A trilogia neutralidade da rede, fast lane e zero rating


PorLahis Kurtz- Postado em 25 julho 2016

Muito se tem falado sobre os perigos e vantagens de tudo isso, e a verdade é que ainda estávamos precisando firmar melhor uma posição para entender esses conceitos - para daí discutir os riscos.

O post é longo mas vale a pena! Esperamos que com isso vocês que estavam como nós, meio sem saber bem o que era um ou outro, o que podia ou não, também não se percam mais nos termos técnicos. E, no fim, entendam o que está legislado e o que não está, bem como o que está em jogo.

Vamos lá:

Começando pelos básicos: Imagine que a internet é uma rede de estradas em que circulam veículos transportando todo tipo de coisas. Mas estradas especiais: todo mundo nelas trafega na mesma velocidade. Isso quer dizer que não tem como algum tipo de coisa ir mais rápido que outras. Entretanto essas estradas têm várias pistas, são largas - mas sua largura é limitada. (Crédito: devo esta analogia e várias explicações dadas aqui ao ótimo vídeo do canal Peixe Babel)

A internet foi feita para se manter exatamente assim, não importa o que aconteça. Ela seria totalmente indiferente ao tipo de conteúdo que é carregado nas suas vias, de forma que tudo trafegasse igualmente pela sua banda e não existissem prioridades. Isso é a ideia de neutralidade da rede: não discriminar o tráfego conforme o conteúdo dos pacotes de informação.

Pronto. Vamos agora à fast lane e ao zero rating.

Caso 1: fast lane

Agora imagine que muita gente está tentando acessar o conteúdo de uma rede social A. No cenário que narramos, os pacotes de informação que precisam chegar nos computadores/smartphones das pessoas para elas verem o conteúdo da rede social A estão espalhados no meio de vários outros que trafegam pelas vias da internet. Pense em uma estrada cheia de caminhões de várias empresas, dentre elas a da rede social A. Como todos estão na mesma velocidade e não possuem prioridade, vai demorar um certo tempo até que se reúna pacotes suficientes de informação carregados por eles para mostrar a página.

Fonte da imagem

 

Mas tivemos uma ideia: por que não reservar algumas pistas nessa estrada só para transportar o conteúdo da rede social A, já que tantas pessoas querem acessá-lo? Assim, ele chegaria mais rápido, como se trafegasse por uma via expressa (fast lane). Pense no corredor de ônibus em uma cidade grande. Fizemos um "corredor de pacotes de informação da rede social A", onde esses pacotes têm prioridade sobre os outros.

Muito bem, parece que isso resolve o problema. Se eu quiser acessar a rede social A agora, ela vai carregar muito mais rápido que outras coisas na minha tela. Certo, irá. Mas só um momento: e se eu quiser acessar outra coisa? Pois então. Todas as outras coisas estão competindo pelas vias que sobraram, que são limitadas, e consequentemente estão chegando em volume menor por vez. Isso significa que demorarão bem mais para carregar na minha tela. Agora, quando eu quero saber quais são as notícias do dia, acesso o grande site de notícias, pois ele é o único que carrega em um tempo tolerável; os sites menores ou independentes são tão lentos que não vale a pena consultá-los.

Primeira conclusão: fast lane fere diretamente a neutralidade da rede (consequentemente, o Marco Civil da Internet e sua regulamentação proíbem essa prática); ela é o oposto de tratar igualmente todos os pacotes de informação independentemente do conteúdo.

Segunda conclusão: discriminar pacotes de informação dessa maneira pode limitar o conteúdo que de fato chega a ser acessado pelas pessoas, pelo fato de que somente sites mainstream teriam prioridade. Você não teria muita motivação para acessar um site que demora 10x mais que outro para carregar e, quanto mais gente acessando o conteúdo da via expressa, mais motivo para alocar novas vias para esse conteúdo. O que aconteceu com a internet como estrutura indiferente ao conteúdo? O que aconteceu com os conteúdos alternativos e independentes?

Caso 2: zero rating

Nesse caso, o que acontece é que você está recebendo todos os pacotes misturados, sem via expressa. Mas você tem um limite determinado de pacotes que pode receber, que você contratou. Depois disso, os pacotes são descartados caso você não compre um novo limite. A não ser por um tipo específico de pacote, digamos o do aplicativo Y. Você sabe que pode usar o limite para toda a internet, sem restrições, tudo carregará na mesma velocidade.

Mas o acesso ao aplicativo Y não é debitado do seu limite, é um "bônus" que vem com o plano contratado. Assim, tudo funcionará normalmente, sites mainstream e sites independentes carregarão na sua tela na mesma velocidade, até que acabe o seu limite. Quando isso acontecer, você passa a poder acessar somente os pacotes de dados do aplicativo Y.

Você não terá outra alternativa, quando acabar o limite, a não ser usar o aplicativo Y, que é a única ferramenta conectada disponível no seu aparelho sem custo adicional (zero rating). Assim, você pode se perguntar: por que usar o aplicativo C, ou o D, similares que vão eventualmente acabar com o limite de dados do meu plano?

Primeira conclusão: parece não haver uma discriminação estrutural dos pacotes de dados. A neutralidade da rede não é diretamente ferida nesse caso.

Segunda conclusão: claro, o bônus é uma forma de negócio, para baratear o acesso à internet, ou antes ampliar a extensão de classes sociais que acessam, a amostra de consumidores, porque de certa forma você continua tendo acesso além do limite contratado sem pagar mais. E isso é inclusão digital; certo? Mas que inclusão digital é essa que canaliza o uso que você vai fazer da internet para um único serviço?

Terceira conclusão: como não há proibição expressa, o zero rating continua permitido. Por enquanto, esse cenário ocorre nos planos de internet para smartphone; o que acontece caso a internet banda larga passe a ser limitada? Vamos pagar mais caro para acessar sites B ou vamos ser canalizados para a rede social A e o aplicativo Y?

Depois de tudo isso: a legislação atual é apta a proteger a neutralidade da rede?

Temos uma limitação direta a violências contra neutralidade da rede como o fast lane, mas a legislação não proibiu o zero rating, que na prática não fere estruturalmente a neutralidade da rede, mas, no fim das contas, na prática, acaba quebrando em princípio a ideia de uma internet onde todos os conteúdos são igualmente acessíveis.

 

Créditos:

O material que trago hoje é especial. Foi elaborado a partir de um hangout temático que tivemos eu, Victor e Thábata, meus colegas de grupo de pesquisa e daqui do Portal, a partir da leitura do material que linkei ao longo do post. Valeu, pessoal!