Falar em governança pública com manchetes diárias sobre corrupção e desvios parece utopia ou coisa de quem está sem acesso à internet, mas não é bem por aí. Ao redor de todo o mundo, um nova força começa a despontar: a governança digital. A principal novidade é que ela precisa de você para funcionar.

Lembra da coleta de assinaturas para o projeto da Lei da Ficha Limpa? Ou então da campanha das 10 medidas contra a corrupção [2] do MPF? Projetos como esses são formas importantíssimas de iniciativa popular na formação das leis, porém não são simples de organizar. Muitas vezes, pela dificuldade de se validar as assinaturas, acabamos dependendo de um parlamentar apresentar o projeto. Segundo relatório do ITS Rio [3], nenhum projeto de iniciativa popular foi de fato concretizado em âmbito federal desde a Constituição de 1988. Não seria mais fácil fazer isso pelo smartphone? E será: tem gente trabalhando nisso [4].

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MPF coleta mais de 2 milhões de assinaturas. Fonte: http://g1.globo.com

 

Mas se você está com muita pressa, deixe-me dizer logo, pelo menos, o que não é governança digital:

  • Governança digital não é governo digital e nem governo eletrônico
  • Governança digital não é uma forma de governança da tecnologia da informação
  • Governança digital não é uma forma de estratégia para negócios digitais
  • Governança digital não é dar acesso à internet e a tecnologias a toda a população

Temos discutido muito por aqui o governo digital, mas são coisas diferentes. Enquanto governo digital busca prover serviços ao cidadão de forma mais eficiente, inovadora e com uso intenso de informação, a governança tem objetivo mais amplo: assegurar a transparência e a participação do cidadão nas decisões do Estado de forma a melhorar a vida da sociedade.

Veja dessa forma: o governo digital pode te livrar dos carimbos. Já a governança digital pode lhe dar voto e voz na reunião do condomínio Brasil.

Embora existam definições diferentes em outros contextos, como o das organizações privadas, aqui nos interessa o campo das relações entre governos e cidadãos. Já temos até norma pra isso: a Política de Governança Digital (Decreto 8.638/2016).

Governança digital é a aplicação estratégica de conhecimento e uso inovador das tecnologias disponíveis para promover a boa governança para todos, especialmente para aqueles que tem ficado à margem de seus benefícios (fonte: The Digital Governance Initiative, tradução livre).

Há um tempo atrás, bastante cético, eu costumava dizer que governança nada mais era que a gestão da gestão. Com o tempo, as diferenças entre governança e gestão foram ficando mais claras para mim e pude observar como o próprio conceito amadureceu na literatura e no ambiente corporativo. A desconfiança passou.

Já há muitos bons artigos e textos sobre governança aí afora. Vou economizar seu tempo, mas caso você queira saber mais sobre isso, sugiro esse artigo aqui que publiquei no LinkedIn: O que eu aprendi sobre governança com papinha de bebê (o problema de agência) [8].

Participação da comunidade

Resolvidas as discussões sobre o conceito, vamos tentar entender o movimento. Na semana passada, falei de governança digital no Simpósio Brasileiro de Sistemas de Informação [9], este ano sediado na bela Universidade Federal de Lavras. Fiquei feliz com a oportunidade de falar para a academia, mas o que me impressionou mesmo foi quanta atenção o tema vem despertando na comunidade científica, dos graduandos aos professores PhD.

Entre discussões sobre carros autônomos e inteligência artificial, estavam também diversas pesquisas sobre governança digital. Cito, como exemplo, vários trabalhos voltados ao aumento da acessibilidade, o que propicia inclusão e participação de parcela relevante da sociedade.

Apresentei, então, 10 motivos para se envolver com a governança digital. Destaquei tanto a necessidade de exercitarmos a cidadania em prol de um país mais justo e eficiente, mas também aquilo que a comunidade do empreendedorismo já percebeu: as oportunidades para inovações e novos negócios que surgem com esse movimento. A seguir, dois pontos que abordei na palestra.

1 – Aumento da abertura de dados públicos

A tendência de abertura dos governos é mundial. O Brasil, aliás, foi um dos precursores dessa iniciativa, fundando a OGP [10]. Desde então, o Brasil assumiu diversos compromissos com maior abertura, dentre os quais alguns ligados à oferta de dados públicos, assunto sobre o qual escrevi recentemente [11]. Para quem faz pesquisa científica, os #dadosabertos podem ser uma fonte inesgotável de insumos e de oportunidades.

 

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Em muitos países, os dados abertos levaram à criação de novos negócios. E o exemplo mais citado é o do GPS, que, embora não seja propriamente exemplo de abertura de dados, abriu um serviço governamental. É bem provável que todos os dias você use algum serviço baseado em GPS. Arrisque pensar, então, a quantidade de negócios e empregos que foram gerados em função disso.

Além de negócios, dados abertos também salvam vidas. No Reino Unido, o jornal The Guardian usou a lei de acesso à informação deles para solicitar e divulgar a taxa de sucesso de cirurgias cardíacas, incluindo o nome do médico que a realizou. Resultado? Em cerca de 4 anos, a taxa de óbitos em cirurgias cardíacas chegou a cair 1/3, apesar do aumento da idade dos pacientes (Fonte: The Guardian [13]). Afinal, ninguém queria ficar mal na fita, não é?

Se até salva vidas, o que dizer do controle social? A cada dia surgem novos aplicativos, sites e comunidades de controle cidadão dos governos. A abertura, por um lado, permite que a sociedade fiscalize de forma mais efetiva e eficiente a atuação da gestão pública, e, por outro, permite que comunidades e autores ganhem projeção e possam expor seu trabalho a novos públicos.

Um dos expoentes bem sucedidos de controle social é a Operação Serenata de Amor (https://serenatadeamor.org [14]). Por meio de softwares que aplicam análise de dados e inteligência artificial, a iniciativa fiscaliza as despesas de políticos com a cota parlamentar. A operação – que conquistou espaço nos principais veículos de comunicação do país – foi responsável por 629 denúncias de mau uso da cota, questionando gastos de cerca de 378 mil reais. Descobriu, por exemplo, o caso de uma refeição que custou mais de 6 mil reais. Mas, mais que os números, a existência do software cria expectativa de controle em relação ao uso da cota e inspira novas ações sociais de fiscalização dos recursos públicos.

2 – Co-criação de serviços públicos

Outro aspecto da governança digital se refere à titularidade na prestação dos serviços públicos. Acredito que o tempo em que o Estado era o prestador exclusivo de serviços públicos ficou para trás! A abertura de dados e a disponibilização de plataformas por parte do governo, quando combinadas a novas tecnologias, permite que a sociedade compartilhe com o governo essa responsabilidade.

Esse conceito é também conhecido por “governo como plataforma”. Por meio dele, academia, sociedade civil, empresas e cidadãos podem também oferecer serviços públicos, sejam gratuitos ou remunerados. É como se tivéssemos a appStore do governo.

O site Reclame Aqui Serviços Públicos [15] não seria um exemplo clássico de “governo como plataforma”, pois é a plataforma privada que está sendo usada para prestar um serviço de utilidade pública. No entanto, a integração entre o Sistema de Ouvidorias do Serviço Público Federal e o Reclame Aqui [16], foi um grande passo nesse sentido. Agora você reclama no site privado e o governo é notificado.

 

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Aí, você pode perguntar: “esse serviço não deveria ser prestado pelo governo?”. Bem, ele já é prestado. O governo tem um site como esse, o consumidor.gov.br [20], que também se destina a fazer a mediação de conflitos entre consumidores e empresas. Mas creio que a pergunta deveria ser invertida: “se esse serviço puder ser bem prestado pelo setor privado, por que não?”.

O tempo em que o Estado era o prestador exclusivo de serviços públicos ficou para trás!

Aliás, olha que curioso: enquanto o Reclame Aqui já tem números a apresentar sobre reclamações em serviços públicos, o site do governo ainda não tem, nem Ministérios cadastrados. E, diga-se de passagem, não é uma crítica ao consumidor.gov.br. Aliás, é preciso reconhecer que todo esforço para diminuir o número de conflitos que abarrotam o Poder Judiciário é válido. E, segundo o site, o consumidor.gov.br já possui quase 700 mil reclamações finalizadas e mais de 500 mil usuários cadastrados. É significativo.

 

Para terminar, acredito que a principal transformação em curso não é a digital, mas a do exercício da cidadania. Se já fomos conhecidos como o país do jeitinho ou pela falta de interesse do cidadão não interessa. É hora de mudar.

Passamos por uma crise sem precedentes e que vai marcar muitas páginas de nossa história. É preciso votar de maneira consciente, discutir as políticas públicas e cobrar providências. Ainda que comecemos apenas compartilhando informação, precisamos nos envolver e influenciar os rumos de nosso país. A oportunidade está aí e a ferramenta está em suas mãos.