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ALGUMAS CONTROVÉRSIAS DA CULPABILIDADE NA ATUALIDADE





CEZAR ROBERTO BITENCOURT

Doutor em Direito Penal. Coordenador do

Mestrado em Ciências Criminais da PUC-

RS. (ex) Procurador de Justiça. Advogado


 
 


SUMÁRIO: 1. Considerações introdutórias – 2. O finalismo: um divisor de águas na evolução da teoria do delito – 3. Culpabilidade como predicado do crime - 4. O "sabe" e o "deve saber" como moduladores da culpabilidade - 4.1. Postulados fundamentais das teorias do dolo e da culpabilidade; 4.2. Sentido e função das elementares "SABE" e "DEVE SABER", na definição do crime de receptação.
 
 
 
 

1. Considerações introdutórias

Pena e Estado são conceitos intimamente relacionados entre si. O desenvolvimento do Estado está intimamente ligado ao da pena. Para uma melhor compreensão da sanção penal, deve-se analisá-la levando-se em consideração o modelo sócio-econômico e a forma de Estado em que se desenvolve esse sistema sancionador.

Convém registrar que a uma concepção de Estado corresponde uma de pena e a esta uma de culpabilidade. Destaca-se a utilização que o Estado faz do Direito Penal, isto é, da pena, para facilitar e regulamentar a convivência dos homens em sociedade. Apesar de existirem outras formas de controle social – algumas mais sutis e difíceis de limitar que o próprio Direito Penal – o Estado utiliza a pena para proteger de eventuais lesões determinados bens jurídicos, assim considerados, em uma organização sócio-econômica específica.

Estado, pena e culpabilidade formam conceitos dinâmicos inter-relacionados. Com efeito, é evidente a relação entre uma teoria determinada de Estado com uma teoria da pena, e entre a função e finalidade desta com o conceito dogmático de culpabilidade adotado. Assim como evolui a forma de Estado, o Direito Penal também evolui, não só no plano geral, como também em cada um dos seus conceitos fundamentais. Von Liszt já destacava essa circunstância ao afirmar que "pelo aperfeiçoamento da teoria da culpabilidade mede-se o progresso do Direito Penal". E essa afirmação é absolutamente correta, pois destaca um dos pontos centrais da ciência jurídico-penal, a culpabilidade.

Um conceito dogmático como o de culpabilidade requer, segundo a delicada função que vai realizar – fundamentar o castigo estatal – uma justificativa mais clara possível do porquê e para que da pena. Sendo assim, é importante ressaltar, com Hassemer, que a moderna dogmática da culpabilidade procura critérios para precisar o conceito de poder geral em um campo próximo: nos fins da pena. "Evidentemente, os fins da pena, como teorias que indicam a missão que tem a pena pública, são um meio adequado para concretizar o juízo de culpabilidade. Uma concreção do juízo de culpabilidade, sob o ponto de vista dos fins da pena, promete, além do mais, uma harmonização do sistema jurídico-penal, um encadeamento material de dois setores fundamentais, que são objeto hoje dos mais graves ataques por parte dos críticos do Direito Penal".

Atribui-se, em Direito Penal, um triplo sentido ao conceito de culpabilidade, que precisa ser liminarmente esclarecido.

Em primeiro lugar, a culpabilidade – como fundamento da pena – refere-se ao fato de ser possível ou não a aplicação de uma pena ao autor de um fato típico e antijurídico, isto é, proibido pela lei penal. Para isso, exige-se a presença de uma série de requisitos – capacidade de culpabilidade, consciência da ilicitude e exigibilidade da conduta – que constituem os elementos positivos específicos do conceito dogmático de culpabilidade. A ausência de qualquer destes elementos é suficiente para impedir a aplicação de uma sanção penal.

Em segundo lugar, a culpabilidade – como elemento da determinação ou medição da pena. Nesta acepção, a culpabilidade funciona não como fundamento da pena, mas como limite desta, impedindo que a pena seja imposta aquém ou além da medida prevista pela própria idéia de culpabilidade, aliada, é claro, a outros critérios, como importância do bem jurídico, fins preventivos etc.

E, finalmente, em terceiro lugar, a culpabilidade – como conceito contrário à responsabilidade objetiva. Nesta acepção, o princípio de culpabilidade impede a atribuição da responsabilidade objetiva. Ninguém responderá por um resultado absolutamente imprevisível, se não houver obrado com dolo ou culpa.

Resumindo, pelo princípio em exame, não há pena sem culpabilidade. Neste estudo, no entanto, nos ocuparemos somente da primeira acepção, isto é, da culpabilidade como fundamento da pena.

2. O finalismo: um divisor de águas na evolução da teoria do delito

A teoria do delito encontra no finalismo um dos mais importantes pontos da sua evolução. E uma das mais caras contribuições da teoria finalista, que fora iniciada pelo normativismo neokantiano, foi a extração da culpabilidade de todos aqueles elementos subjetivos que a integravam até então e, assim, dando origem a uma concepção normativa "pura" da culpabilidade, a primeira construção verdadeiramente normativa, no dizer de Maurach.

Como se sabe, o finalismo desloca o dolo e a culpa para o injusto, retirando-os de sua tradicional localização, a culpabilidade, com o que, a finalidade é levada ao centro do injusto. Como conseqüência, na culpabilidade, concentram-se somente aquelas circunstâncias que condicionam a reprovabilidade da conduta contrária ao Direito, e o objeto da reprovação repousa no injusto.

As conseqüências que a teoria finalista da ação trouxe consigo para a culpabilidade são inúmeras. Assim, a separação do tipo penal em tipos dolosos e tipos culposos, o dolo e a culpa não mais considerados como formas ou elementos da culpabilidade, mas como integrantes da ação e do injusto pessoal, constituem o exemplo mais significativo de uma nova direção no estudo do Direito Penal, num plano geral, e a adoção de um novo conteúdo para a culpabilidade, em particular.

Jiménez de Asúa, apesar de sua orientação causalista, definiu a culpabilidade do finalismo como "a reprovação do processo volitivo: nas ações dolosas, a reprovabilidade da decisão de cometer o fato; na produção não dolosa de resultados, a reprovação por não tê-los evitado mediante uma atividade regulada de modo finalista".

Se observarmos bem, a culpabilidade sob a ótica finalista, ou melhor, a definição que à mesma se dá, guarda muita semelhança com aquela do normativismo neokantiano. No entanto, não se pode negar, há notáveis diferenças quanto ao conteúdo que ambas definições dão à culpabilidade. A culpabilidade, no finalismo, pode ser resumida como o juízo de reprovação pessoal levantado contra o autor pela realização de um fato contrário ao Direito, embora houvesse podido atuar de modo diferente de como o fez.

Tem sido dominante, entre os penalistas, a idéia de erigir a ação como a base do sistema jurídico-penal, tendência que se mantém atualizada. Bustos Ramirez explica que ditas proposições têm seus antecedentes no pensamento globalizador e totalizante dos hegelianos, para os quais, o delito era igual à ação e faziam coincidir em um só problema aspectos objetivos e subjetivos na teoria do delito, enquanto que a ação apresentava uma estrutura objetivo-subjetiva. Os hegelianos, sem dúvida, já trabalhavam um conceito de ação similar ao welzeliano, mas que "aparecia enfraquecido pela confusão entre ação e culpabilidade, ao absorver todo o subjetivo naquele primeiro conceito".

Em todo caso, o finalismo pode orgulhar-se de haver concretizado em seu ideário o conceito final de ação humana no atual estágio de evolução do Direito Penal. Do conceito final de ação se extraem interessantes conseqüências: dizer que ação não é causal mas final implica reconhecer que a finalidade da ação baseia-se no fato de que o homem, mercê de seu saber causal, pode prever, dentro de certos limites, as possíveis conseqüências de seu agir, podendo, por isso mesmo, propor-se fins diversos, e, conforme a um plano, dirigir sua atividade à obtenção de tais fins. Com propriedade, Welzel afirmava que a finalidade é vidente e a causalidade é cega.

3. Culpabilidade como predicado do crime

A tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade são predicados de um substantivo que é a conduta humana definida como crime. Não nos convence o entendimento dominante na doutrina brasileira, segundo o qual, a culpabilidade, no atual estágio, deve ser tratada como um pressuposto da pena, e não mais como integrante da teoria do delito.

A seguinte afirmação de Ariel Dotti teria levado Damásio de Jesus a mudar seu entendimento sobre a matéria: "O crime como ação tipicamente antijurídica é causa da resposta penal como efeito. A sanção será imposta somente quando for possível e positivo o juízo de reprovação que é uma decisão sobre um comportamento passado, ou seja, um posterius destacado do fato antecedente". Esta afirmação de Dotti leva-nos, inevitavelmente, a fazermos algumas reflexões: a) seria possível a imposição de sanção a uma ação típica, que não fosse antijurídica? b) poder-se-ia sancionar uma ação ilícita que não se adequasse a uma descrição típica? c) a sanção penal (penas e medidas) não é uma conseqüência jurídica do delito?

Seguindo nessa reflexão, perguntamos: a tipicidade e a ilicitude não seriam também pressupostos da pena? Ora, na medida em que a sanção penal é conseqüência jurídica do crime, este, com todos os seus elementos, é pressuposto daquela. Assim, não somente a culpabilidade, mas igualmente a tipicidade e a antijuridicidade são pressupostos da pena, que é sua consequência. Aliás, nesse sentido, o saudoso Heleno Fragoso, depois de afirmar que "crime é o conjunto dos pressupostos da pena", esclarecia: "Crime é, assim, o conjunto de todos os requisitos gerais indispensáveis para que possa ser aplicável a sanção penal. A análise revela que tais requisitos são a conduta típica, antijurídica e culpável...".

Welzel, a seu tempo, preocupado com questões semânticas, pela forma variada que penalistas referiam-se à culpabilidade normativa, frisou que "a essência da culpabilidade é a reprovabilidade". Destacou ainda, que, muitas vezes, também se denomina "a reprovabilidade, reprovação da culpabilidade e a culpabilidade, juízo de culpabilidade". "Isto não é nocivo – prossegue Welzel – se sempre se tiver presente o caráter metafórico destas expressões e se lembrar que a culpabilidade é uma qualidade negativa da própria ação do autor e não está localizada nas cabeças das outras pessoas que julgam a ação". Esta lição de Welzel, o precursor do finalismo, é lapidar e desautoriza inexoravelmente entendimentos contrários quanto a definição de crime e a própria localização da culpabilidade.

Na realidade, a expressão "juízo de censura" empregada com o significado de "censura", ou então "juízo de culpabilidade" utilizado como sinônimo de "culpabilidade", tem conduzido a equívocos, justificando, inclusive, a preocupação de Welzel, conforme acabamos de citar. É preciso destacar, com efeito, que censurável é a conduta do agente, e significa característica negativa da ação do agente perante a ordem jurídica. E "juízo de censura" – estritamente falando – é a avaliação que se faz da conduta do agente, concebendo-a como censurável ou incensurável. Esta avaliação sim – juízo de censura – é feita pelo aplicador da lei, pelo julgador da ação; por essa razão se diz que está na cabeça do juiz. Por tudo isso, deve-se evitar o uso metafórico de juízo de censura como se fosse sinônimo de censurabilidade que, constituindo a essência da culpabilidade, continua um atributo do crime. Enfim, o juízo de censura está para a culpabilidade assim como o juízo de antijuridicidade está para a antijuridicidade. Mas ninguém afirma que a antijuridicidade está na cabeça do juiz.

Rosenfeld, em sua crítica contundente à teoria normativa, afirmou que a culpabilidade de um homem não pode residir na cabeça dos outros. Mezger, respondendo a essa objeção de Rosenfeld, reconhece que "O juízo pelo qual se afirma que o autor de uma ação típica e antijurídica praticou-a culpavelmente refere-se, na verdade, a uma determinada situação fática da culpabilidade, que existe no sujeito, mas valoriza-se ao mesmo tempo esta situação considerando-a como um processo reprovável ao agente. Somente através desse juízo valorativo de quem julga se eleva a realidade de fato psicológica ao conceito de culpabilidade". O juízo de censura não recai somente sobre o agente, mas especial e necessariamente sobre a ação por este praticada. Seguindo nessa linha, e aceitando a crítica de Rosenfeld e a explicação de Mezger, Jiménez de Asúa reconhece que o fato concreto psicológico sobre o qual se inicia o juízo de culpabilidade é do autor e está, como disse Rosenfeld, na sua cabeça, mas a valoraçãopara a reprovação quem a faz é um juiz. E Manuel Vidaurri Aréchiga, adotando o mesmo entendimento, conclui que, quanto a isso, parece não haver dúvida, pois "o juiz não cria a culpabilidade". Aliás, em não sendo assim, cabe perguntar aos opositores: onde estarão a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa, elementos constitutivos da culpabilidade normativa? Estarão também na cabeça do juiz? Ora, fora da tese que sustentamos, estas indagações são irrespondíveis.

Por derradeiro, para não deixar dúvida sobre a natureza e localização da culpabilidade, defendida por Welzel, invocamos suas próprias palavras sobre sua concepção de delito: "O conceito da culpabilidade acrescenta ao da ação antijurídica – tanto de uma ação dolosa quanto de uma não dolosa – um novo elemento, que é o que a converte em delito". Em sentido semelhante, é a lição de Muñoz Conde que, definindo o crime, afirma: "Esta definição tem caráter seqüencial, isto é, o peso da imputação vai aumentando na medida que passa de uma categoria a outra (da tipicidade à antijuridicidade, da antijuridicidade à culpabilidade etc.), tendo, portanto, que se tratar em cada categoria os problemas que lhes são próprios". Essa construção deixa claro que, por exemplo, se do exame dos fatos constatar-se que a ação não é típica, será desnecessário verificar se é antijurídica, e muito menos se é culpável. Cada uma dessas características contém critérios valorativos próprios, com importância e efeitos teóricos e práticos igualmente próprios. Ora, é de uma clareza meridiana, uma ação típica e antijurídica somente se converte em delito com o acréscimo da culpabilidade.

Finalmente, também não impressiona o argumento de que o Código Penal brasileiro admite a punibilidade da receptação, mesmo quando "desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa" (grifo acrescentado). E, quando argumentam que, como a receptação pressupõe que o objeto receptado seja produto de crime, o legislador de 1940 estaria admitindo crime sem culpabilidade. Convém registrar que em 1942, quando nosso Código entrou em vigor, ainda não se haviam propagado as idéias do finalismo welzeliano, que apenas se iniciava.

<texto>Ao contrário do que imaginam, essa política criminal adotada pelo Código de 1940 tem outros fundamentos: 1.º – De um lado, representa a adoção dos postulados da teoria da acessoriedade limitada, que também foi adotada pelo Direito Penal alemão em 1943, segundo a qual, para punir o partícipe, é suficiente que a ação praticada pelo autor principal seja típica e antijurídica, sendo indiferente a sua culpabilidade, que será sempre individual; 2.º – de outro lado, representa a consagração da teoria da prevenção, na medida em que pior que o ladrão é o receptador, posto que a ausência deste enfraquece o estímulo daquele; 3.º – finalmente, o fato de o nosso Código prever a possibilidade de punição do receptador, mesmo que o autor do crime anterior seja isento de pena, não quer dizer que esteja referindo-se, ipso facto, ao inimputável. O agente imputável, por inúmeras razões, como, por exemplo, coação moral irresistível, erro de proibição, erro provocado por terceiro, pode ser isento de pena.

Concluímos, com a afirmação irrefutável de Cerezo Mir: "Os diferentes elementos do crime estão numa relação lógica necessária. Somente uma ação ou omissão pode ser típica, só uma ação ou omissão típica pode ser antijurídica e só uma ação ou omissão antijurídica pode ser culpável".

4. O "sabe" e o "deve saber" como moduladores da culpabilidade

O legislador brasileiro contemporâneo ao definir as condutas típicas continua utilizando as mesmas técnicas que eram adotadas na primeira metade deste século, ignorando a extraordinária evolução da Teoria Geral do Delito. Continua utilizando expressões, como, "sabe" ou "deve saber", que, outrora, eram adotadas para identificar a natureza ou espécie de dolo. A utilização dessa técnica superada constitui uma demonstração evidente do desconhecimento do atual estágio da evolução do dolo e da culpabilidade. Ignora nosso legislador que a consciência da ilicitude não é mais elemento do dolo, mas da culpabilidade e que tal consciência, por construção dogmática, não precisa mais ser atual, bastando que seja potencial, independentemente de determinação legal. A atualidade ou simples possibilidade de consciência da ilicitude servirá apenas para definir o grau de censura, a ser analisado na dosagem de pena, sem qualquer influência na configuração da infração penal.

Essa técnica de utilizar em alguns tipos penais as expressões "sabe" ou "deve saber" justificava-se, no passado, quando a consciência da ilicitude era considerada, pelos causalistas, elemento constitutivo do dolo, a exemplo do "dolus malus" dos romanos, um dolo normativo. No entanto, essa construção está completamente superada como superada está a utilização das expressões "sabe" e "deve saber" para distinguir a natureza do dolo, diante da consagração definitiva da teoria normativa pura da culpabilidade, a qual retirou o dolo da culpabilidade colocando-o no tipo, extraindo daquele a consciência da ilicitude e situando-a na culpabilidade, que passa a ser puramente normativa.

Para entendermos melhor a nossa crítica sobre a equivocada utilização das expressões "sabe" e "deve saber ", nas construções dos tipos penais, precisamos fazer uma pequena digressão sobre a evolução da teoria do delito, particularmente em relação ao dolo e à culpabilidade.

Já sustentamos que a teoria do delito encontra no finalismo um dos mais importantes pontos da sua evolução. Uma das mais maiores contribuições da teoria finalista, que fora iniciada pelo normativismo neokantiano, foi a extração da culpabilidade de todos aqueles elementos subjetivos que a integravam até então.

Com a aparente semelhança entre os conceitos normativos – neokantiano e finalista – surge a necessidade de esclarecer em que aspectos no-lo são, isto é, onde se localizam as diferenças entre um e outro. Como se sabe, o finalismo desloca o dolo e a culpa para o injusto, retirando-os de sua tradicional localização, a culpabilidade, com o que, a finalidade é levada ao centro do injusto. Como conseqüência, na culpabilidade concentram-se somente aquelas circunstâncias que condicionam a reprovabilidade da conduta contrária ao Direito, e o objeto da reprovação repousa no próprio injusto.

Na verdade, o conteúdo da culpabilidade finalista exibe substanciais diferenças em relação ao modelo normativo neokantiano, que manteve dolo e culpa como seus elementos. Diga-se, mais uma vez, que enquanto na concepção causalista, o dolo e a culpa eram partes integrantes da culpabilidade, no finalismo, passam a ser elementos, não desta, mas do injusto. E também, na corrente finalista se inclui o conhecimento da proibição na culpabilidade, de modo que o dolo é entendido somente como dolo natural (puramente psicológico) e não como no causalismo, que era considerado como o dolus malus dos romanos, constituído de vontade, previsão e conhecimento da realização de uma conduta proibida.

Para melhor compreendermos a estrutura do dolo e da culpabilidade e, particularmente, a desintegração e reestruturação de ambos, faz-se necessário, pelo menos, passar uma vista d'olhos na evolução das teorias do dolo e da culpabilidade.

4.1. Postulados fundamentais das teorias do dolo e da culpabilidade

A teoria extremada do dolo, a mais antiga, situa o dolo na culpabilidade e a consciência da ilicitude, que deve ser atual, no próprio dolo. Defende a existência de um dolo normativo, constituído de: vontade, previsão e conhecimento da realização de uma conduta proibida (consciência atual da ilicitude). Por isso, para esta teoria, o erro jurídico-penal, independentemente de ser erro de tipo ou erro de proibição, exclui sempre o dolo, quando inevitável, por anular ou o elemento normativo (consciência da ilicitude) ou o elemento intelectual (previsão) do dolo. Equipara, assim, as duas espécies de erro quanto aos seus efeitos.

A expressão "deve saber", se for considerada como indicativa de dolo - direto ou indireto - revive, de certa forma, a superada teoria limitada do dolo, com sua "cegueira jurídica", sugerida por Mezger, ao recriar uma espécie de "dolo presumido". Na verdade, para relembrar, a teoria limitada do dolo foi apresentada como um aperfeiçoamento da TEORIA EXTREMADA e, procurando evitar as lacunas de punibilidade que esta possibilitava, equiparou ao "conhecimento atual da ilicitude", a "cegueira jurídica" ou "inimizade ao direito". Segundo Welzel, o aperfeiçoamento da teoria estrita do dolo foi buscado, sem sucesso, de duas formas: criando, de um lado, um tipo auxiliar de "culpa jurídica", pela falta de informação jurídica do autor, e, de outro lado, pela relevância da "cegueira jurídica" ou "inimizade ao direito", adotadas pelo Projeto de Código Penal de 1936. Para Mezger, há casos em que o autor do crime (normalmente, um delinqüente habitual) demonstra desprezo ou indiferença tais para com os valores do ordenamento jurídico que, mesmo não se podendo provar o conhecimento da antijuridicidade, deve ser castigado por crime doloso. De certa maneira, ainda que por via transversa, com essa "equiparação" ou "ficção", Mezger substituiu, na teoria limitada do dolo, o conhecimento atual da ilicitude pelo conhecimento presumido, pelo menos nesses casos. Assim, Mezger, seu grande idealizador, introduziu, finalmente, o polêmico elemento denominado culpabilidade pela condução de vida, criando, dessa forma, a possibilidade de condenação do agente não por aquilo que ele faz, mas por aquilo que ele é, dando origem ao combatido Direito Penal de Autor.

No entanto, essa proposição de Mezger, de presumir-se o dolo quando a ignorância da ilicitude decorresse de "cegueira jurídica" ou de "animosidade com o direito", isto é, de condutas incompatíveis com uma razoável concepção de direito ou de justo, não foi aceita, diante da incerteza de tais conceitos. A mesma sorte merece ter a expressão "deve saber", que cria uma espécie de "dolo presumido", dissimulador de autêntica responsabilidade objetiva, incompatível com a teoria normativa pura da culpabilidade. A mesma rejeição recebida pela variante da teoria do dolo, sugerida por Mezger, com sua "cegueira jurídica", deve ser endereçada às construções jurídicas que se utilizam de subterfúgios como as expressões antes referidas, por violarem o princípio da culpabilidade.

Não se pode perder de vista que a teoria estrita da culpabilidade parte da reelaboração dos conceitos de dolo e de culpabilidade, empreendida pela doutrina finalista, com a qual surgiu, cujos representantes maiores foram Welzel, Maurach e Kaufmann. Esta teoria separa o dolo da consciência da ilicitude. Assim, o dolo, no seu aspecto puramente psicológico - dolo natural - é transferido para o injusto, passando a fazer parte do tipo penal. A consciência da ilicitude e a exigibilidade de outra conduta passam a fazer parte da culpabilidade, num puro juízo de valor. A culpabilidade passa a ser um pressuposto básico do juízo de censura.

Enfim, dolo e consciência da ilicitude são, portanto, para a teoria da culpabilidade, conceitos completamente distintos e com diferentes funções dogmáticas. Como afirma Muñoz Conde, "o conhecimento da antijuridicidade, tendo natureza distinta do dolo, não requer o mesmo grau de consciência; o conhecimento da antijuridicidade não precisa ser atual, pode ser simplesmente potencial...".

4.2. Sentido e função das elementares "sabe" e "deve saber", na definição do crime de receptação

Dolo é o conhecimento e a vontade da realização do tipo penal. Todo dolo tem um aspecto intelectivo e um aspecto volitivo. O aspecto intelectivo abrange o conhecimento atual de todas as circunstâncias objetivas que constituem o tipo penal.

Para a configuração do dolo exige-se a consciência daquilo que se pretende praticar. Essa consciência, no entanto, deve ser atual, isto é, deve estar presente no momento da ação, quando ela está sendo realizada. É insuficiente, segundo Welzel, a potencial consciência das circunstâncias objetivas do tipo, posto que prescindir da consciência atual equivale a destruir a linha divisória entre dolo e culpa, convertendo aquele em mera ficção.

A previsão, isto é, a representação ou consciência, deve abranger correta e completamente todos os elementos essenciais do tipo, sejam eles descritivos ou normativos. Mas essa previsão constitui somente a consciência dos elementos integradores do tipo penal, ficando fora dela a consciência da ilicitude que, como já afirmamos, está deslocada para o interior da culpabilidade É desnecessário o conhecimento da proibição da conduta, sendo suficiente o conhecimento das circunstâncias de fato necessárias à composição do tipo.

A Lei 9.426/96, ao disciplinar o crime de receptação utilizou as expressões "'sabe' ser produto de crime", no caput do art. 180 do CP, e "'deve' saber ser produto de crime", no parágrafo primeiro do mesmo dispositivo. A velha doutrina ao analisar as expressões "sabe" e "deve saber" via em ambas a identificação do elemento subjetivo da conduta punível: o dolo direto era identificado pela elementar "sabe" e o dolo eventual pela elementar "deve saber" (alguns autores identificavam, neste caso, a culpa). Aliás, foi provavelmente com esse sentido que se voltou a utilizar essas expressões, já superadas, na Lei 9.426/96.

Na hipótese do "sabe" - afirmavam os doutrinadores - há plena certeza da origem delituosa da coisa. Neste caso, não se trata de mera suspeita, que pode oscilar entre a dúvida e a certeza, mas há, na realidade, a plena convicção da origem ilícita da coisa receptada. Assim, a suspeita e a dúvida não servem para caracterizar o sentido da elementar "sabe". Logo - concluíam - trata-se de dolo direto.

Na hipótese do "deve saber" a origem ilícita do objeto material – afirmavam - significa somente a possibilidade de tal conhecimento, isto é, a potencial consciência da ilicitude do objeto. Nas circunstâncias, o agente deve saber da origem ilícita da coisa, sendo desnecessária a ciência efetiva: basta a possibilidade de tal conhecimento. Dessa forma, na mesma linha de raciocínio, concluíam trata-se de dolo eventual.

No entanto, essa interpretação indicadora do dolo, através do "sabe" ou "deve saber", justificava-se quando vigia, incontestavelmente, a teoria psicológico-normativa da culpabilidade, que mantinha o dolo como elemento da culpabilidade, situando a consciência da ilicitude no próprio dolo. Contudo, a sistemática hoje é outra: a elementar "'sabe' que é produto de crime" significa ter consciência da origem ilícita do que está comprando, isto é, ter consciência da ilicitude da conduta, e a elementar "deve saber", por sua vez, significa a possibilidade de ter essa consciência da ilicitude. Logo, considerando que esse elemento normativo - consciência da ilicitude - integra a culpalidade, encontrando-se, portanto, fora do dolo, leva-nos a concluir que as elementares referidas – sabe e deve saber - são indicativas de graduação da culpabilidade e não do dolo, como entendia a velha doutrina.

Em contrapartida, a consciência do dolo - seu elemento intelectual - além de não se limitar a determinadas elementares do tipo, como "sabe" ou "deve saber", não se refere à ilicitude do fato, mas à sua configuração típica, devendo abranger todos os elementos objetivos, descritivos e normativos do tipo. Ademais, o conhecimento dos elementos objetivos do tipo, ao contrário da consciência da ilicitude, tem que ser atual, sendo insuficiente que seja potencial, sob pena de destruir a linha divisória entre dolo e culpa, como referia Welzel. Em sentido semelhante, manifesta-se Muñoz Conde, afirmando que: "O conhecimento que exige o dolo é o conhecimento atual, não bastando um meramente potencial. Quer dizer, o sujeito deve saber o que faz, e não, haver devido ou podido saber".

Na verdade, a admissão da elementar "deve saber" como identificadora de dolo eventual impede que se demonstre in concreto a impossibilidade de ter ou adquirir o conhecimento da origem ilícita do produto receptado, na medida em que tal conhecimento é presumido. E essa presunção legal não é outra coisa que autêntica responsabilidade objetiva: presumir o dolo onde este não existe! No entanto, reconhecendo-se a elementar "deve saber" como indicadora de potencial consciência da ilicitude, isto é, como elemento integrante da culpabilidade, poder-se-á demonstrar, quando for o caso, a sua inocorrência ou mesmo a existência de erro de proibição, permitindo uma melhor adequação da aplicação da lei. Com efeito, ante a reelaboração efetuada por Welzel, do conceito de consciência de ilicitude, introduzindo-lhe o dever de informar-se, flexibilizou-se esse elemento, sendo suficiente a potencial consciência da ilicitude. No entanto, "não basta, simplesmente, não ter consciência do injusto para inocentar-se. É preciso indagar se havia possibilidade de adquirir tal consciência e, em havendo essa possibilidade, se ocorreu negligência em não adquiri-la ou falta ao dever concreto de procurar esclarecer-se sobre a ilicitude da conduta praticada".

Precisa-se, enfim, ter sempre presente, que não se admitem mais presunções irracionais, iníquas e absurdas, pois, a despeito de exigir-se uma consciência profana do injusto, constituída dos conhecimentos auridos em sociedade, provindos das normas de cultura, dos princípios morais e éticos, não se pode ignorar a hipótese, sempre possível, de não se ter ou não se poder adquirir essa consciência. Com efeito, nem sempre o dever jurídico coincide com a lei moral. Não poucas vezes o direito protege situações amorais e até imorais, contrastando com a lei moral, por razões de política criminal, de segurança social, etc. Assim, nem sempre é possível estabelecer, a priori, que seja o crime uma ação imoral. A ação criminosa pode ser, eventualmente, até moralmente louvável. A norma penal, pela sua particular força e eficácia, induz os detentores do poder político a avassalar a tutela de certos interesses e finalidades, ainda que contrastantes com os interesses gerais do grupo social.

Por derradeiro, constar de texto legal a atualidade ou potencialidade da consciência do ilícito é uma erronia intolerável, posto que a Ciência Penal encarregou-se de sua elaboração interpretativa. A constatação de sua atualidade ou mera possibilidade fundamentará a maior ou menor reprovabilidade da conduta proibida.

Concluindo, a previsão, isto é, o conhecimento deve abranger todos os elementos objetivos e normativos da descrição típica. E esse conhecimento deve ser atual, real, concreto e não meramente presumido. Agora, a consciência do ilícito, esta sim pode ser potencial, mas será objeto de análise somente no exame da culpabilidade, que também é predicado do crime.

 retirado da internet:

 http://www.direitopenal.adv.br/artigo47.doc