reificar este sujeito-outro (o corpo, a prova, a coisa roubada...) com extrema racionalidade, os recursos lingüísticos devolvem ao objeto sua natureza subjetiva, sua existência.

Esta contradição se impôs no caso do pataxó Galdino. O ato de atear fogo em mendigos, como foi visto, não é fato novo nem em Brasília, nem em metrópoles como Rio de Janeiro ou São Paulo. Desprovidos de cidadania, o mendigo é claramente tido como objeto, portanto nem inquérito policial há, na maioria dos casos. Galdino, o índio pataxó, ao assumir o papel de mendigo ao dormir num ponto de ônibus da capital federal, podia engordar as estatísticas dos indigentes queimados ou removidos, ou eliminados ou abandonados. Eis que o provável mendigo, depois de morto, deixa de ser objeto de crime, ou mesmo objeto de ruas, para se tornar sujeito-outro, o outro pelo discurso das ONG's, das entidades protetoras dos Direitos Humanos, da imprensa, da população indignada. Mesmo assim, a contradição entre sujeito e objeto pôde ser vista no desmembrar do processo: pela ótica da juíza Sandra de Mello houve intenção na lesão corporal grave, mas não houve intenção de morte - o Pataxó objeto; na visão da Promotora Maria José de Miranda houve homicídio triplamente qualificado - o Pataxó sujeito.

Mas qual a essência de uma sentença como tal ? Neutralidade, acatamento de valores, cumprimentos, ordem e legalidade do Estado de Direito são preceitos que se erguem em nome de um conjunto de valores legais e supostamente éticos, os quais devem promover o bem-estar social. Discordando desta legalidade desprovida de qualquer ideologia, Paupério comenta:

"O Direito hoje abastardou-se e muitas vezes se prostituiu, tornando-se mero instrumento de manutenção do poder, em vez de sua natural limitação."

Não espero, com esta crítica, ter no Direito um vingador da sociedade. Tampouco espero que as decisões dos julgadores se façam ao calor das primeiras impressões. O que vejo, em claro e bom tom, são as estruturas de poder nas quais se pauta o sistema judiciário e seu discurso da formalidade cega.

As referências ao poder no Direito, notadamente na perspectiva tridimensional, partem de três pontos:

1°) o poder como fato externo à norma, para o Positivismo;

2º) o poder como fato independente da norma, para a Sociologia Jurídica;

3°) o poder como meio de alcançar a norma, para os deontologistas.

Neste caso, a teoria tridimensional do Direito reduz o poder à estruturas institucionais, o que torna a norma algo indiscutível. Para as três correntes, a norma se situa num plano diferenciado do plano do poder. Bobbio, em dissonância, chama à baila um quarto ponto, concordando com Foucault, ao afirmar ser o poder um sistema múltiplo, aberto e não dicotômico. Imbricados estão, portanto, o poder e a norma, pois cada norma reflete um micro-poder, regula um segmento, formaliza um contrato. E não só toda norma, mas toda decisão, sentença ou forma jurídica dita perfeita.

O que disto resulta é o esgotamento do discurso neutro do Poder Judiciário e a emergência das ideologias nas decisões judiciais. Pois cada vez mais que novos códigos são criados, novos valores impostos, há um contra-poder que também reprime, prende e pune. Ao lado dos crimes hediondos há os seqüestros, os estupros e linchamentos. Ao lado do ECA há uma guerra de grupos furiosos que queimam mendigos e destroem monumentos históricos. Há um estado dentro do Estado de Direito, o estado do contra-poder que, mesmo negados pelos meios de comunicação, agem e fazem valer seus próprios códigos. O Direito que se julga neutro, enfim, é incapaz de manter o contrato social e as garantias individuais.

Vale, para provocar, uma última questão: que sentença seria prolatada se quatro adolescentes de Brasília, acampados numa reserva Pataxó, no sul da Bahia, fossem queimados por um dos nativos desta tribo ??