Tutela Constitucional da Privacidade Ante as Novas Tecnologias: O Caso do “Revenge Porn”


Porbgomizzolo- Postado em 22 abril 2015

Tutela Constitucional da Privacidade Ante as Novas Tecnologias: O Caso do “Revenge Porn”

 

RESUMO: O artigo tem por finalidade registrar como a tutela jurídica deve se adequar de modo que consiga acompanhar os avanços tecnológicos e uma nova gama de situações fáticas com eles trazidas, mais especificamente, a ocorrência do “Revenge Porn”. A pesquisa consistiu-se num estudo teórico de como leis presentes no ordenamento jurídico e projetos de leis em tramitação poderão auxiliar na tutela do princípio constitucional da privacidade ante o fenômeno do “Revenge Porn”. O trabalho analisa também a interferência da tecnologia no cotidiano social e, numa perspectiva constitucional, a tutela de direitos da personalidade. Atualmente encontramos uma regulamentação escassa no que tange ao Direito Digital, o que denuncia a urgência pelo estudo das questões a seguir tratadas. O direito brasileiro precisa de fortalecimento infraconstitucional para que os princípios constitucionais sejam seguidos, adaptando-se às mudanças sociais, culturais e tecnológicas.

Palavras-chave: PRIVACIDADE. “REVENGE PORN”. MARCO CIVIL DA INTERNET. CRIMES CIBERNÉTICOS. DIREITO AO ESQUECIMENTO.

 

SUMÁRIO: Introdução. 1. Efetivação da Tutela Constitucional da Privacidade no Caso do Revenge Porn. 1.1. Aspectos da Privacidade na Ordem Jurídica Brasileira. 1.2. A Rede Aberta na Contemporaneidade: Cultura do Cotidiano. 1.3. Revenge Porn. 2. Defesa Jurídica da Privacidade na Rede Aberta de Computadores. 2.1. Direito Digital e Crimes Cibernéticos. 2.2. O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/14). 2.2.1. Responsabilidade Civil dos Provedores e Indenização por Danos Morais Segundo o Marco Civil. 2.3. “Lei Carolina Dieckmann” (Lei nº 12.737/2012). 2.4. Projetos de Lei nº 6630/13 e 5555/13. 2.5. O Direito de Ser Esquecido. Conclusão. Referências Bibliográficas, Legais e Jurisprudenciais.


Introdução

A criação de novos meios de comunicação revolucionou as interações sociais. Recentemente, houve uma expansão no uso de sites de relacionamento, ou redes sociais, tais como o Twitter, Facebook, Instagram e o Whatsapp. A tecnologia acelera a velocidade das notícias, tornando-as quase instantâneas, o que é um grande avanço para o jornalismo, por exemplo. Contudo, a exposição virtual pode provocar lesões profundas se usada com má-fé. Uma grande vítima dessa revolução é a privacidade, pois qualquer lesão veiculada na internet provocará uma repercussão maior do que faria fora do mundo virtual.

Estatísticas noticiam o aumento exponencial de casos de “Revenge Porn”. O criminoso praticamente não sofre represália da sociedade e muitas vezes escapam impunes, enquanto as vítimas são incapazes de se recuperar socialmente, muitas chegam a por fim em suas vidas. É de extrema urgência que o direito se adapte a essa nova realidade social, visto que uma de suas qualidades é justamente a de transformação.

Pelo princípio constitucional da privacidade, é defeso a todos o direito de escolher o que deseja tornar público de sua vida privada. Porém, a proteção prática da privacidade é tão complexa quanto à busca por suas definições. É preciso de uma normatização efetiva para punir quem violar a privacidade de outrem, reparar os danos em relação à vítima e, principalmente, tentar criar formas de prevenir que tal lesão se repita. O tema ainda é passível de muito debate, e é instigando o debate que se proporciona uma maior visibilidade ao tema.

1. Efetivação da Tutela Constitucional da Privacidade no Caso do Revenge Porn

1.1. Aspectos Jurídicos da Privacidade

 

Com o advento da Constituição Federal de 1988, a ordem jurídica brasileira submergiu pelo revigorar de princípios e valores com o objetivo de obedecer às tendências humanitárias do direito mundial. Neste cenário foi inserida a dignidade da pessoa humana no artigo 5º da Carta Magna como direito fundamental constitucional, assegurando sua observação nas normas infraconstitucionais e o seu cumprimento em todas as esferas legais. Segundo Alexandre de Moraes, o princípio da dignidade da pessoa humana:

 

“(...) concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. (...) A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar” (MORAES, 2004, p. 52).

A Constituição protege a privacidade, enquanto gênero, ao tratar de suas espécies, que se dividem em vida privada, intimidade, honra e a imagem das pessoas. É entendimento majoritário que a intimidade é uma espécie de privacidade. Segundo Alexandre de Moraes, “a proteção constitucional refere-se, inclusive, à necessária proteção à própria imagem diante dos meios de comunicação em massa (televisão, rádio, jornais, revistas etc.)” (MORAES, 2004, p. 52).

Ocorre que a mera positivação constitucional não é suficiente para proteger de maneira eficaz os direitos de personalidade diante das transformações sociais. A construção de direitos de personalidade infraconstitucionais foi essencial para a sua garantia. Estes direitos foram incorporados ao novo Código Civil de 2002. Ao fazer isso, o legislador positivou as mesmas tendências humanistas que acompanharam a nova Constituição, num código o qual predominava o patrimonialismo, como se observa em sua edição de 1916.

A tutela ao direito à privacidade está conectada ao seu caráter subjetivo, destarte, suas fronteiras podem se modificar individualmente. É possível observar também variações culturais e histórias do seu conceito. O próprio desenvolvimento tecnológico e a criação da Internet alteraram sua percepção.

O desenvolvimento tecnológico ocasionado pela globalização provocou o nascimento da Internet e sua popularização. Tais eventos abarcaram novos fatos sociais, sendo um deles muito peculiar – a vontade de exibir-se. Uma vez que as redes sociais proporcionam uma maior conexão entre as pessoas, compartilhar momentos particulares através das mesmas se tornou comum, é o que se denomina “consumo de experiências”. Neste cenário, surge a problemática da insuficiência jurídica ante da hiperexposição cibernética. Sobre isso reflete Demócrito Reinaldo Filho:

 

“(...) se, por um lado, a coleta de informações pessoais pode favorecer negócios, facilitar decisões governamentais ou mesmo melhorar a qualidade de vida material da sociedade como um todo, outros valores necessitam ser considerados à luz da privacidade individual” (FILHO, 2002, p. 28).

 

O consumo de experiências dita tendências e padrões. Entretanto, não podem ser ignorados os riscos da hiperexposição virtual. Alguns doutrinadores questionam como seria possível identificar uma invasão de privacidade numa sociedade exibicionista, entretanto é preciso resgatar o sentido subjetivo da privacidade. Ora, o sentimento de violação à privacidade é trazido à tona quando fere o sentimento de individualidade. Verifica-se que com o surgimento das redes sociais se agravaram as possibilidades de seus usuários sofrerem um ataque à privacidade.

 

1.2. A Rede Aberta na Contemporaneidade: Cultura do Cotidiano

 

Atualmente, é difícil imaginar um mundo sem Internet, ela está presente na vida de boa parte da população mundial. A Internet tornou-se um instrumento que democratiza o acesso à informação. Em razão disso, a ONU declarou, em 2011, o acesso à Internet como um direito humano fundamental. Estar conectado é uma verdadeira necessidade. A Internet é tanto um meio de obter informações, como também de difundi-las. O ser humano é dotado de sociabilidade e precisa estar em conexão com seus semelhantes para sobreviver. E, ao utilizar ferramentas disponíveis na Internet, não fugiu dessa natureza. Em 2006, surgiram e se expandiram as redes sociais na Internet.

As redes sociais possuem recursos que possibilitam a exposição de textos, sons, imagens, vídeos, além de agruparem as informações e as pessoas em “comunidades virtuais” conforme características da personalidade do internauta ou temas para serem discutidos. É no mínimo estranho pensar que o Facebook, maior rede social da atualidade tenha surgido a partir de uma ideia de seu criador, Mark Zuckerberg, que tinha o intuito de se vingar virtualmente de sua ex-namorada, difamando-a e publicando xingamentos num “blog”, outro recurso para expor e compartilhar dados. Essa informação consta tanto na sua biografia bem como no filme “A Rede Social”. Atualmente, o Facebook, em conjunto com outras Redes Sociais, sites de compartilhamento e outros recursos de comunicação tais como e-mail, “blogs” e aplicativos de telefonia celular como o Whatsapp, são uma das principais formas de divulgar o Revenge Porn. Esses dados, uma vez compartilhados na rede, são dificilmente apagados e ganham uma repercussão muito maior que se utilizando de outro meio.

 

1.3. Revenge Porn

 

O “Revenge Porn” reflete nitidamente este problema de segurança, encontrando na impunidade um propulsor para alastrar-se. Porém, antes de adentrar nos dilemas jurídicos que a situação implica, uma análise técnica é necessária. Em tradução livre, o “Pornô de Revanche” ou “Pornô de Vingança”, é a prática de disponibilizar na Internet material de conteúdo sexual registrados na intimidade de um casal, com o intuito de vingar-se, humilhando publicamente uma das partes na relação.

“Revenge Porn” define um fenômeno social que vem se espalhando nos últimos anos, especialmente através de redes sociais. Acredita-se que seja um desdobramento do “sexting”, outra forma de interação social que também só é possível graças às novas tecnologias e consiste no envio de conteúdo erótico protagonizado pelo autor do conteúdo a seu companheiro. O agente que opera a divulgação é o próprio ex-companheiro, geralmente encoberto pelo anonimato virtual. Mas esse agente que primeiramente divulgou não está sozinho. Para que o alastramento do material ocorra faz-se necessário um motor humano que o espalhe rapidamente. Essas pessoas que divulgam o material são dificilmente identificadas e punidas.

Tentando perceber as razões que levam tantas pessoas a reproduzir, compartilhar o conteúdo e se empenhar na difamação das vítimas, infere-se que a vítima passa por um processo de despersonalização. A vítima se transforma, então, em “Bode Expiatório” nos moldes da obra de René Girard, segundo a qual, será um bode expiatório aquele que irracionalmente for selecionado para ser responsabilizado por alguma ocorrência a qual se atribui valor negativo e é amplamente condenada.

Um levantamento rápido acerca da obra de Girard faz-se necessário para que se reconheçam os elementos capazes de demonstrar a existência de um bode expiatório no linchamento que procede ao “Revenge Porn”. Primeiramente, vale ressaltar que o linchamento retratado é considerado uma forma de violência coletiva analisada pelo autor. Em “O Bode Expiatório” (GIRARD, p. 29), afirma que “(...) existe um esquema transcultural de violência coletiva e que é fácil esboçar, em grandes traços, seus contornos”. Tais contornos serão alvo de apreciação a partir de agora.

A multidão perseguidora, descrita por Girard, é formada por indivíduos que integram a comunidade lato sensu. Diante da divulgação do conteúdo pornográfico, os linchadores assumem o papel de árbitros morais do caso específico, exteriorizando através da perseguição o desaprovo unânime pela atitude considerada socialmente condenável perpetrada pela vítima. Os atos que serão “(...) mais frequentemente invocados são sempre aqueles que transgridam os tabus mais rigorosos em relação à cultura considerada” (GIRARD, p. 22).

A instrumentalização das redes de comunicação faz com que a exposição tenha potencial incontrolável, visto que a rede aberta possui limitações insuficientes ao conteúdo que nela transita. Ocorrido o vazamento, pela própria configuração de controle de circulação de dados da rede, será praticamente impossível controlar sua propagação. O linchamento moral é assolador, acarretando, por conseguinte, um dano irreparável à honra da vítima. Coroa-se o bode expiatório, que sofrerá uma série de agressões por seus perseguidores, dentro e fora da rede, pelo "desvio" cometido. As consequências do “Revenge Porn” tem potencial para refletir por toda a vida da vítima.

A maioria das vítimas de “Revenge Porn” tende a serem mulheres jovens, pairando os homens acima dos julgamentos morais. A condenação das mulheres que ousaram igualar sua liberdade sexual à dos homens e explorar novas formas de prazer denuncia uma realidade discriminatória. Tal discussão, contudo, não deve ser aprofundada neste trabalho uma vez que este busca ater-se às questões de direito, sem fazer recorte temático de gênero. Todavia, como as estatísticas mostram um massacre da vida de muitas mulheres vítimas de “Revenge Porn”, faz-se imprescindível lembrar essa questão, inclusive, para ressaltar a importância do tema.

É possível encontrar registros da existência deste fenômeno desde o surgimento da Internet, entretanto foi a pouco tempo que a prática se popularizou, provavelmente pela facilidade que se tem acesso aos smartphones que são ágil ferramenta para criação de imagens, gravações de voz e vídeo largamente utilizados no “Revenge Porn”. Este crescimento coincidiu com o auge das ferramentas de redes sociais atuantes na área de relacionamento.

2. Defesa Jurídica da Privacidade na Rede Aberta de Computadores

 

Aprender com o passado, compreender o presente e transformar o futuro é o objetivo principal traçado pelo trabalho, o qual atinge seu ápice nos itens a seguir, analisando criticamente o arcabouço legal atual e delineando possibilidades futuras. Quanto às dificuldades de adaptação do direito ante o novo cenário global:

 

“O Direito em si não consegue acompanhar o frenético avanço proporcionado pelas novas tecnologias, em especial a Internet, e é justamente neste ambiente livre e totalmente sem fronteiras que se desenvolveu uma nova modalidade de crimes, uma criminalidade virtual, desenvolvida por agentes que se aproveitam da possibilidade de anonimato e da ausência de regras na rede mundial de computadores” (PINHEIRO, 2009, p. 8).

 

Os direitos de personalidade decorrem da mistura entre normas legais e costumeiras, consequentemente culturais. Destarte, sua percepção pode variar entre uma cultura e outra. A defesa da privacidade na Internet é, portanto, uma problemática difícil de dissecar, tanto pela subjetividade da privacidade, como pela dificuldade fática em tutelá-la. Visto que os direitos de personalidade, quando lesados, são dificilmente reparados. Para protegê-los, recomenda-se uma legislação com caráter preventivo. O objetivo a ser traçado é o de impedir que a lesão se consume e, assim, defender o direito fundamental à personalidade, presentes na Constituição Federal.

Há quem defenda a compreensão de determinados espaços virtuais, onde é possível publicar para internautas irrestritos, como espaço público comum. Com efeito, os crimes cuja tipificação exige que ato ilícito seja praticado em público poderiam abranger os crimes virtuais em que o agente usa esses espaços, incluindo o “Revenge Porn”. Poder-se-ia enquadrá-la como crime de difamação, pelo artigo 139 do Código Penal Brasileiro: “Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa”. A omissão do legislador, todavia, tem prazo fatal para se findar com a edição de Projetos de Lei que visam alterar o Código Penal e a Lei Maria da Penha.

Porém, sua punição não corresponde com os danos irreparáveis causados à vítima. No Brasil, encontramos uma forte tendência pela normatização punitiva, o que, no entanto, não vislumbra melhorias na tutela dos direitos da personalidade. A penalização não cumprirá sua função social de reconstrução de valores morais nos infratores, muito menos reconstituirá o status quo ante do direito lesionado à vítima. Defendo, porém, que a lei seja dotada de uma pena maior, a título de multa, com o intuito de assim prevenir que o ato ilícito seja cometido. Sustento que uma pena de multa maior conteria as ocorrências do delito, com efeito impeditivo e preventivo, além de chamar a atenção para a gravidade da conduta.

Felizmente o legislador começou a se interessar pelo uso indevido da Internet. Já se pode ver também uma grande movimentação da sociedade objetivando trazer a atenção dos juristas e dos legisladores para este ramo.

 

2.1. Direito Digital e Crimes Cibernéticos

 

Concomitantemente com o crescimento da Internet, surgiram os crimes cibernéticos. É um delito informático a conduta tipificada, em razão do Princípio da Legalidade do Direito Penal, e ilícita. Essa nova modalidade de atos ilícitos é realizada e consumada através do uso de equipamento computacional com conexão à rede mundial de computadores como elemento essencial. Sendo assim, pode-se afirmar que o crime virtual é um crime de meio, ou seja o ambiente em que o delito se materializa é o virtual, porém o crime provoca efeitos fora desse ambiente.

A categorização de um objeto de estudo permite que se delimite melhor o tema, facilitando sua análise. Por isso, é de primeira importância classificar os crimes informáticos. Os delitos informáticos poderão ser classificados em próprios, que apenas poderão ser realizados através de computadores ou sistemas de informática, e impróprios, que prevê a possibilidade da prática delituosa através de outros meios para além do informático.

A classificação dos crimes de informática em crimes próprios e os impróprios é a forma que melhor se enquadra no estudo do “Revenge Porn” sob a perspectiva de crime virtual. Sustento a teoria que o “Revenge Porn” é um crime informático impróprio, visto que não se detém ao uso de computadores para consumar-se. É possível realizar o ato ilícito, qual seja, divulgar fotos íntimas sem autorização através de revistas, por exemplo, como ocorreram nos primeiros casos reportados do “Revenge Porn”. O conceito de “Revenge Porn” pode ser bem abrangente, mas foi com a ascendência das tecnologias que a prática se popularizou, daí o porquê estar sempre associado ao uso de computadores ou celulares com tecnologia de rede.

Uma vez posto na rede aberta, é impossível controlar a propagação do arquivo que passa de usuário para usuário sem qualquer possibilidade de cortar a cadeia de divulgação. Diante do risco permanente à Tutela do Direito Constitucional da Privacidade, reforçamos que é preciso com extrema urgência que a atenção dos legisladores e demais juristas voltem-se para o tema. A proteção à privacidade não pode ser mitigada. Por isso, faz-se imprescindível estudar os riscos dessa conduta, buscar formas de prevenção e combate de tais crimes.

O Direito Penal é regido pelo Princípio da Legalidade, previsto no artigo 5º, XXXIX da Constituição: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Por este dispositivo, o jurista ficaria adstrito à tipificação legal para qualificar condutas ilícitas, obstando muitas vezes que se tenha uma interpretação abrangente para casos similares. Porém, diante da lesão a um direito fundamental constitucional e da omissão do legislador, susto que o jurista deve interpretar amplamente a conduta fática.

 

2.2. O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/14)

 

O Marco Civil da Internet entrou em vigor em 23 de junho de 2014. A Lei 12.965/14 prevê princípios e diretrizes para o uso da Internet no Brasil e ficou conhecida como a “Constituição da Internet”. Ainda que a lei tenha se dedicado mais a tutelar a privacidade através da regulamentação dos registros de dados na Internet, o Marco Civil, indubitavelmente contribuiu com a proteção de direitos fundamentais dos internautas e preenchendo lacunas legais. Sob a perspectiva do “Revenge Porn”, a tutela da privacidade no meio digital foi reforçada.

No artigo 3º da lei em questão, encontra-se disposto que: “A disciplina do uso da Internet no Brasil tem os seguintes princípios: [...] II - proteção da privacidade”. Mais a frente, a lei dispõe, em seu artigo 7º que: “O acesso à Internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos: I - inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Ademais, o inciso I, do artigo 7º, acima transcrito, em sua parte final, prevê a possibilidade de ressarcimento pelo dano provocado pela violação à privacidade, que será analisado com maior profundidade no tópico a seguir. O artigo 15 da Lei 12.965/14 é aliado na investigação de crimes digitais, inclusive no caso de “Revenge Porn”: “Art. 15. O provedor de aplicações de Internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de Internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento”.

A imposição de registro de informações de acesso de usuários aos sites da Internet tais como endereços de IP, horários de conexão e históricos de navegação, facilitará a investigação policial de autoria no caso de Revenge Porn. Será possível, inclusive, encontrar registros de quem deu continuidade e repassou o material.

Contudo, a Lei nº 12.965/14 não previu tipificação para o crime de “Revenge Porn”. Sem tipificação, o “Revenge Porn” continuará com o mesmo vigor de antes do Marco, a ser enquadrada por analogia a crime de difamação. A contribuição do Marco Civil da Internet se dá, em grande parte, pela facilitação dos meios de investigar o ato ilícito e, assim, mais facilmente punir. A lei reflete os anseios da sociedade pela regulamentação de ferramentas que melhor tutelem os direitos de personalidade ante as novas tecnologias

 

2.2.1. Responsabilidade Civil dos Provedores e Indenização por Danos Morais Segundo o Marco Civil

 

A seção III do Marco Civil da Internet dispõe acerca da responsabilização civil dos provedores sobre o conteúdo de terceiros, usuários do site em questão. Sobre o conceito de “Responsabilidade Civil” a doutrinadora Maria Helena Diniz (2003, p. 34) elucida:

 

“A responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros em razão de ato do próprio imputado, de pessoa por quem ele responde, ou de fato de coisa ou animal sob sua guarda (responsabilidade subjetiva), ou, ainda, de simples imposição legal (responsabilidade objetiva)” (DINIZ. 2003, p. 34).

 

Dessa forma, imputará ao provedor reparar os danos causados à vítima do “Revenge Porn” quando ocorrerem as hipóteses previstas no artigo 18 e 19 do Marco Civil da Internet, segundo os quais: “Art. 18. O provedor de conexão à Internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros; Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de Internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”. 

Com isso, a lei prevê a possibilidade de responsabilização civil dos provedores que veicularem “Revenge Porn” se desobedecerem à ordem judicial de retirada do conteúdo. A responsabilidade será solidária, em decorrência do Direito do Consumidor. Além disso, visando acelerar o processo de exclusão do conteúdo, o parágrafo 3º do artigo 19 prevê: “§ 3º. As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na Internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de Internet, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais”.

A previsão de competência dos juizados especiais é outra forma de garantir celeridade ao julgamento. Além disso, o 4º parágrafo prevê a possibilidade de pedir antecipação da tutela: “§ 4º O juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º, poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na Internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação”.

É possível pedir a reparação em sede de litisconsórcio passivo entre o terceiro responsável pela divulgação e o provedor que descumpriu ordem judicial de retirada do conteúdo. Esta reparação se fará nos moldes legais do artigo 5º, inciso X, da Carta Magna, bem como nos artigos 186 e 927 do Código Civil Brasileiro.

Se o provedor não retirar o conteúdo, além da responsabilização civil, estará sujeito a punições administrativas. Porém, é pacificado que não haverá concorrência no que tange à responsabilização penal, uma vez que o ato ilícito é imputável apenas a quem o praticou. Só será punido penalmente o agente que, utilizando-se de recursos informáticos, praticou o “Revenge Porn”. Para o Marco Civil é impossível culpar o provedor pelo conteúdo neles veiculado, uma vez que a Internet é um ambiente público e de difícil controle.

Há quem critique a responsabilização civil tendo como requisito o descumprimento de ordem judicial. Nesse sentido, o Supremo se manifestou, condenando o Google ao pagamento de indenização por acreditar que, apesar do conteúdo ofensivo original ter sido deletado, é impossível apagar todas as cópias espalhadas pela rede posteriormente. Contudo, o entendimento majoritário entre os doutrinadores condiz com a literalidade do Marco Civil. Patrícia Peck comunga dessa ideia, a autora afirma que seria uma tarefa hercúlea o monitoramento de todos os conteúdos postados no sítio eletrônico da empresa provedora. Todavia, a empresa:

 

“Ao ser comunicada, seja por uma autoridade, seja por um usuário, de que determinado vídeo/texto possui conteúdo eventualmente ofensivo e/ou ilícito, deve tal empresa agir de forma enérgica, retirando-o imediatamente do ar, sob pena de, daí sim, responder de forma solidária juntamente com o seu autor ante a omissão praticada (art. 186 do CC)” (PECK. 2010, p. 401).

 

2.3. “Lei Carolina Dieckmann” (Lei nº 12.737/2012)

 

A Lei nº 12.737/2012 é nomeada em alusão a uma das vítimas que sofreu com o crime que a lei em questão tipificou, a atriz Carolina Dieckmann. Foi aprovada visando acrescentar os artigos 154-A a 154-B ao Código Penal, de modo que se tornou um delito a conduta de invadir ilicitamente recurso informático com o intuito de obter dados pessoais ou profissionais de alguém. O artigo 154-A prevê que:

 

“Art. 154-A. Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa”.

 

O parágrafo 1º do artigo 154-A prevê que incorrerá na mesma pena aquele que participar da produção, distribuição, difusão, venda, ou mesmo oferecer dispositivo de computador que facilite a invadir o sistema informático. Para que se pratique tal ato é preciso ter conhecimento técnico na área de informática.

O parágrafo 2º do mesmo artigo prevê o aumento de pena “se da conduta resultar prejuízo econômico a pena será elevada de um sexto a um terço”. Ora, há de se recordar que muitas vezes a vítima perde o emprego em decorrência da exposição do material. Ressalta-se que o ressarcimento pelo prejuízo econômico não desincumbe o agente de indenizar civilmente a vítima.

Essa lei se destaca na luta contra o “Revenge Porn”, pois é preciso lembrar que nem sempre o agente causador que obtém o arquivo ilicitamente, com o intuito de expô-lo na Internet, tem livre acesso aos recursos informáticos da vítima, pode tratar-se de um hacker que penetrou no sistema dolosamente. Ressalta-se que para se aplicar a aludida lei ao “Revenge Porn”, o invasor do sistema deve necessariamente conhecer a vítima e praticar a conduta com o intuito de se vingar.

 

2.4. Projetos de Lei nº 6630/13 e 5555/13

 

Visando a tipificação do crime de “Revenge Porn”, surgiram alguns projetos de Lei. O primeiro a ser analisado é a PL 6630/13, de autoria do Deputado Federal Romário, no qual consta, no início do texto que justifica a necessidade dessa lei, reiterando tudo o que foi demonstrado neste trabalho:

 

“A Constituição Federal, que completou 25 anos, já assegura o direito à inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, contudo, lamentavelmente cresce o número de mulheres que tem suas imagens íntimas disponibilizadas, nos meios eletrônicos, por seus ex-companheiros por ato de vingança, humilhação ou autopromoção. Conforme matéria da Folha de São Paulo, veiculada em 02/10/2013, a divulgação de materiais íntimos é um problema crescente na era das redes sociais, quando imagens que eram privadas durante um relacionamento podem alcançar centenas de sites em pouquíssimo tempo. Por causa dessas condutas, as vítimas têm suas vidas destruídas pela ação de outra pessoa em quem confiavam. Normalmente, os casos de fotos e vídeos íntimos publicados na rede são provocados por parceiros que não aceitam o fim do relacionamento e que procuram essa forma para atingir a integridade física, moral e psicológica da vítima, esta prática ganhou até um nome: Pornografia da vingança. Conforme o presidente da Comissão de Tecnologia da Informação da Ordem dos Advogados (OAB) Nacional, Alexandre Rodrigues Atheniense, os crimes de Internet estão aumentando porque os autores acreditam que suas ações ficarão impunes. “O desconhecimento da existência de leis e métodos que podem efetivamente punir os infratores também é fator predominante”, analisou, acrescentando que as mulheres são as maiores vítimas de crimes virtuais contra a honra. Analisando a legislação vigente, especificamente o Código Penal, não encontramos, a princípio, uma norma penal específica que defina a conduta de divulgação indevida de material íntimo. As autoridades acabam enquadrando como difamação ou injúria, que possuem pena branda para a gravidade da conduta”.

 

O Projeto de Lei nº 6630/13 apresenta um grande avanço na tutela da privacidade na Internet, alcançando as expectativas de muitos estudiosos. O PL alteraria o Código Penal Brasileiro através da inclusão de um artigo que tipificaria, conforme a ementa do projeto, “a conduta de divulgar fotos ou vídeos com cena de nudez ou ato sexual sem autorização da vítima”, ou seja, o “Revenge Porn”. Na literalidade do texto:

 

“Art. 2º O Decreto-lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940, passa a vigorar acrescido do seguinte art. 216-B: Divulgação indevida de material íntimo: Art. 216-B. Divulgar, por qualquer meio, fotografia, imagem, som, vídeo ou qualquer outro material, contendo cena de nudez, ato sexual ou obsceno sem autorização da vítima. Pena – “detenção de um a três anos e multa”.

 

Essa primeira alteração abrange tanto os casos de “Revenge Porn” em que se utiliza computador, como os casos em que se utilizam outros meios, uma vez que o “Revenge Porn” se enquadra como crime informático impróprio. Porém, sendo utilizados recursos informáticos para consumar o crime, pelo agravamento na reprodução do conteúdo, o PL prevê uma punição mais severa ao agente:

 

"Art. 5º Se o crime foi cometido por meio da Internet, na sentença penal condenatória, o juiz deverá aplicar também pena impeditiva de acesso às redes sociais ou de serviços de e-mails e mensagens eletrônicas pelo prazo de até dois anos, de acordo com a gravidade da conduta”.

 

Está previsto no artigo 3º que: “O agente fica sujeito a indenizar a vítima por todas as despesas decorrentes de mudança de domicílio, de instituição de ensino, tratamentos médicos e psicológicos e perda de emprego”. O julgador precisa ter conhecimento da extrema gravidade do crime de “Revenge Porn” no momento em que estipular o valor da condenação indenizatória por dano moral, além de, como de praxe, observar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. O pagamento dessa indenização não obsta a reparação dos demais danos causados, como danos materiais e morais, como no artigo 4º.

Este projeto de lei, além de finalmente tipificar o “Revenge Porn”, mostra-se bastante eficiente na sua prevenção, uma vez que a punição envolve a cobrança de dinheiro, desde multa a indenizações. O projeto foi proposto em apenso ao Projeto de Lei nº 5555/13, do Deputado João Arruda, cujo escopo é de, na forma do artigo 1º deste PL, alterar a Lei nº 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, “criando mecanismos para o combate a condutas ofensivas contra a mulher na Internet ou em outros meios de propagação da informação”. Pretende-se incorporar ao rol de crimes contra a mulher a conduta de “Revenge Porn”. O objetivo principal do PL 5555/13 é imputar as mesmas sanções legais da Lei Maria da Penha ao agente que cometeu o delito, quais sejam, o afastamento do lar, restrição de contato com a vítima e demais medidas do artigo 22 da citada Lei. Assim sendo, o artigo 7º da Lei Maria da Penha terá nova redação, nos seguintes termos:

 

“Art. 7º. São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: VI – violação da sua intimidade, entendida como a divulgação por meio da Internet, ou em qualquer outro meio de propagação da informação, sem o seu expresso consentimento, de imagens, informações, dados pessoais, vídeos, áudios, montagens ou fotocomposições da mulher, obtidos no âmbito de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade”.

 

Assim como no Marco Civil da Internet, o PL 5555/13 também prevê ferramentas que darão celeridade à retirada do conteúdo ofensivo da Internet. O PL, entretanto, é mais eficiente neste ponto. Ocorre que, segundo o Marco Civil, só haverá responsabilização do provedor se este desobedecer à ordem judicial no prazo não determinado pela lei, incumbindo ao julgador determinar um prazo. Enquanto que, segundo o PL, o prazo será de vinte e quatro horas. A nova proposta de redação do artigo 22, parágrafo 5º, da Lei Maria da Penha dispõe:

 

“Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: §5º Na hipótese de aplicação do inciso VI do artigo 7º desta Lei, o juiz ordenará ao provedor de serviço de e-mail, perfil de rede social, de hospedagem de site, de hospedagem de blog, de telefonia móvel ou qualquer outro prestador do serviço de propagação de informação, que remova, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, o conteúdo que viola a intimidade da mulher”.

 

Vale ressaltar que já é possível enquadrar na Lei Maria da Penha os crimes de “Revenge Porn”, se cometidos contra mulheres adultas e provocarem dano emocional. Enquanto o PL nº 5555/13 não entra em vigor, outra forma de defender-se juridicamente aplicando as sanções da Lei Maria da Penha é enquadrando o crime no seu inciso II do art. 7º, o qual dispõe quanto as formas de violência contra a mulher: “Art. 7º. [...] II - À violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularizarão, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”.

É inegável a importância das alterações por eles apresentadas nestes dois Projetos de Lei, porém, se forem sancionados separadamente, perderão parte de sua eficácia. Os dois Projetos de Lei se complementam, motivo pelo qual defendo que o PL nº 6630/13 deva ser mantido apenso ao PL nº 5555/13.

 

2.5. O Direito de Ser Esquecido

 

Em 13 de maio de 2014 a Corte Europeia de Justiça consagrou o “direito de ser esquecido”, do inglês “the right to be forgotten”. No caso, Mario Costeja, propôs ação requerendo que não fosse possível encontrar resultados em pesquisa no site Google onde seu nome estivesse conectado à venda de uma casa para pagar uma dívida antiga. A decisão baseou-se no direito ao controle da exposição de informações particulares. As pesquisas do Google funcionam de modo que os links referentes ao assunto procurado no campo de parâmetros de busca sejam apresentados no resultado, assim a empresa tem o manejo dos dados que transitam nas pesquisas. A Corte entendeu que, em decorrência disso, o Google poderia excluir os links que ferissem direitos personalíssimos do requerente.

É preciso que haja uma especificação do conteúdo a ser apagado. O direito de ser esquecido é um tema bastante atual e que tem muita relevância para o presente trabalho, visto que dificulta que se encontrem links através de pesquisas do Google, o que ajuda a inibir a reprodução devastadora do conteúdo do “Revenge Porn”. Esse direito tem reflexos na tutela constitucional da privacidade, da imagem, da honra e da intimidade, pois obsta que o acesso ao conteúdo perpetue-se na rede mundial de computadores.

Antes mesmo dessa decisão da Corte Europeia, o tema já era discutido também no Brasil e o Enunciado nº 531 da VI Jornada de Direito Civil pelo Conselho Federal de Justiça, em 2013, propõe o seguinte:

 

“ENUNCIADO 531 – A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento. Artigo: 11 do Código Civil  Justificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados”.

 

Conforme se explica no texto “Os Limites do Direito de Ser Esquecido” publicado no Jornal Gazeta do Povo, em 14 de junho de 2013, o tema “remete a uma interpretação do Código Civil no que tange aos direitos de personalidade – o direito que as pessoas têm de serem esquecidas pela opinião pública e pela imprensa” (BARAN, 2013). Ademais, levanta polêmicas, pois entra em conflito com o Direito a Memória e pode significar uma forma de impedimento de responsabilização. O instituto do Direito ao Esquecimento perderia seu propósito se fosse invocado com o objetivo de encobrir acontecimentos nos quais prevalecem o direito à informação da sociedade.

O enunciado 531 supracitado foi usado como embasamento em duas decisões do STJ sobre o direito ao esquecimento. A primeira foi prolatada no REsp nº 1.334.097-RJ, perante a 4ª Turma do STJ, interposto num processo contra a Rede Globo de Comunicações que veiculou em um programa de notícias o nome de um dos acusados de estar envolvido no incidente da Chacina da Candelária. O acusado posteriormente foi absolvido e a divulgação de seu nome ofendeu a sua honra. O STJ reconheceu o Direito de ser Esquecido do requerente e condenou a globo a pagar indenização por danos morais. Segundo o STJ um direito não pode se sobrepor ao outro:

 

“A liberdade de imprensa há de ser analisada a partir de dois paradigmas jurídicos bem distantes um do outro. O primeiro, de completo menosprezo tanto da dignidade da pessoa humana quanto da liberdade de imprensa; e o segundo, o atual, de dupla tutela constitucional de ambos os valores”.

 

Compete ao julgador, ao analisar individualmente cada caso, relativizar os direitos em conflito, para então decidir qual preceito aplicar. A importância histórica do crime não é motivação suficiente para eximir o veículo de comunicações pela divulgação do nome de um indivíduo quando da pessoa absolvida não era indispensável para que os fatos fossem retratados de maneira fidedigna. O uso de um nome falso, por exemplo, seria adequado para ilustrar o ocorrido, sem ferir a intimidade do indivíduo.  No caso da Chacina, o STJ argumentou que:

 

“Ressalvam-se do direito ao esquecimento os fatos genuinamente históricos - historicidade essa que deve ser analisada em concreto -, cujo interesse público e social deve sobreviver à passagem do tempo, desde que a narrativa desvinculada dos envolvidos se fizer impraticável”.

 

A segunda decisão histórica ocorreu no REsp nº 1.335.153-RJ, perante a 4ª Turma do STJ, a respeito do caso de Aída Cúri, jovem que foi estuprada e morta em 1958. Seu caso foi de notório conhecimento na época, sendo noticiado por diversos jornais. A família de Aída pleiteou uma indenização pela divulgação do nome da vítima pela Rede Globo, ao exibir uma reconstituição do crime, décadas depois.

O STJ, entretanto, rejeitou o pleito de indenização de maneira congruente com a tendência apresentada na primeira decisão. O STJ alegou que é preciso haver interesse público para impedir que o autor do crime e a vítima tenham Direito ao Esquecimento em caso de divulgação de seus nomes. O STJ compreendeu que a historicidade do crime pode ser motivação pública suficiente para que se possam divulgar os nomes. No entanto, é necessário analisar caso a caso, conforme trecho da decisão:

 

“Com efeito, penso que a historicidade do crime não deve constituir óbice em si intransponível ao reconhecimento de direitos como o vindicado nos presentes autos. Na verdade, a permissão ampla e irrestrita a que um crime e as pessoas nele envolvidas sejam retratados indefinidamente no tempo – a pretexto da historicidade do fato –, pode significar permissão de um segundo abuso à dignidade humana, simplesmente porque o primeiro já fora cometido no passado. Muito pelo contrário, nesses casos o reconhecimento do “direito ao esquecimento” pode significar um corretivo – tardio, mas possível – das  vicissitudes do passado, seja de inquéritos policiais ou processos judiciais  pirotécnicos e injustos, seja da exploração populista da mídia. Portanto, a questão da historicidade do crime, embora relevante para o desate de controvérsias como a dos autos, pode ser ponderada caso a caso, devendo ser aferida também a possível artificiosidade da história criada na época”.

 

O STJ entendeu que a Rede Globo não conseguiria ocultar o nome da vítima, visto que sua divulgação seria dotada de interesse público e histórico. Concluiu que é imprescindível a verificação da existência de interesse público na divulgação da informação. Em caso positivo, não há o que se falar em direito de ser esquecido. O tema necessita ainda de muita reflexão para que não seja mal utilizado. Fazendo-se uma breve busca pelo Google, é fácil deparar-se com casos de políticos corruptos tentando fazer-se valer do Direito ao Esquecimento.

Tal preocupação não prevalece, no entanto, em face da vítima de “Revenge Porn” que pleiteia pela retirada do material ofensivo dos resultados em sites de busca. Susto que não há impedimento algum para isso, pelo contrário, é de extrema urgência que se faça. Ainda que o provedor apague o arquivo original, em muitos casos outros internautas reproduzem cópias que se “eternizam” na rede aberta.

Como já foi visto, o STJ também compreendeu pela condenação do Google em indenização por danos morais justamente por essas cópias terem sido reproduzidas. Com o escopo de por fim nisso, o Direito ao Esquecimento é o último aliado à tutela constitucional da privacidade ante as novas tecnologias a ser analisado, mas não o menos importante.

Conclusão

 

modus operandi do Revenge Porn é um assunto complexo de se analisar, pois necessita certo conhecimento sobre o próprio funcionamento da Internet e dos novos aparelhos tecnológicos. Todavia, pode-se concluir que a melhor forma de tutelar a privacidade é adotar uma regulamentação de cunho preventivo, tendo em vista que os danos provocados pelo “Revenge Porn” são irreparáveis. Quanto mais específicas, precisas e diretas, as normas, mais eficiente será a proteção. Do mesmo modo, quanto mais punitivas pecuniariamente as penas, no que tange a multas, maior será a prevenção contra a prática dessas condutas. É preciso incentivar também a resolução da lide na área cível, através da indenização.

Ainda não há previsão específica no ordenamento jurídico brasileiro, nos moldes que aqui foram propostos. O que temos é uma legislação omissa, restando aos juristas aplicar outros dispositivos por analogia. O Marco Civil da Internet, a mais recente lei que regulamenta o uso da Internet apresentou grandes avanços no que tange a responsabilização civil dos provedores pela veiculação de imagem sem autorização do seu dono e sua previsão provoca, como consequência uma maior agilidade na retirada do conteúdo. Outros instrumentos úteis são as previsões da Lei Carolina Dieckmann e a consagração do Direito ao Esquecimento. Contudo, os Projetos de Lei que mais se aproximam da abordagem necessária para uma tutela efetiva da privacidade são o PL nº 6630/13 e 5555/13. Portanto, o futuro pode não ser tão obscuro quanto o passado já foi para as vítimas de “Revenge Porn”.

Além da tutela jurídica, é preciso que a sociedade se conscientize quanto ao tema. Ensinar à juventude a respeitar a privacidade e usar as novas tecnologias com responsabilidade é indispensável, mesmo porque estes são mais suscetíveis de cair em armadilhas na internet. A transformação não deve ser só jurídica, estrutural, faz-se necessário promover uma verdadeira reeducação, de modo que as pessoas parem de reproduzir e divulgar casos do “Revenge Porn”. É preciso que este compreenda e respeite os direitos fundamentais em todas as suas atitudes, o que inclui o uso da Internet. Ser ético é um ato universal.

 

Referências Bibliográficas, Legais e Jurisprudenciais

 

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