Wikileaks - prefácio do livro do ativista Assange


Porgeovana- Postado em 04 fevereiro 2013

Mensagens de um ativista digital

 

FONTE: Folha de São Paulo

 

 

 

Em prefácio inédito de seu novo livro, o fundador do WikiLeaks, Julian Assange, diz que a próxima disputa global será pela privacidade das pessoas e acusa os EUA de espionarem americanos e estrangeiros

Julia Assange

A luta do WikiLeaks é uma luta de muitas facetas. Em meu trabalho como jornalista, lutei contra guerras e para forçar os grupos poderosos a prestarem contas ao povo. Em muitas ocasiões, manifestei-me contra a tirania do imperialismo, que hoje sobrevive no domínio econômico-militar da superpotência global.

Por meio desse trabalho, aprendi a dinâmica da ordem internacional e a lógica do império. Vi países pequenos sendo oprimidos e dominados por países maiores ou infiltrados por empreendimentos estrangeiros e forçados a agir contra os próprios interesses. Vi povos cuja expressão de seus desejos lhes foi tolhida, eleições compradas e vendidas, riquezas de países como o Quênia sendo roubadas e vendidas em leilão a plutocratas em Londres e Nova York. Expus parte disso e continuarei a expor, apesar de ter me custado caro.

Essas experiências embasaram minha atuação como um cypherpunk. Elas me deram uma perspectiva sobre as questões discutidas nesta obra, que são de especial interesse para os leitores da América Latina.

A próxima grande alavanca no jogo geopolítico serão os dados resultantes da vigilância: a vida privada de milhões de inocentes.

Não é segredo algum que, na internet, todos os caminhos que vão e vêm da América Latina passam pelos EUA. A infraestrutura da internet direciona a maior parte do tráfego que entra e sai da América do Sul por linhas de fibra óptica que cruzam fisicamente as fronteiras dos EUA. O governo norte-americano tem violado sem nenhum escrúpulo as próprias leis para mobilizar essas linhas e espionar seus cidadãos. E não há leis contra espionar estrangeiros.

Todos os dias, centenas de milhões de mensagens vindas de todo o continente latino-americano são devoradas por órgãos de espionagem norte-americanos e armazenadas para sempre em depósitos do tamanho de cidades. Dessa forma, os fatos geográficos referentes à infraestrutura da internet têm consequências para a independência e a soberania da América Latina. Isso deve ser levado em consideração nos próximos anos, à medida que cada vez mais latino-americanos entrarem na internet.

O problema também transcende a geografia. Muitos governos e militares latino-americanos protegem seus segredos com hardware criptográfico. Esses hardwares e softwares embaralham as mensagens, desembaralhando-as quando chegam a seu destino. Os governos os compram para proteger seus segredos, muitas vezes com grandes despesas para o povo, por temerem, justificadamente, a interceptação de suas comunicações pelos EUA.

Mas as empresas que vendem esses dispendiosos dispositivos têm vínculos estreitos com a comunidade de inteligência norte-americana.

Seus CEOs e funcionários seniores são matemáticos e engenheiros da NSA [a agência nacional de segurança dos EUA], capitalizando as invenções que criaram para o estado de vigilância. Com frequência seus dispositivos são deliberadamente falhos: falhos com um propósito. Não importa quem os utiliza ou como -os órgãos de inteligência norte-americanos são capazes de decodificar o sinal e ler as mensagens.

Esses dispositivos são vendidos a países latino-americanos e de outras regiões que desejam proteger seus segredos, mas na verdade constituem uma forma de roubar esses segredos. Os governos estariam mais seguros se usassem softwares criptográficos feitos por cypherpunks, cujo design é aberto para todos verem que não se trata de ferramenta de espionagem, oferecidos pelo preço de uma conexão com a internet.

Enquanto isso, os EUA aceleram a próxima grande corrida armamentista. A descoberta do vírus Stuxnet, seguida da dos vírus Duqu e Flame, anuncia uma nova era de softwares extremamente complexos feitos por Estados poderosos que podem ser usados como armas para atacar Estados mais fracos.

Sua agressiva utilização no Irã visa a prejudicar as tentativas persas de conquistar a soberania nacional, uma perspectiva condenada pelos interesses norte-americanos e israelenses na região.

Antigamente, o uso de vírus de computador como armas ofensivas não passava de uma trama encontrada em livros de ficção científica. Hoje se trata de uma realidade global, estimulada pelo comportamento temerário da administração Obama, que viola as leis internacionais. Agora, outros Estados seguirão o exemplo, reforçando sua capacidade ofensiva como um meio de se proteger. Neste novo e perigoso mundo, o avanço da iniciativa cypherpunk e da construção da ciberpaz é extremamente necessário.

Os EUA não são os únicos culpados. Nos últimos anos, a infraestrutura da internet de países como Uganda foi enriquecida pelo investimento chinês. Empréstimos estão sendo distribuídos em troca de contratos africanos com empresas chinesas para criar uma rede de backbones de acesso à internet ligando escolas, ministérios públicos e comunidades ao sistema global de fibras ópticas.

A África está entrando na internet, mas com hardware fornecido por uma aspirante a superpotência estrangeira. Há o risco concreto de a internet africana ser usada para manter a África subjugada no século 21, e não como a grande libertadora que se acredita que a internet seja. Mais uma vez, a África está se transformando em um palco para os confrontos entre as potências globais dominantes. As lições da Guerra Fria não devem ser esquecidas ou a história se repetirá.

Essas são apenas algumas das importantes maneiras pelas quais a mensagem deste livro vai além da luta pela liberdade individual.

Os cypherpunks originais, meus camaradas, foram em grande parte libertários.

Buscamos proteger a liberdade individual da tirania do Estado, e a criptografia foi a nossa arma secreta. Isso era subversivo porque a criptografia era de propriedade exclusiva dos Estados, usada como arma em suas variadas guerras. Criando nosso próprio software contra o Estado e disseminando-o amplamente, liberamos e democratizamos a criptografia, em uma luta verdadeiramente revolucionária, travada nas fronteiras da nova internet. A reação foi rápida e onerosa, e ainda está em curso, mas o gênio saiu da lâmpada.

O movimento cypherpunk, porém, se estendeu além do libertarismo.

Os cypherpunks podem instituir um novo legado na utilização da criptografia por parte dos atores do Estado: um legado para se opor às opressões internacionais e dar poder ao nobre azarão.

A criptografia pode proteger tanto as liberdades civis individuais como a soberania e a independência de países inteiros, a solidariedade entre grupos com uma causa em comum e o projeto de emancipação global. Ela pode ser utilizada para combater não só a tirania do Estado sobre os indivíduos mas a tirania do império sobre a colônia. Os cypherpunks exercerão seu papel na construção de um futuro mais justo e humano. Por isso, é importante fortalecer esse movimento global.