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Descodificação Penal e Reserva de Código
 
 

Salo de Carvalho*



Jean Paul Marat, l’ami du peuple, combatido pelo ostracismo forçado e ostilizado pela doutrina jurídico-penal, ao propor seu Plano de Legislação Criminal (1790), elabora profunda crítica ao que denominamos atualmente inflação penal. Percebia o autor que a tendência de superposição de textos legais acabava por gerar deformidades na estrutura rígida do direito penal e processual penal, fundamentalmente pela ruptura com a legalidade e a conseqüente assunção de inúmeras fontes interpretativas na construção dos tipos de injusto e das sanções. O efeito do acúmulo supérfluo de textos seria a perda da eficácia do direito e o desprezo deste por parte da sociedade civil, "(...) porque é necessário que qualquer pessoa entenda e conheça as leis e saiba ao que está submetido no caso de violação (...)".

A exigência de codificação, presente na matriz ilustrada dos pensadores do paradigma racionalista, é opção pelo fortalecimento das garantias, reduzindo os graus de obscuridade, incerteza e arbítrio do poder público.

O ímpeto de produção legislativa e a tendência da utilização simbólica e contingente da lei penal implica graves inconvenientes, pois as novas normas freqüentemente não se adaptam ao sistema. O efeito é a desregulamentação, principal característica do direito penal pré-moderno – modelo inquisitorial.

Marat ao visualizar tal hipótese afirma necessário o incremento de políticas abrogativas como forma de redução dos níveis de instabilidade da legislação – "o fato é que as normas não devem estabelecer senão aquilo que interessa manifestamente ao interesse público; logo, não apenas a norma deve perder eficácia, é necessário abrogá-la expressamente ao contrário de estabelecer novas normas que a modifiquem ou deixá-la cair em desuso: isto implicaria em realidade o inconveniente de as leis não lograrem mais uma precisa aplicação".

Sabemos que a principal reivindicação ilustrada no processo de racionalização foi a imposição de limites materiais (tolerância) e formais (legalidade) à intervenção penal, consagrando a necessidade dos Códigos.

No entanto, se a tendência à elefantíase penal já se apresentava como hipótese real no modelo liberal, a mudança nas funções estatais inicia o processo de consolidação do modelo político-criminal que resultará na atual hiperinflação legislativa, mal que assola grande parte dos sistemas jurídicos ocidentais de tradição romano-germânica.

Percebemos que o direito penal dos novecentos, dado ao processo de alta demanda de criminalizadora deflagrada por movimentos político-criminais defensivistas e autoritários (Lei e Ordem), padece de gradual processo de descodificação (material e processual), acarretando a perda dos limites substanciais entre ilícitos penais e administrativos, lesando a estrutura constitucional garantista forjada no interior dos Estados democráticos de direito.

A tendência dos sistemas punitivos de se transformarem cada vez mais em sistemas de controle administrativizados, e sempre menos penais em decorrência do processo de descodificação, produz crise no conjunto de normas e mecanismos que negam a informalidade de controle social. O sintoma do pampenalismo corrói a estrutura de tutela dos direitos fundamentais, diluindo seus vínculos com os pressupostos garantistas de previsibilidade mínima, racionalidade e cognição.

Devemos observar o fato de que estes modelos penais gigantescos "(...) ofuscaram os confins entre as esferas do ilícito penal e do ilícito administrativo, ou seja, dos ilícitos, transformando o direito penal em uma fonte obscura e imprevisível de perigos para qualquer cidadão, olvidando sua função simbólica de intervenção extrema contra ofensas graves e oferecendo, portanto, o melhor terreno à cultura de corrupção e ao arbítrio".

A elefantíase legal deflagrada pelos discursos de emergência incrementa o que denominamos panoptismo legal, ou seja, o alargamento brutal das possibilidades de incidência da lei penal nas condutas sociais.

Se o pluralismo das fontes do medievo, gerado pela falta de regulamentação legiferante estatal, produziu o discurso bélico genocida da Inquisição, não relutamos afirmar que o processo de sobrecriminalização contemporâneo produz efeito idêntico, pois estabelece desregulamentação das condutas consideradas típicas e das sanções a elas cominadas, bem como a desjudiciarização do processo cognitivo de averiguação do injusto – "a inflação penal provocou a regressão do nosso sistema punitivo a uma situação não diferente daquela pré-moderna (...)". No momento em que qualquer desvio social passa a ser tipificado, independentemente da concreta lesão ao bem jurídico, inúmeras condutas sociais podem ser arbitrariamente consideradas delitivas, restabelecendo estrutura de controle social determinada por poderes policialescos isentos dos vínculos à lei característicos dos sistemas de controle penal e processual penal.

Se a estrutura do direito penal de garantias impõe concepção altamente limitada da intervenção penal (direito penal mínimo minimorum), os modelos autoritários se caracterizam, "(...) pela debilidade ou ausência de limites à intervenção do Estado". A carência de limites à incidência do sistema penal contraporia, portanto, os modelos de Estado de direito e os modelos de Estado absoluto ou totalitário. Notamos, assim, que as estruturas garantistas (minimalista) ou inquisitoriais (maximalista) são identificadas pelo grau de respeito aos critérios de racionalidade e previsibilidade ao arbítrio punitivo, indicando as respectivas opções políticas e os custos a serem pagos por cada uma destas posturas. Afirma Ferrajoli que a certeza perseguida pelo direito penal máximo é que nenhum culpado reste impune, ao custo da incerteza de que em determinado momento algum inocente possa ser punido. A certeza perseguida pelo direito penal mínimo é, ao contrário, que nenhum inocente seja punido, ao custo da eventualidade que algum culpado reste impune. Os dois tipos de certeza e de custos coligados às correlatas incertezas refletem interesses e opções políticas contrapostas: a máxima tutela da segurança pública contra ofensas causadas pelos delitos ou a máxima tutela das liberdades individuais contra lesões impostas por penas arbitrárias.

Podemos, pois, conceber o programa político-criminal minimalista como estratégia para maximizar os direitos e reduzir o impacto do penal/carcerário na sociedade, diminuindo o volume de pessoas no cárcere pela restrição do input do sistema penal através de processos de descriminalização e despenalização.

Importante notar, contudo, que a exclusão das fontes materiais em matéria penal (v.g. analogia, costumes, jurisprudência, doutrina e direito penal comparado) diz tão-somente ao processo de interpretação criminalizadora e/ou penalizadora. Tal proposição não esgota toda esfera penal ao pressuposto da legalidade, reduzindo o campo interpretativo e excluindo as fontes materiais das possibilidades judiciais. Sua negação é restrita aos processos de inclusão, não aos de exclusão da pena ou do delito (v.g. causas supra-legais de exclusão de tipicidade, ilicitude e culpabilidade).

Não basta, porém, fundar o modelo penal garantista-minimalista tão-somente nos signos da descriminalização e despenalização. Se o garantismo pode ser entendido como tecnologia dirigida à minimização do poder punitivo ilegítimo através de vínculos formais e materiais balizados pelo respeito à dignidade humana, não obstante as ações descriminalizantes e despenalizantes é extremamente necessário recompor o sistema penal e processual penal. Cremos que a forma mais adequada seria através do processo de recodificação das leis penais e processuais penais.

Ciente da problemática que invade o universo jurídico-penal, o Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (!TEC) resgata Marat e se alia à proposta de Luigi Ferrajoli, entendendo que o primeiro passo a ser sustentado pelo jurista comprometido com o modelo teórico-penal de garantias é a negação das legislações emergenciais e a defesa urgente de uma recodificação penal e processual penal. Mais, afirma a necessidade de introdução, em sede constitucional, de uma ‘reserva de código’ penal e processual penal como forma de impedir respostas meramente simbólicas do poder público às demandas sociais criminalizantes.

Criar-se-ia, pois, uma meta-garantia destinada a imunizar as garantias penais e processuais penais das reformas assistemáticas e contingenciais, colocando um freio à inflação penal que tem provocado a regressão inquisitiva do direito penal e processual penal, bem como sua substancial descodificação.

A ‘reserva de código’, conforme proposta apresentada pelo !TEC, estabeleceria que todas as normas penais e processuais penais deveriam ser introduzidas no corpo dos Códigos, não podendo ser nenhum dispositivo desta natureza criado senão com a modificação do estatuto principal. A orientação dar-se-ia pelo princípio: "toda matéria penal e processual penal no Código, nada fora do Código". Assim, o legislador ficaria vinculado ao sistema, sendo obrigado a trabalhar pela sua unidade e coerência, consolidando, em decorrência, o princípio da intervenção mínima.

O programa de direito penal mínimo, estruturado em amplo processo de descriminalização e na ‘reserva de código’, qualificaria o potencial garantista do direito que é a radical tutela do pólo mais fraco na relação jurídico-penal: a parte ofendida no momento do delito, o réu no momento do processo e o condenado no momento da execução.