Termo inicial da aquisição da propriedade imobiliária decorrente de ato ou decisão judicial


Porrayanesantos- Postado em 06 junho 2013

Autores: 
CAVALCANTI, Isabella Silva Oliveira

Introdução

 

O direito de propriedade ainda é um dos mais complexos institutos regidos pelo Direito Privado. Tal complexidade se dá ainda de forma mais acentuada quando nos deparamos com aqueles bens cuja propriedade somente se considera adquirida por um ato solene, e não pela simples tradição, como ocorre com os bens imóveis.

 

O presente artigo tem por escopo analisar o termo inicial da aquisição da propriedade imobiliária decorrente de ato ou decisão judicial, considerando, para tanto, a necessidade ou não de seu registro cartorário.

 

Do modo de aquisição da propriedade imóvel

 

O Código Civil de 1916 (instituído pela Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916) já estabelecia taxativamente o modo de aquisição da propriedade imóvel, nos seguintes termos:

 

Art. 530. Adquire-se a propriedade imóvel:

 

I - pela transcrição do título de transferência no Registro do Imóvel;

 

II - pela acessão;

 

III - pelo usucapião;

 

IV - pelo direito hereditário.

 

A aquisição pela transcrição do título foi melhor detalhada nos dispositivos seguintes, pelos quais se depreende ter sido condicionada a transferência do domínio (inclusive aquelas decorrentes da sucessão hereditária)àtranscrição dos títulos translativos da propriedade imóvel por ato entre vivos e de decisões judiciais:

 

Art. 531. Estão sujeitos à transcrição, no respectivo Registro, os títulos translativos da propriedade imóvel, por ato entre vivos.

 

Art. 532. Serão também transcritos:

 

I - os julgados, pelos quais, nas ações divisórias, se puser termo à indivisão;

 

II - as sentenças, que, nos inventários e partilhas, adjudicarem bens de raiz em pagamento das dívidas da herança;

 

III - a arrematação e as adjudicações em hasta pública.

 

Art. 533. Os atos sujeitos à transcrição (arts. 531 e 532, II e III) não transferem o domínio, senão da data em que se transcreverem (arts. 856, 860, Parágrafo único). (Redação dada pelo Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 15.1.1919)

 

Art. 534. A transcrição datar-se-á do dia em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo.

 

Art. 535. Sobrevindo falência ou insolvência do alienante entre a prenotação do título e a sua transcrição por atraso do oficial, ou dúvida julgada improcedente, far-se-á, não obstante, a transcrição exigida, que retroage, nesse caso, à data da prenotação.

 

Parágrafo único. Se, porém, ao tempo da transcrição ainda não estiver pago o imóvel, o adquirente, logo que for notificado da falência, ou tenha conhecimento da insolvência do alienante, depositará em juízo o preço. (Redação dada pelo Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 15.1.1919) (grifamos)

 

O Código Civil de 2002, por sua vez, deixou de apresentar um rol taxativo sobre os modos de aquisição da propriedade imóvel, somente descrevendo, no Capítulo II de seu Título III, denominado “Da Aquisição da Propriedade Imóvel”, a usucapião, a aquisição pelo registro do título e a aquisição por acessão. A aquisição pelo registro do título encontra-se atualmente regulada nos seguintes termos:

 

Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.

 

§ 1o Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.

 

§ 2o Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel.

 

Art. 1.246. O registro é eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo.

 

Art. 1.247. Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o interessado reclamar que se retifique ou anule.

 

Parágrafo único. Cancelado o registro, poderá o proprietário reivindicar o imóvel, independentemente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente.

 

Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (2006, p. 237) entendem que o Código de Civil de 2002 agiu bem ao deixar de arrolar taxativamente a sucessão, usucapião, acessão e transcrição como modos de aquisição da propriedade imobiliária (tal como o fazia o Código Civil de 1916), tendo em vista que a interpretação sistemática do ordenamento jurídico permitiria vislumbrar outros modos, tais quais, a desapropriação, a adjudicação compulsória e o casamento:

 

O art. 530 do Código Civil de 1916 enumerava quatro modos de aquisição de propriedade imobiliária, a saber: sucessão, usucapião, acessão e transcrição. Dentre estes, a transcrição como único modo peculiar a bens imóveis, servindo os demais, indistintamente, à aquisição de móveis e imóveis.

 

Em sentido diverso, o Código Civil de 2002 não se ocupou em separar um dispositivo específico para tipificar os modos de aquisição de propriedade imobiliária. Andou bem por sinal. é um equívoco afirmar que existem apenas as mencionadas quatro formas de aquisição de propriedade imobiliária. A desapropriação, a adjudicação compulsória e o casamento pela comunhão universal, exemplificadamente, também são modos aquisitivos distintos daqueles que serão analisados a seguir.

 

A partir da leitura do Código Civil de 2002, que não mais inclui rol taxativo de aquisição da propriedade imobiliária, dúvidas podem surgir quanto à natureza do registro cartorário de atos ou decisões judiciais que disponham sobre a alteração da titularidade sobre o bem imóvel.

 

Isso porque, não mais teríamos disposições semelhantes àquela contida no art. 532 do Código Civil de 1916, que previa a obrigatoriedade de transcrição (i) dos julgados, pelos quais, nas ações divisórias, se puser termo à indivisão; (ii) das sentenças, que, nos inventários e partilhas, adjudicarem bens de raiz em pagamento das dívidas da herança; (iii) da arrematação e das adjudicações em hasta pública.

 

Do registro cartorário de atos ou decisões judiciais que disponham sobre a alteração da titularidade sobre o bem imóvel

 

A autora Maria Helena Diniz (2010, p. 267-268), em sua obra “Sistemas de Registros de Imóveis”, aponta a necessidade do ato de registro da carta de arrematação e da carta de adjudicação de imóvelpara transferência do domínio do imóvel ao arrematante ou ao adjudicante

 

Esta carta de arrematação, expedida pelo juízo da execução ou pelo que presidiu a venda em hasta pública, será o título a ser apresentado a registro (Lei n. 6.015/73, art. 167, I, n. 26; RJTJSP, 37:310, 54:380, 57:405, 59:427, 65:401, 92:537, 99:536) no Livro n. 2, para que se tenha a transferência do domínio do imóvel ao arrematante.

 

(..)

 

Essa carta de adjudicação deverá ser levada a assento no Registro de Imóveis (Lei n. 6.015/73, art. 167, I, n. 26; RJTJSP, 41:387, 55:289 e 397, 81:453 e 461), no Livro n. 2, para que se transmita a propriedade do imóvel ao exeqüente.

 

Para temperar esse entendimento doutrinário, destaca-se que o Código de Processo Civil - CPC prevê, em seus arts. 685-B, 694, ‘caput’, e 703, que a adjudicação e a arrematação consideram-se perfeitas e acabadas com a lavratura de suas atas e expedição de suas respectivas cartas: 

 

Art. 685-B.  A adjudicação considera-se perfeita e acabada com a lavratura e assinatura do auto pelo juiz, pelo adjudicante, pelo escrivão e, se for presente, pelo executado, expedindo-se a respectiva carta, se bem imóvel, ou mandado de entrega ao adjudicante, se bem móvel. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).

 

Parágrafo único.  A carta de adjudicação conterá a descrição do imóvel, com remissão a sua matrícula e registros, a cópia do auto de adjudicação e a prova de quitação do imposto de transmissão. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).

 

Art. 694.  Assinado o auto pelo juiz, pelo arrematante e pelo serventuário da justiça ou leiloeiro, a arrematação considerar-se-á perfeita, acabada e irretratável, ainda que venham a ser julgados procedentes os embargos do executado. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).

 

Art. 703. A carta de arrematação conterá: (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973)

 

I - a descrição do imóvel, com remissão à sua matrícula e registros; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).

 

II - a cópia do auto de arrematação; e (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).

 

III - a prova de quitação do imposto de transmissão. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).

 

Dessarte, pela literalidade dos dispositivos acima transcritos, a transferência do imóvel nos casos de adjudicação e arrematação judicial não ficaria condicionada ao seu registro imobiliário, ao contrário do que ocorreria na alienação promovida pelo próprio exeqüente, nos termos do art. 685-C, § 2º, do CPC: 

 

Art. 685-C.  Não realizada a adjudicação dos bens penhorados, o exeqüente poderá requerer sejam eles alienados por sua própria iniciativa ou por intermédio de corretor credenciado perante a autoridade judiciária. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).

 

§ 2º  A alienação será formalizada por termo nos autos, assinado pelo juiz, pelo exeqüente, pelo adquirente e, se for presente, pelo executado, expedindo-se carta de alienação do imóvel para o devido registro imobiliário, ou, se bem móvel, mandado de entrega ao adquirente.(Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).

 

Ademais, pela análise desses dispositivos, tanto a carta de adjudicação quanto a carta de arrematação já deveriam conter a prova de quitação do imposto de transmissão[1], que, por sua vez, pressupõe a ocorrência de um dos fatos geradores descritos no art. 35 do Código Tributário Nacional – CTN, instituído pela Lei nº 5.712, de 25 de outubro de 1966:

 

Art. 35. O imposto, de competência dos Estados, sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos a eles relativos tem como fato gerador:

 

I - a transmissão, a qualquer título, da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis por natureza ou por acessão física, como definidos na lei civil;

 

II - a transmissão, a qualquer título, de direitos reais sobre imóveis, exceto os direitos reais de garantia;

 

III - a cessão de direitos relativos às transmissões referidas nos incisos I e II.

 

Parágrafo único. Nas transmissões causa mortis, ocorrem tantos fatos geradores distintos quantos sejam os herdeiros ou legatários.

 

Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que o fato gerador do imposto de transmissão,mesmo em sendo decorrente de hasta pública, seria o registro no cartório próprio:

 

TRIBUTÁRIO. RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. ITBI. FATO GERADOR. CTN, ART. 35 E CÓDIGO CIVIL, ARTS. 530, I, E 860, PARÁGRAFO ÚNICO. REGISTRO IMOBILIÁRIO.

 

1. O fato gerador do imposto de transmissão de bens imóveis ocorre com a transferência  efetiva da propriedade ou do domínio útil, na conformidade da Lei Civil, com o registro no cartório imobiliário.

 

2. A cobrança do ITBI sem obediência dessa formalidade ofende o ordenamento jurídico em vigor.

 

3. Recurso ordinário conhecido e provido.

 

(RMS 10650/DF, Rel. Ministro FRANCISCO PEÇANHA MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/06/2000, DJ 04/09/2000, p. 135)

 

TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE TRANSMISSÃO INTER VIVOS. BASE DE CÁLCULO. VALOR VENAL DO BEM. VALOR DA AVALIAÇÃO JUDICIAL. VALOR DA ARREMATAÇÃO.

 

I - O fato gerador do ITBI só se aperfeiçoa com o registro da transmissão do bem imóvel. Precedentes: AgRg no Ag nº 448.245/DF, Rel. Min. LUIZ FUX, DJ de 09/12/2002, REsp nº 253.364/DF, Rel. Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS, DJ de 16/04/2001 e RMS nº 10.650/DF, Rel. Min. FRANCISCO PEÇANHA MARTINS, DJ de 04/09/2000. Além disso, já se decidiu no âmbito desta Corte que o cálculo daquele imposto “há de ser feito com base no valor alcançado pelos bens na arrematação, e não pelo valor da avaliação judicial” (REsp. n.º 2.525/PR, Rel. Min. ARMANDO ROLEMBERG, DJ de 25/6/1990, p. 6027). Tendo em vista que a arrematação corresponde à aquisição do bem vendido judicialmente, é de se considerar como valor venal do imóvel aquele atingido em hasta pública. Este, portanto, é o que deve servir de base de cálculo do ITBI.

 

II - Recurso especial provido.

 

(REsp 863.893/PR, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/10/2006, DJ 07/11/2006, p. 277)

 

Pontuada a controvérsia em torno do tema e para melhor esclarecer a necessidade ou não de registro de atos ou decisões judiciais que disponham sobre a alteração da titularidade sobre o bem imóvel, faremos uma breve análise acerca dos fundamentos e efeitos do registro cartorário.

 

Dos fundamentos e efeitos do registro cartorário

 

A necessidade de registro de negócios jurídicos privados, para fins de transferência de propriedade sobre bens imóveis, é justificada pela doutrina, principalmente, em virtude da necessidade de se garantir eficácia real ao direito obrigacional travado entre particulares, atraindo a sua oponibilidade ‘erga omnes’.

 

Decerto, consoante previsto no art. 1.228 do Código Civil, a propriedade garante ao seu titular “a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou a detenha”.

 

No entanto, a doutrina civilista compreende o direito de propriedade como um direito complexo que se instrumentaliza pelo domínio. Assim, além das faculdades de uso, gozo e disposição exercidas pelo titular sobre a coisa, o proprietário também necessita garantir o cumprimento de sua função social e a publicidade dessa situação jurídica, para garantir o devido respeito por parte de terceiros. É em face dessa situação complexa, que Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (2006, p. 178-179) bem diferenciam o domínio da propriedade:

 

A propriedade é um direito complexo, que se instrumentaliza pelo domínio, possibilitando ao seu titular o exercício de um feixe de atributos consubstanciados nas faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto (art. 1.228 do CC). A referida norma conserva os poderes do proprietário nos moldes tradicionais.

 

(...)

 

Assim, o domínio é instrumentalizado pelo direito de propriedade. Ele consiste na titularidade do bem. Aquele se refere ao conteúdo interno da propriedade. O domínio, como vínculo real entre o titular e a coisa, é absoluto. Mas, a propriedade é relativa, posto intersubjetiva e orientada à funcionalização do bem pela imposição de deveres positivos e negativos de seu titular perante a coletividade. Um existe em decorrência do outro. Cuida-se de conceitos complementares e comunicantes que precisam ser apartados, pois em várias situações o proprietário – detentor da titularidade formal – não será aquele que exerce o domínio (v.g. usucapião antes do registro; promessa de compra e venda após a quitação). Veremos adiante, que a propriedade recebe função social, não o domínio em si.

 

Enquanto as faculdades de uso, gozo e disposição compõem o domínio – com possibilidade de desmembramento -, a pretensão reivindicatória emerge da lesão ao direito subjetivo de propriedade e traduz o conteúdo jurídico do direito subjetivo. Ou seja, reivindicar consiste justamente na possibilidade do proprietário sancionar aquele que possui injustificadamente a coisa, por ter violado o dever genérico de abstenção, prestação negativa que serve de objeto a relação jurídica com a coletividade.

 

Para que o proprietário possa impor à coletividade em geral um dever de abstenção, podendo reivindicar a coisa de quem quer que seja, é necessário garantir a publicidade do seu direito subjetivo de propriedade.

 

Nesse sentido, a Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, ao dispor sobre os serviços notariais e de registro, estabelece, em seu art. 1º, que esses serviços são destinados “a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”.

 

Em se tratando do serviço de registro de título translativo da propriedade imobiliária, regido pelos arts. 1.245 a 1.247 do Código Civil, Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (2006, p. 246-258) apontam os seguintes atributos desse ato cartorário:

 

a)      constitutividade  - condição para aquisição da propriedade imobiliária ‘inter vivos’;

 

b)      prioridade ou preferência – “é a proteção concedida àquele que prenota o título constitutivo em primeiro lugar no Livro de Protocolo do Registro Imobiliário”;

 

c)      força probante – representa a presunção relativa, ou ‘juris tantum’, de sua legalidade, o que lhe permite a produção de todos os efeitos legais, enquanto não cancelado;

 

d)     continuidade – é a conexão que deve existir entre os registros anteriores e o atual, representando uma cadeia registral, tanto no que diz respeito às mudanças de titularidade formal, quanto no tocante às eventuais alterações do bem imóvel;

 

e)      publicidade – é a necessidade de dotar a sociedade em geral de conhecimento da situação jurídica dos bens imóveis, de forma a permitir a sua oponibilidade ‘erga omnes’;

 

f)       legalidade – é o controle exercido pelo registrador no tocante aos aspectos formais dos títulos passíveis de registro, garantindo um equilíbrio entre a situação jurídica pretendida e a publicidade registral, na medida em que compatibiliza os dados do título com as informações constantes do registro, e permitindo a sua confiabilidade pela sociedade em geral;

 

g)      especialidade – “é a individuação do imóvel objeto do título no registro”, de forma a permitir precisá-lo para garantir uma segurança quanto à realidade material de cada imóvel.

 

Embora toda a doutrina sobre o registro dos títulos translativos para aquisição da propriedade imobiliária tenha sido construída considerando a necessidade de ser a relação obrigacional travada entre dois particulares submetida ao crivo do Estado, com todos os atributos acima analisados, o certo é que vários desses atributos também são imprescindíveis para o pleno exercício do direito de propriedade decorrente de atos ou decisões judiciais.

 

Na verdade, dos atributos acima destacados, fica clara a aplicabilidade da continuidade, publicidade e especialidade, independente da natureza judicial ou não do título pelo qual se pretende transmitir a propriedade. Quanto ao atributo da legalidade, o Superior Tribunal de Justiça já entendeu ser possível a submissão dos títulos judiciais ao crivo da legalidade formal do oficial cartorário, para fins de sua qualificação:

 

Recurso em Mandado de Segurança. Registro de imóvel. Ação de Divisão. Suscitação de Dúvida. Cabimento.

 

I - Tendo em vista os princípios da disponibilidade, especialidade e continuidade que norteiam os registros públicos, assegurando-lhes a confiabilidade dos mesmos, pode o Oficial do Registro suscitar dúvida, independentemente de ser título judicial ou extrajudicial.

 

II - Não preenchidos os requisitos exigidos para a pretendida transcrição no Registro de Imóveis, inexiste o alegado direito líquido e certo a ser amparado pelo mandamus.

 

III - Recurso em mandado de segurança desprovido.

 

(RMS 9.372/SP, Rel. Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/05/2005, DJ 13/06/2005, p. 285)

 

Pela leitura do inteiro teor do RMS 9.372/SP, tanto os títulos judiciais quanto os extrajudiciais seriam passíveis do procedimento de suscitação de dúvida, não sendo considerada a análise cartorária por si só uma violação à coisa julgada:

 

Os Tribunais de Justiça têm mantido o entendimento de que não há distinção entre os títulos judiciais e extrajudiciais para fins de suscitação de dúvida, tendo em vista os princípios registrários, como citados na já referida obra de Maria Helena Diniz. Transcrevo alguns deles, verbis:

 

"AC 993-0, Iguape, 11-5-1982 - Não há distinção na lei entre títulos judiciais e extrajudiciais para fins de exame pelo Oficial do Registro de Imóveis. Ambos podem ser objeto de dúvida.

 

AC 1.558-0, Palmital, 3-11-1982 - "Os títulos judiciais também são susceptíveis de suscitação de dúvida, na medida em que também podem não se ajustar aos princípios norteados do Registro de Imóveis."

 

AC 452-0, Guarujá, 11-11-1981 - Os mandados judiciais, como qualquer outro título, são suscetíveis de apreciação, pelo Oficial, à luz dos princípios normativos dos Registros Públicos. Também em relação a eles pode ser suscitada dúvida.

 

RT, 582:88 - A origem judicial do título não o alivia do ônus de satisfazer os requisitos de ingresso no Registro Imobiliário, mui especialmente cabendo ao oficial velar pela observância dos princípios normativos que são peculiares aos Registros Imobiliários, dentre eles, com destaque, o da continuidade dos registros.

 

RT, 585:85 - A origem judicial dos títulos não os alivia do exame pelo oficial, tendo em conta os princípios registrários, sendo certo que, se ao registrador não é dado objetar às partilhas julgadas, também não pode deixar de lado o controle que lhe cabe, indiscutivelmente, p.ex., sobre a obediência aos princípios da continuidade e da especialidade,

 

RT, 551:101; 286.908 - RT, 539:103;271.597 - RT, 517:121; 271.182; 269.827 - RT, 515:112; 980-0; 993-0).(fls. 347/348).

 

Tendo em vista os princípios da disponibilidade, especialidade e continuidade que norteiam os registros imobiliários, assegurando-lhe a confiabilidade dos mesmos, não poderia ser procedido o registro como requerido pelos impetrantes, ora recorrentes. A recusa do registrador não configura ofensa à coisa julgada, estando os títulos judiciais também suscetíveis de apreciação dos requisitos exigidos. Assim, não preenchendo os requisitos exigidos, tendo em vista ser a área contemplada superior à disponibilidade do respectivo assentamento transcrito, além de a parcela ser inferior ao módulo exigido, o direito líquido e certo dos impetrantes não se apresenta patente.

 

No tocante à força probante, é importante destacar que aqui consideramos a presunção relativa de legalidade do registro de determinado título, que pressupõe uma análise prévia de legalidade formal, também denominada qualificação do título. Assim, também quanto a esse atributo não parece haver divergência em sua incidência para os títulos judiciais passíveis de registro.

 

Talvez a discussão maior se restrinja à aplicabilidade dos atributos de prioridade ou preferência e, principalmente, da constitutividade, que é objeto de análise específica na presente manifestação.

 

No tocante ao atributo de prioridade e preferência, entendo que sua caracterização deverá considerar peculiaridades do caso concreto, não sendo conveniente apresentar uma solução jurídica abstrata que desconsidere cada situação a ser analisada.

 

Quanto ao atributo da constitutividade, já vimos acima que o direito de propriedade é um direito complexo que envolve diversas faculdades, entre elas o direito de dispor e de reivindicar a coisa onde quer que ela se encontre, tendo em vista a sua oponibilidade ‘erga omnes’.

 

Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (2006, p. 239 e 246) defendem que, mesmo em se tratando de sentença judicial declaratória de usucapião ou de decisão judicial proveniente da sucessão, é relevante o seu registro no cartório de imóveis para fins de (i) garantir a sua publicidade, necessária para a sua oponibilidade ‘erga omnes’ (conforme visto acima), (ii) alterar a titularidade formal e (iii) permitir ao adquirente dispor do bem imóvel.

 

A incidência dos atributos de publicidade e continuidade seria, pois, necessária para o exercício pleno do direito de propriedade (mormente no tocante à faculdade de disposição do bem), ainda que se considere que o seu domínio já seria transmitido desde que satisfeitos os requisitos previstos no Código Civil para a configuração da usucapião em suas diferentes modalidades ou do direito sucessório:

 

Quando registramos um título aquisitivo de propriedade (v.g. escritura de compra e venda), alcançamos a condição de proprietários em caráter ‘ex nunc’. Vale dizer, o adquirente recebe os poderes dominiais do bem e se converte em titular do direito subjetivo de propriedade. Todavia, o registro da sentença de usucapião e do formal de partilha não são fatos aquisitivos do domínio, pois este já foi adquirido, respectivamente, ao tempo em que se completou a usucapião e no momento da morte (art. 1.784 do CC). Assim, tratando-se dos modos aquisitivos da sucessão e usucapião o registro possui natureza declaratória de domínio, com a importante função de gerar titularidade e trânsito jurídico em prol do usucapiente e do herdeiro, sem se olvidar da necessária publicidade, capaz de produzir oponibilidade ‘erga omnes’ a respeito da alteração subjetiva do direito de propriedade.

 

(...)

 

Como modo de aquisição, portanto, o registro produz efeitos ‘ex nunc’, jamais retroagindo à aquisição da propriedade imobiliária à época da formalização do título. Com efeito, no período anterior ao registro, o alienante ainda é o proprietário e arcará com as obrigações ‘propter rem’. A fim de evitar prejuízos patrimoniais, cumpre-lhe buscar a tutela inibitória da obrigação de fazer, com imposição de astreintes (art. 461 do CPC), como forma de compelir o adquirente a efetuar o registro do título com celeridade.

 

O art. 1.227 do Código Civil faz alusão ao efeito constitutivo do registro, mas, ao final do dispositivo, ressalva “os casos expressos neste Código”. Portanto, o legislador excepciona hipóteses de registros meramente declaratórios. De fato, nos modos aquisitivos da sucessão e usucapião, o registro possui efeitos retroativos, pois o domínio do bem imóvel levado ao ofício imobiliário, mediante o formal de partilha ou pela sentença na ação de usucapião, já fora adquirido ‘ex tunc’ pela saisine (art. 1.784, CC), ou pelo decurso da prescrição aquisitiva. Nessas duas hipóteses, o registro terá a função de alterar a titularidade formal, conceder publicidade à aquisição e permitir ao adquirente dispor do bem. Destarte, a falta do registro, nos dois casos, importará em suspensão do exercício pleno do direito subjetivo.

 

Após toda essa celeuma doutrinária e jurisprudencial, uma leitura mais detida do texto acima transcrito parece demonstrar que a diferença relevante entre o registro de títulos judiciais declaratórios ou constitutivos do direito de propriedade e o registro de atos negociais privados seria o efeito ‘ex nunc’ ou ‘ex tunc’ a ser produzido, mormente para fins de aplicação do art. 1.245, § 1º, do Código Civil no que se refere à responsabilidade pelas obrigações ‘propter rem’[2], ‘in verbis’:

 

Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.

 

§ 1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel. 

 

Contudo, é importante salientar que mesmo em se tratando de direito obrigacional, alguns de seus efeitos jurídicos são produzidos independente de seu registro, tendo em vista que o negócio jurídico se considera aperfeiçoado entre as partes quando preenchidos os requisitos do art. 104[3] do Código Civil de 2002. Ainda nos dizeres de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (2006, p. 188), admite-se, atualmente, que a própria faculdade reivindicatória do direito de propriedade possa ser exercida pelo promissário comprador que adimpliu todas as suas obrigações:

 

Entendia-se, até pouco tempo, que a reivindicatória era uma pretensão privativa do proprietário, não extensiva aos titulares de outros direitos. Hoje, já se admite a possibilidade de o promissário comprador que adimpliu todas as prestações, porém não obteve a titularidade definitiva por faltar-lhe a outorga da escritura definitiva, manejar a reivindicatória em face de terceiros que estejam ocupando o imóvel[4]. Ora, se o contratante que já arcou com o preço integral do bem possui domínio e conta com a pretensão à sua adjudicação ou ao exercício da ação de outorga de escritura perante o promitente vendedor (art. 639 do CPC), nada impedirá a sua defesa em face de terceiros, malgrado careça da formalidade do registro.

 

Conclusão

 

Assim, diante de toda a complexidade jurídica em torno do assunto, entendo possível considerar que atos ou decisões judiciais que disponham sobre a alteração da titularidade sobre o bem imóvel tenham, em geral,natureza constitutiva de domínio, sendo o seu registro necessário para os fins de garantir não somente publicidade e continuidade, mas também outras finalidades do ato cartorário, como o controle de legalidade formal (qualificação do título), possibilitando, por conseguinte, o exercício pleno do direito de propriedade, incluindo a disposição do bem com alteração da sua titularidade formal.

 

Quanto às decisões judiciais decorrentes da usucapião[5] e da sucessão[6], o seu registro também teria as mesmas finalidades apontadas no parágrafo anterior. Entretanto, em face da natureza declaratória daqueles atos judiciais, a transferência do domínio se daria no momento do cumprimento dos requisitos previstos no Código Civil para a configuração daqueles modos autônomos de aquisição da propriedade, e não no momento em que publicadas as respectivas decisões judiciais.

 

Referências bibliográficas:

 

ROSENVALD, Nelson & DE FARIAS, Cristiano Chaves.Direitos Reais. 3ª ed. Rio de Janeiro:Lumen Juris Editora, 2006. 

 

DINIZ, Maria Helena. Sistemas de Registros de Imóveis. 9ª ed.São Paulo: Editora Saraiva, 2010.

 

Notas:

[1] Embora a redação desses dispositivos seja proveniente da alteração promovida pela Lei nº 11.382, de 2006, a redação anterior já previa, v.g., que a carta de arrematação conteria a prova da quitação dos impostos, nos termos da redação anterior dada ao seu art. 703, II.

[2] As obrigações ‘propter rem’ são aquelas que decorrem da mera titularidade de um direito real, independente de uma manifestação de vontade prévia, como a obrigação do condômino de contribuir para a coisa comum ou a obrigação de adimplir com os impostos alusivos à propriedade.

[3]Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

I - agente capaz;

II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III - forma prescrita ou não defesa em lei.

[4]REsp nº 55.941/DF, STJ, Rel. Min. Carlos Alberto Direito, DJU 01.06.1998, p. 77.

[5]Art. 941. Compete a ação de usucapião ao possuidor para que se Ihe declare, nos termos da lei, o domínio do imóvel ou a servidão predial.

[6]Art. 982.  Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título hábil para o registro imobiliário. (Redação dada pela Lei nº 11.441, de 2007).

 

 

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