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Prefácio à Segunda Edição (do livro "Cemitério dos Vivos: análise sociológica de uma prisão de mulheres" de Julita Limgruber)

MAIS INFORMAÇÕES: http://www.julita.lemgruber.nom.br

        Nos últimos anos, por diversas vezes, me foi sugerida a segunda edição deste livro, já que a primeira há muito se havia esgotado. Houve algumas propostas concretas e sempre amigos animados me exortavam à nova publicação.* Mas muita coisa havia mudado, desde que, em 1976, visitara o Talavera Bruce pela primeira vez - mudanças na minha vida pessoal, mudanças no Sistema Penitenciário e, particularmente, na penitenciária de mulheres. Minha indecisão persistia: qual o sentido de editar de novo um livro, que talvez já não refletisse a realidade então captada pelo Cemitério dos Vivos?

        Em 1995, pela primeira vez, considerei a possibilidade de uma segunda edição. Dorrit Harazim, da revista VEJA, havia escrito importante matéria sobre o Talavera Bruce. Conversamos bastante, antes e depois da publicação da reportagem. Dorrit insistiu na atualidade do meu livro, de como pudera compreender melhor o Talavera após a sua leitura, e de como tudo continuava basicamente igual.

        Em agosto de 1997, resolvida a avaliar a conveniência de nova edição, passei dois dias inteiros no Talavara Bruce. Troquei idéias com funcionários, conversei demoradamente com as presas, observei a movimentação delas nos pátios, corredores e locais de trabalho. Visitei muitas celas. Estive com a direção da unidade e com alguns de seus técnicos.

        Entre 1976 e 1997 muita coisa mudara. Espaços físicos sofreram alterações, havia mais atividades laborativas e o perfil da população carcerária apresentava um caráter distinto. Mas depois de rever cada capítulo do livro com presas e funcionários, convenci-me de que as mudanças havidas eram todas conjunturais. Na sua estrutura, na sua essência, o Talavera Bruce continuava o mesmo. Uma segunda edição do livro pareceu-me útil, se acompanhada de um prefácio que pudesse abordar as mudanças acontecidas nesse período.

      Sou muito grata a todos que me estimularam a enfrentar o desafio da segunda edição. Com particular carinho agradeço a Gilberto Velho, Pedro Beccari, Tania Dahmer Pereira, Dorrit Harazim e Alexandre Barros. De formas diversas e em momentos diferentes, eles não me permitiram desistir dessa empreitada.

        É impossível passar por uma prisão e sair sem marcas e feridas. Acontece com todos. Com os que para lá são mandados, para cumprir uma pena. Com funcionários e visitantes. E, por que não, com pesquisadores.

        Em 1976, teve início o meu envolvimento com o mundo das prisões e, desde então, o Talavera Bruce representa para mim o símbolo de um compromisso: tornar mais conhecida a história cruel e degradante das instituições penais em nosso país e discutir a inutilidade da privação da liberdade como forma de controle do crime.

        Com esta segunda edição, quero insistir neste compromisso porque, na verdade, as prisões continuam a ser grandes desconhecidas do público em geral, e o Talavera Bruce não escapa desta regra. O que se passa dentro dos muros somente desperta o interesse da opinião pública quando ocorrem rebeliões, fugas espetaculares, greves de funcionários e, eventualmente, um incidente de espancamento de presos que possa interessar à mídia. A dramática rotina da vida diária de milhares de homens e mulheres privados de liberdade neste país, não atrai a menor atenção.

        Está longe o tempo em que conheci na penitenciária de mulheres a Jesse, a Norma, a Inês e tantas outras presas políticas. Em 1979 deixaram o Talavera Bruce as últimas mulheres que cumpriam penas impostas pelos tribunais da ditadura militar. Já não temos mais presos políticos. Talvez seja esta, realmente, a única significativa diferença entre o Talavera de ontem e o dos dias atuais. Mas as Djaniras, Milas e Martas, presas comuns, que continuam vindo, saindo e muitas vezes voltando, merecem que suas histórias não sejam esquecidas.

        E, como já dito, a segunda edição de Cemitério dos Vivos deve esclarecer o caráter de algumas das mudanças que ocorreram nesses anos que separam as duas edições. É importante começar analisando o perfil da população do Talavera Bruce.

        Sob alguns aspectos, o perfil das presas do Talavera Bruce hoje é muito distinto daquele que encontrei nos anos 70. As mudanças mais significativas dizem respeito aos crimes cometidos. A escolaridade também sofreu algumas alterações, assim como a naturalidade das presas. Outra ocorrência digna de nota é o grande número de estrangeiras entre a população carcerária.

        Em relação aos crimes cometidos, por exemplo, as mudanças são muito expressivas. Resumidamente, a situação é a seguinte:

Crimes cometidos     1976       1997

Furto                         35,1%           5,3%
Roubo                       18,5%         22,8%
Tráfico                     20,8%         47,0%
Sequestro                 0,6%         10,7%
Homicídio                 8,9%          2,8%
        Como se pode perceber, houve diminuição considerável no número de presas que respondem por furto. Se, em 1976, o maior percentual de mulheres estava no Talavera Bruce por esse crime, atualmente o tráfico de entorpecentes é o grande responsável pela maioria das condenações.

        Por outro lado, a extorsão mediante sequestro, crime praticamente desconhecido na década de 70, passa a estar relacionado com um número razoável de presas nos anos 90.

        Quanto ao roubo, as mudanças foram menores como se verifica e, em relação ao homicídio, há uma diminuição que merece ser analisada por pesquisadores interessados nesta temática. Lembro-me bem de que na década de 70 muitas mulheres condenadas por homicídios haviam estado envolvidas em assassinatos de maridos ou amantes. Como, em muitos casos, esses assassinatos significavam um ponto final em estórias de extrema violência a que eram submetidas essas mulheres, a diminuição ocorrida entre 1976 e 1997 sugere uma redução no nível de violência doméstica.

        O importante é acentuar que a mudança do perfil das presas do TB, no que diz respeito aos crimes cometidos, aponta claramente para uma sofisticação da criminalidade.

        Se, em 1976, 53% da população do TB estava detida pela prática de furtos e roubos, em 1997, 47% das mulheres estavam condenadas por tráfico de entorpecentes. E ressalte-se que, em levantamento realizado em 1997 entre a população masculina, apenas 29,7% dos homens haviam sido condenados pelo mesmo crime, o que parece confirmar estar acontecendo no Brasil o mesmo que ocorre nos Estados Unidos nesta área. Diversos criminólogos norte-americanos sustentam que, embora o tráfico de drogas seja uma atividade que ocupa um número de homens muito maior do que o de mulheres, as mulheres acabam condenadas em proporção maior do que os homens . A interpretação para essa discrepância deve-se à posição que as mulheres ocupam na estrutura do tráfico de drogas, uma posição sempre subalterna, que lhes dá menos possibilidade de negociar com a polícia, comprando sua liberdade.

        Ainda quanto ao perfil da população do Talavera Bruce , algumas diferenças entre 1976 e 1997 merecem destaque . Há uma diminuição considerável no número de analfabetas que passam de 21% para 8% em 1997. No entanto, de maneira geral, o nível de escolaridade continua muito baixo, com mais da metade das presas (64%) apresentando tão somente o 1º grau incompleto.

        Percebe-se, também, um decréscimo das migrações internas: em 1976 53% das internas eram oriundas do Estado do Rio de Janeiro. Em 1997, 74% da população do Talavera Bruce era constituída de mulheres fluminenses.

        Outro dado importante refere-se ao número de estrangeiras que passa de 1% a 11%, o que se explica devido ao crescimento do tráfico internacional de drogas: a totalidade das estrangeiras está presa por tráfico.

        E, por fim , em relação à idade, ao contrário do que se poderia supor, não há diferenças significativas entre a população que estava detida no Talavera Bruce nos anos 70 e a que lá encontramos nos dias de hoje. Em 1976, 22% das mulheres estavam na faixa etária que vai dos 18 aos 24 anos. Em 1997, esse número havia subido para 24%. Embora a idade média de adolescentes infratores venha diminuindo em ritmo acelerado, de acordo com dados da 2ª Vara da Infância e da Adolescência, a mesma tendência não se verificou, ainda, no Talavera Bruce, o que permite inferir ser recente o fenômeno e não ter ainda havido tempo suficiente para que o mesmo se reflita, com intensidade, nas unidades que abrigam adultos infratores.

        A participação das mulheres nos números totais de presos do Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro cresceu de 3.5%, em 1976, para 4% em 1997. Esse incremento pequeno leva a crer que uma das teses defendidas nos anos 70, a de que à medida em que a mulher tivesse maior participação na força de trabalho, ela cometeria mais crimes, não se sustentou. Entre 1976 e 1997 a participação da mulher na força de trabalho no Brasil praticamente dobrou e não houve mudança proporcional e significativa na composição da população presa seja em nosso estado, em nosso país, ou mesmo em outras partes do mundo, que também tiveram aumento expressivo da participação feminina na força de trabalho. Esta constatação leva a crer que outras variáveis explicam as diferenças nas taxas de criminalidade e encarceramento femininas e masculinas. Algumas são discutidas na Introdução deste trabalho, mas fica muito clara a necessidade de maior investigação nessa área

        Cabe, também, chamar atenção para algumas alterações verificadas na estrutura do Departamento do Sistema Penitenciário (DESIPE) que tiveram reflexo sobre o atendimento às mulheres presas . Em primeiro lugar, ressalte-se que, em 1976, o Talavera Bruce era a única unidade prisional feminina no Estado do Rio de Janeiro, abrigando tanto presas condenadas, como considerável número daquelas que aguardavam julgamento, embora muitas dessas últimas permanecessem em xadrezes de delegacias de polícia.

        Atualmente, o DESIPE dispõe do Presídio Nelson Hungria, para as recém-ingressas, e do Instituto Penal Romeiro Neto, para as presas que cumprem pena em regime semi-aberto e aberto, ou seja, aquelas que podem requerer o benefício do trabalho extra-muros a ser desenvolvido durante o dia, com a obrigatoriedade de retornar à unidade prisional para o repouso noturno. Assim, encontram-se no Talavera Bruce 310 mulheres; 175 no Nelson Hungria; e 54 no Romeiro Neto.
 

Criaram-se alas femininas em hospitais psiquiátricos, tanto para as consideradas "inimputáveis", como para os casos de interveniência de doença mental. Nos anos 70, todas as mulheres apresentando problemas deste tipo ficavam no Talavera Bruce. E, no Sanatório Penal, unidade destinada ao tratamento de presos tuberculosos, estão sendo construídas algumas celas para mulheres.

        De maneira geral, há claramente mais opções de abrigo para a mulher já condenada, mas todas as mulheres que aguardam julgamento são mantidas em xadrezes das delegacias policiais por falta de vagas no Sistema Penitenciário.

        Quanto ao atendimento às necessidades básicas das mulheres presas no Talavera Bruce pode-se dizer que a assistência jurídica continua precária, assim como a assistência social, embora a assistência à saúde tenha melhorado sensivelmente.

        A escola continua, também, a funcionar precariamente e, em 1997, apenas 21 presas, menos de 10% do efetivo, freqüentava a escola. Levando em conta que 72% são analfabetas ou têm primário incompleto, a freqüência tão reduzida indica que a escola continua a não exercer qualquer atração sobre a massa carcerária, o que sugere necessidade urgente de reformulação de currículos e métodos.

        Na área do ensino profissionalizante a carência é quase absoluta, embora, atualmente, a oferta de trabalho intra-muros seja um pouco mais diversificada. Mesmo assim, na minha visita ao Talavera Bruce, em 1997, havia 42 mulheres trabalhando em diferentes oficinas , o que significa que apenas 13% das mulheres detidas no Talavera Bruce recebem salários regularmente . Se levarmos em conta que grande parte dessas mulheres eram chefes de família e mantinham seus filhos com o produto de suas atividades , lícitas ou não, a oferta reduzida de trabalho prisional se traduz na impossibilidade de atendimento às necessidades de filhos deixados fora dos muros.

        Em meados dos anos 70, quando comecei a recolher material para este livro, não havia a chamada "visita íntima" para as mulheres presas, embora tal benefício já fosse concedido aos homens presos. Em 83, data de publicação da primeira edição de "Cemitério dos Vivos", talvez meia dúzia de mulheres já fossem autorizadas a ter relações sexuais com seus maridos e/ou companheiros. Em 1997, 40 mulheres tinham direito ao "parlatório" ou "visita íntima".

        Em relação às mudanças do espaço físico do Talavera Bruce, o antigo "Pavilhão das Subversivas" transformou-se no atual Pavilhão de Ingressas, para as recém-chegadas, onde os alojamentos são todos coletivos. Nos anos 70, o Talavera Bruce só dispunha de celas individuais e, atualmente, são inúmeros os alojamentos coletivos na unidade.

        O antigo Pavilhão de Ingressas hoje abriga as mulheres que têm direito à visita íntima e dez de suas celas foram reservadas à utilização como celas de castigo. O local da antiga "surda" foi reformado e é ocupado por presas mais idosas, com problemas de saúde.

        A creche, que antes abrigava crianças até aos seis anos de idade, agora só mantém os filhos de presas com até seis meses, por recomendação, inclusive, do Juizado da 1ª Vara da Infância e da Adolescência.

        Em relação ao corpo de funcionários, algumas mudanças merecem registro. Ter diploma de 2º grau completo é, atualmente, exigência para os que desejam prestar concurso para o cargo de Agente de Segurança Penitenciária, categoria antes conhecida genericamente como "guardas". O salário dessa categoria atrai hoje um grande número de candidatos pois situa-se em torno dos R$ 1.000,00. É importante lembrar que um policial militar, por exemplo, só chega a perceber essa quantia ao atingir a patente de capitão .

        Em linhas gerais, essas são as principais modificações que merecem destaque na comparação do Talavera Bruce que conheci nos anos 70 e o Talavera dos dias atuais . Como já disse inicialmente, as mudanças, na verdade, são muito mais mudanças conjunturais . Na sua essência, o Talavera Bruce continua o mesmo porque as prisões serão sempre as mesmas, não importa em que tempo ou lugar.

        Nos últimos anos, venho-me dedicando ao estudo das alternativas à pena de prisão e estou cada vez mais convencida de que devemos, definitivamente, reservar a privação da liberdade para o infrator violento e perigoso que se constitui em risco concreto ao convívio social. Douglas Hurd, antigo Ministro da Justiça inglês, dizia que a prisão é uma maneira muito cara de tornar as pessoas piores. Como se não bastasse a prisão destruir o indivíduo, aniquilar suas últimas reservas de auto-estima e noções básicas de autonomia, transformar ladrões de galinha em criminosos empedernidos, ela o faz a um custo altíssimo.

        Na primeira edição de Cemitério dos Vivos eu já terminava defendendo a aplicação de penas alternativas3 . Hoje eu insisto: manter na prisão infratores que não são violentos e perigosos é desperdiçar recursos públicos, é contribuir para o aumento da violência, é perseguir uma estratégia absolutamente equivocada de combate à criminalidade.

        Um país, onde o número de miseráveis se conta aos milhões, não deve se dar ao luxo de manter nas prisões infratores que podem ser punidos de outra maneira. Nossa legislação ainda é muito tímida e limitada na área das alternativas à pena de prisão e isto precisa mudar com absoluta urgência.

        Os "cemitérios de vivos" que são as prisões em todo lugar do mundo continuarão existindo por muito tempo ainda, mas adiar uma completa reforma legislativa, que reserve a pena de prisão somente para infratores violentos e, de fato, perigosos, significa inviabilizar investimentos4 nas áreas que verdadeiramente contribuem para a prevenção da criminalidade.

        Chegará o dia em que as prisões serão abolidas e seremos obrigados a buscar cicatrizar as feridas reais e simbólicas causadas por nossos infratores de outras maneiras. Talvez, no terceiro milênio encontremos fórmulas que nos permitam abandonar o que Louk Hulsman chamou tão apropriadamente de "sofrimento estéril": a privação da liberdade.

Notas de rodapé

3 Vale ressaltar que o capítulo intitulado "Conclusões" passou por uma revisão mais detalhada devido a mudanças substantivas na legislação brasileira no que se refere às penas alternativas.

4 Inúmeros estados nos Estados Unidos vêm, sistematicamente, diminuindo investimentos nas áreas educacionais e sociais, para poder fazer frente aos altos custos de seu sistema penitenciário que se agiganta a cada dia. Os Estados Unidos têm, hoje, cerca de 1.7 milhão de pessoas presas, uma legislação muitíssimo severa com pena de morte e prisão perpétua, e, mesmo assim, os mais altos índices de criminalidade violenta do mundo desenvolvido. Para uma compreensão do que acontece nos Estados Unidos hoje, ver Elliot Currie, Crime and Punishment in America, New York, Metropolitan Books, 1998: Peter Elikann, The tough on crime myth, New York, Insight Books, 1996: Steven Donziger, The real war on crime, New York, Harper Collins, 1995; e Nils Christie, A indústria do controle do crime, Rio de Janeiro, Forense, 1997.

Para entender as propostas de abolição do sistema penal ver, principalmente, as obras de Louk Hulsman, Thomas Mathiesen e Nils Christie. Para uma discussão sobre a legimitimidade do sistema penal na América Latina, ver Eugenio Raul Zaffaroni, Em busca das penas perdidas, Rio de Janeiro, Revan, 1991