A seletividade do Sistema Penal: uma abordagem crítica acerca dos crimes de colarinho branco


Porjeanmattos- Postado em 21 setembro 2012

Autores: 
SOARES, Thais Fernanda Serra

 

Thaís Fernanda Serra Soares

 

 

Sumário: Introdução; 1 A transição paradigmática no âmbito da criminologia crítica: uma nova concepção sobre o funcionamento do sistema penal; 2 A seletividade como regra nas etapas de criminalização primária e secundária do sistema penal; 2.1 O papel exercido pela mídia na sociedade: uma visão estritamente maniqueísta. 3 A (in) eficácia da pretensão punitiva em relação aos crimes de colarinho branco; 3.1 A ineficácia da prevenção geral: a necessidade de se inverter a função real e da aplicação de novas penas; Conclusão; Referências.

 

 

RESUMO

 

Estudo teórico acerca da seletividade do sistema penal, em que far-se-á uma análise crítica sobre os chamados crimes de colarinho branco. Preliminarmente, será feita uma análise a respeito da transição de paradigma que ocorrera no campo da criminologia crítica, bem como um exame da seletividade no seio da criminalização primária e secundária. Ademais, comenta-se sobre a influência midiática na formação da ideologia penal dominante e também sobre a (in) eficácia da função intimidatória do sistema penal em relação aos crimes de colarinho branco e a possibilidade de se aplicar novas penas.

 

PALAVRAS-CHAVE:

Seletividade. Impunidade. Sistema penal. Mídia. Maniqueísmo.

 

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo abordar sobre a seletividade do sistema penal, mormente no seio da criminalização primária e secundária, tendo como principal recorte os crimes de colarinho branco, ou seja, aqueles crimes praticados principalmente pelas classes mais abastadas, isto é, aqueles que realmente detêm o poder nas tessituras sociais.

Com isso, primeiramente, tenta-se entender como se deu essa mudança de pensamento na criminologia crítica, bem como vislumbra-se como se dá atualmente o funcionamento do sistema penal, sob a égide do paradigma da reação social. Adiante, faz-se uma elucubração sobre as etapas de criminalização do sistema penal, como também os gargalos que existem nessas aludidas etapas.

Por conseguinte, faz-se necessário abordar sobre a influência da mídia na formação de uma ideologia estritamente maniqueísta, violenta e precipuamente seletiva, em outras palavras, a mídia como sendo a principal protagonista na gênese da ideologia penal dominante que predomina atualmente.

Por fim, é imprescindível analisar as prevenções do sistema penal, ou seja, a prevenção geral e a prevenção especial, ratificando que essas duas prevenções só existem na teoria, pois na prática são uma falácia. Outrossim, apresenta-se uma possível solução para os problemas oriundos do sistema penal, através da aplicação de penas alternativas para os crimes que não são realmente lesivos à sociedade, e somente a aplicação das penas restritivas de liberdade para os crimes efetivamente danosos aos bens jurídicos protegidos, principalmente os chamados crimes de colarinho branco.

 

1 A TRANSIÇÃO PARADIGMÁTICA NO ÂMBITO DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA: UMA NOVA CONCEPÇÃO SOBRE O FUNCIONAMENTO DO SISTEMA PENAL

O paradigma etiológico da criminologia, de matriz positivista, tinha como principais autores Lombroso e Ferri. O primeiro defendia que o homem já nasce criminoso, sendo que isso faz parte da ontologia dele. Enquanto que Ferri falava que o homem não só nasce criminoso, mas também que o meio pode influenciá-lo para se tornar criminoso. Segundo Vera Andrade (p. 35, 2003):

A criminologia positivista é definida como uma ciência causal-explicativa da criminalidade, ou seja, que tendo por objeto a criminalidade concebida como fenômeno natural, causalmente determinado, assume a tarefa de explicar as suas causas segundo método científico ou experimental e o auxílio das estatísticas criminais oficiais e de prever os remédios para combatê-la.

 

 

Em outras palavras, esse paradigma tenta justificar a questão do crime através de fatores biológicos e psíquicos, em que se acreditava que certas pessoas já nascem com tendência para delinqüir, constatando-se que a delinqüência era definida como atributo do indivíduo. Portanto, ressalta Vera Andrade (p. 37, 2003):

 

Estabelece-se desta forma uma divisão aparentemente “científica” entre o (sub) mundo da criminalidade, equiparada à marginalidade e composta por uma “minoria” de sujeitos potencialmente perigosos e anormais (o “mal”), e o mundo, decente, da anormalidade, representado pela maioria na sociedade (o “bem”).

 

 

Portanto, pode-se concluir que o objeto imediato da Criminologia de matriz positivista passa a ser o homem delinqüente, que detinha características próprias e era considerado um indivíduo anômalo, em virtude disso, deveria ficar sob observação clinica (JUNIOR, 2005, p. 121).

O sistema penal se fundamenta nesta concepção, em que propaga-se a idéia de “periculosidade” de alguma parte da sociedade (os homens etiquetados como maus). Portanto, percebe-se que a criminologia positivista foi de suma importância para a produção e reprodução de uma imagem estigmatizada, estereotipada da criminalidade e também do criminoso, que sempre estava ligado aos excluídos da sociedade.

A partir da década de sessenta, surge um novo paradigma na criminologia, que vai ser uma revolução científica no âmbito da sociologia criminal, trazendo como inovação a questão da seletividade (rotulamento). E conforme Alessandro Baratta (p.103, 1999):

 

Estas conotações da criminalidade incidem não só sobre os estereótipos da criminalidade, os quais, como investigações recentes têm demonstrado, influenciam e orientam a ação dos órgãos oficiais, tornando-a, desse modo, socialmente “seletiva”, mas também sobre a definição corrente de criminalidade, que o homem da rua, ignorante das estatísticas criminais, compartilha.

 

 

Ou seja, o paradigma da reação social fornece respostas diferentes das antropológicas e sociológicas, pois afirma que o desvio e a criminalidade não são qualidades intrínsecas do homem como afirmava Lombroso (“criminoso nato”), há apenas uma distribuição seletiva de etiquetas para com as pessoas.

Portanto, nota-se que esse novo paradigma da reação social nega a tese defendida pelo paradigma etiológico, segundo a qual o desvio e a criminalidade são entidades que foram pré-constituídas de maneira ontológica, defendendo que o desvio e a criminalidade foram pré-constituídos de forma deontológica, ou seja, mediante etiquetas distribuídas de forma desigual a determinada camada da população (os excluídos). (ANDRADE, p. 201, 2003).

O sistema punitivo é dotado de notável seletividade, dando privilégios aos detentores de poder e deixando à mercê os excluídos, dessa forma, percebe-se que a criação da lei penal é condicionada aos interesses das camadas sociais que detêm o poder, e não em prol da coletividade, na medida em que o rotulo de criminoso é distribuído de forma desigual à população. (BARATA, 2002, p. 102)

E completa Brisolla (p. 18, 1974):

 

Os conglomerados sociais instituem regras, cuja violação coloca os grupos ou categorias de pessoas que assim agem etiquetados como fora da lei. Dentro dessa perspectiva, o desvio de conduta ou a criminalidade não constituem uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas, antes, uma conseqüência da aplicação, por outras pessoas, de regras e sanções quando ao contraventor.

 

Tal seletividade do Sistema Penal de acordo com o pensamento de Vera Andrade (P. 51, 2003) ocorre, essencialmente, em virtude de duas variáveis estruturais, quais sejam: Primeiramente, em função da limitada capacidade operacional das agências executivas que não tem capacidade de cumprir todo o programa de normas estabelecido pela criminalização primaria, por conseguinte, só resta proceder de maneira seletiva.

Assim sendo, percebe-se que em segundo plano, a questão da seletividade presente no seio do sistema penal, deve-se precipuamente à especificidade dos delitos e das conotações sociais dos autores, como já fora susomencionado anteriormente, levando-se em consideração que as criminalizações primária e secundária, bem como a noção de impunidade, são norteadas pela seleção desigual de pessoas consoante o seu status social previamente definido, e não pela incriminação igualitária de condutas objetiva e subjetivamente sopesadas em relação ao fato-crime, conforme aduz a dogmática penal.

Não apenas as normas penais se criam e se aplicam seletivamente, e o desigual tratamento de situações e de sujeitos iguais, no processo social de definição da “criminalidade”, responde a uma lógica das relações assimétricas de distribuição do poder e dos recursos na sociedade (estrutura vertical), mas o direito e o sistema penal exercem, também, uma função ativa de conservação e reprodução das relações sociais de desigualdade. São também uma parte integrante do mecanismo através do qual se opera a legitimação dessas relações, isto é, a produção do consenso real ou artificia. (ANDRADE, p. 55, 2003).

 

Por conta dessa notável seletividade, é consectário lógico que em sua maior parte o sistema penal é constituído por indivíduos das camadas sociais mais abastadas, em virtude destes terem maiores chances de serem etiquetados como delinqüentes e marginais, assim como de serem criminalizados, desmistificando de forma definitiva a tese defendida pela criminologia positivista segundo a qual os indivíduos já nascem com essa tendência para delinqüir.

 

2 A SELETIVIDADE COMO REGRA NAS ETAPAS DE CRIMINALIZAÇÃO PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA DO SISTEMA PENAL

 

O Sistema Penal é formado pelas penas, agências e leis, sendo um instrumento de controle social, que têm por finalidade a ordem social. Como bem observa Zaffaroni (p. 40, 2001) o sistema punitivo pode ser definido implicitamente como monopolizador da violência de forma ilegal, é seletivo, incapaz de punir as pessoas que não lhe são vulneráveis.

Isso acontece porque atua sobre os indivíduos de acordo com um padrão, formado pelos excluídos da sociedade, como por exemplo, os pobres, negros, mulheres, enfim, os tidos como os mais vulneráveis. Portanto, esse sistema produz e mantém a marginalização e exclusão social, deixando de agir como deveria, principalmente sobre as condutas disformes efetivamente praticadas, reprimindo-as.

Todas as sociedades hodiernas que formalizam ou institucionalizam o poder (Estado) acabam selecionando uma pequena parte da população para ser submetida à sua coação, com o objetivo de impor-lhes uma pena. Esta seleção penalizante é balizada como criminalização, sendo a culminância da gestão de um arcabouço de agências que compõe o sistema penal, sendo que o processo seletivo de criminalização se estabelece em duas etapas, quais sejam, a criminalização primária e a criminalização secundária (página 43).

Criminalização primaria “é o ato e o afeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas”. (ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, p. 43, 2006). Essa função da criminalização primária de criar as leis é desempenhada em geral pelas agências políticas que elegem os bens jurídicos mais importantes que merecem a tutela pelo Direito Penal.

Portanto, no processo de criminalização primária, a seleção dos bens que merecem a tutela jurídica, bem como as ações consideradas danosas, não se dá através de um processo natural, mas sim de acordo com critérios e valores deontológicos presentes na sociedade. Assim, nota-se que alguns de seus membros as escolhem para formarem o alicerce de todas as regras de comportamento a serem seguidas (RIBEIRO, p. 98, 2006).

Tal programa de leis, elaborado pelas agências políticas, devem ser cumpridos pelas agências de criminalização secundária, que são àquelas encarregadas de aplicar e de exercer o poder punitivo em casos concretos. Sendo assim, nota-se que tais agências de criminalização secundária funcionam como instrumento de controle social.

Sobre esse tema, Vera Andrade (p. 42-43, 2003) leciona que:

 

Como objetivo dessa abordagem, o sistema penal não se reduz ao complexo asiático das normas penais, mas é concebido como um processo articulado e dinâmico de criminalização ao qual concorrem todas as agências do controle social formal, desde o legislador (criminalização primária), passando pela polícia, o Ministério Público e a Justiça (criminalização secundária) até o sistema penitenciário e os mecanismos de controle informal (família, escola, igreja, mercado de trabalho, mídia).

 

Por conseguinte, cumpre observar que o programa de normas estabelecido pela criminalização primária é tão vasto que jamais se pretendeu cumpri-lo em toda a sua extensão, mesmo porque seria impossível. Destacando-se ainda que agências de criminalização secundária responsáveis pelo cumprimento adequado do referido programa de normas têm capacidade operacional bastante comprometida, o que as leva a proceder de maneira seletiva. Em virtude da limitada capacidade operacional das agências executivas, é consectário lógico que a criminalização secundária se torna exceção, enquanto que a impunidade vira a regra (ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, p. 43-44, 2006).

 

A seleção criminalizante secundária, conforme o estereótipo, condiciona todo o funcionamento das agências do sistema penal, de tal modo que o mesmo se torna inoperante para qualquer outra clientela, motivo pelo qual: a) é impotente perante os delitos do poder econômico (os chamados crimes de colarinho branco) b) também o é, de modo mais dramático, diante de conflitos muito graves e não-convencionais, como o uso de meios letais massivos contra a população indiscriminada, usualmente chamado terrorismo. C) torna-se desconcertado nos casos excepcionais em que há seleção de alguém que não se encaixa nesse quadro (as agências políticas e de comunicação pressionam, os advogados formulam questionamentos aos quais não sabe responder, destinam-se-lhes alojamentos diferenciados na prisão). (ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, p. 46-47, 2006).

 

 

Ressaltando-se que as agências de criminalização secundária não selecionam as pessoas criminalizadas e as vítimas potenciais protegidas somente segundo os seus próprios critérios, mas também condicionada pela influência de outras agências, à guisa de exemplo das de comunicação social e das agências políticas.

 

Apesar da criminalização primária implicar um primeiro passo seletivo, este permanece sempre em certo nível de abstração porque, na verdade, as agências políticas que elaboram as normas nunca sabem a quem caberá de fato, individualmente, a seleção que habilitam. Esta se efetua concretamente com a criminalização secundária. A limitada capacidade operativa das agências de criminalização secundária não tem outro recurso senão proceder sempre de modo seletivo. Desta maneira, elas estão incumbidas de decidir quem são as pessoas criminalizadas e, ao mesmo tempo, as vítimas potencias protegidas. A seleção não só opera sobre os criminalizados, mas também sobre os vitimizados. (ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, p. 44, 2006).

 

Os detentores do poder, através de sua ideologia enraizada em um sistema penal estabelecido a favor deles e não para eles, adquirem o papel de vítimas potenciais protegidas, sem se incluir como culpados direta ou indiretamente pelas mazelas sociais, tais como: a prostituição, corrupção, fome, pobreza e a marginalização.

De outro lado, a seletividade incide sobre aqueles que têm o estereótipo de maus, ou seja, a camada mais frágil da população a quem se pode associar, quais sejam, pobres, mulheres, negros, enquanto que os detentores do poder, como não condizem com esse estereótipo, ficam imunes a esse sistema, apesar de cometerem no mais das vezes crimes muito mais danosos às tessituras sociais.

E completa Cláudio Guimarães (p. 242, 2006):

 

O que se delineia no horizonte neoliberal é um alargamento da faixa de exclusão social que se reflete através das injustiças – econômica, social, política e jurídica -, gerando pessoas indefesas, pobres, marginais, que não podem mais contar com nenhum tipo de proteção do Estado, encontrando sua cidadania – quando encontram – apenas no banco dos réus de um processo penal.

 

Diante disso, constata-se que as agências de criminalização primária e secundária funcionam de forma estritamente seletiva, na qual a delinquência só se encontra presente nos segmentos subalternos da sociedade. Em virtude disso, algumas pessoas, de forma equivocada, afirmam que a educação deficiente, a pobreza, entre outras mazelas, são as causas dos delitos. Conquanto, na realidade, são estas, em conjunto com o próprio sistema penal, as principais determinantes que impulsionam os ilícitos dessas classes menos favorecidas, mas, sobretudo, de sua própria criminalização. De outra sorte, percebe-se a proliferação de uma imensa quantidade de ilícitos de outros segmentos sociais, que os cometem com a mesma intensidade e com uma maior lesividade, sem, contudo, sofrer nenhum tipo de sanção pelo sistema penal (ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, p. 48, 2006).

 

2.1 O PAPEL EXERCIDO PELA MÍDIA NA SOCIEDADE: UMA VISÃO ESTRITAMENTE MANIQUEÍSTA

 

Hodiernamente, a mídia detém um papel central e decisivo no que concerne à gênese de ideologias, visto que ela influencia diretamente às questões atinentes ao sistema penal, mormente a formação dos “estereótipos” das pessoas que são consideradas criminosas pela sociedade e na criação e proliferação da ideologia penal dominante, isto é, a idéia de que a única solução para se vencer a criminalidade é através de uma política estritamente repressiva e violenta, em que se faz necessário aumentar a capacidade estrutural do sistema carcerário e avultar a quantidade de policiais nas ruas, ocasionando a idéia de pseudo-segurança na sociedade.

Sendo assim, cumpre observar que essas conotações de criminalidade difundidas pela mídia orientam a ação dos órgãos oficiais, culminando em pensamentos e reações totalmente seletivas, tanto por parte da sociedade em geral, como também por parte dos órgãos oficiais (poder legislativo, poder judiciário e poder executivo), ocasionando a imunidade de algumas pessoas pelo sistema penal, principalmente das classes mais abastadas, como por exemplo, nos casos dos crimes de colarinho branco:

 

Estas conotações da criminalidade incidem não só sobre os estereótipos da criminalidade, os quais, como investigações recentes têm demonstrado, influenciam e orientam a ação dos órgãos oficiais, tornando-a, desse modo, socialmente “seletiva”, mas também sobre a definição corrente de criminalidade, que o homem da rua, ignorante das estatísticas criminais, compartilha. Realmente, esta definição de criminalidade, e as correspondentes reações não institucionais por ela condicionadas (a reação da opinião pública e o alarme social), estão ligadas ao caráter estigmatizante que a criminalidade leva, normalmente, consigo, que é escassíssimo no caso da criminalidade de colarinho branco. Isto é devido, seja á sua limitada perseguição e à relativamente escassa incidência social das sanções correspondentes, especialmente daquelas exclusivamente econômicas, seja ao prestígio social de que gozam os autores da infração. (BARATTA, p.103, 2002).

 

 

Nessa senda, pode-se inferir que as chances de determinados indivíduos serem definidos pela mídia como criminosos e periculosos à sociedade, ressalta a tese de que há efetivamente uma real incongruência entre a igualdade formal e a desigualdade material dos agentes de direito, uma vez que deve-se levar em consideração também as relações assimétricas de distribuição do poder e dos recursos da sociedade (ANDRADE, p. 283, 2003).

Outrossim, Galeano (p. 15/16, 1996) comunga a mesma opinião aduzida por Vera Andrade sobre o papel determinante que a mídia exerce na vida das pessoas. Senão vejamos:

 

A televisão oferece um serviço completo: não apenas ensina a confundir qualidade de vida com quantidade de coisas, como oferece cotidianos cursos audiovisuais de violência, que os videogames complementam. O crime é o espetáculo de maio êxito na telinha. “Bata antes que batam em você”, aconselham os professores eletrônicos de crianças e jovens. A ansiedade consumidora não é a única professora da escola do crime. Ela atua acompanhada pela injustiça social, uma professora muito eficaz em sociedades onde a opulência ofende escandalosamente a fome, e também a impunidade do poder das suas aulas, e ensina pregando o mau exemplo em sociedades onde os que mandam matar e roubam sem remorso ou nenhum castigo.

 

 

Sendo assim, é consectário lógico que a demarcação corrente da criminalidade é balizada precipuamente pela mídia, sendo que esta atribui o status de criminoso sempre as pessoas oriundas das classes menos favorecidas. Dessa forma, é notório que os estereótipos da criminalidade propugnados pela mídia orientam e influenciam diretamente nas ações dos órgãos oficiais de forma seletiva, através de um processo de filtragem que vai separar quem é considerado criminoso e quem não o é. Portanto, Baratta (p. 103, 2002) assegura que os autores dos crimes de colarinho branco não detêm status de criminoso, não sendo, por conseguinte, a “clientela” do sistema penal.

Nessa seara, Sarlet (p. 77, 2004) também aborda sobre a influência midiática no âmbito da construção de um direito penal cada vez mais seletivo, violento e desigual, que se caracteriza por ser um direito cada vez mais despótico e casuístico, que se preocupa tão-somente em adotar posturas que apenas na teoria assegurariam uma idéia de pseudo-segurança, sem levar em consideração em nenhum momento a questão da legitimidade constitucional dessas posturas adotadas.

De outro mote, essa questão da seletividade no âmbito do sistema penal não se faz presente somente aqui no Brasil, isso porque é cediço que em todos os países do mundo a legislação tende a ser mais benevolente com aqueles crimes que são praticados geralmente pelas classes mais abastadas e consequentemente mais severa com aqueles crimes praticados normalmente pelas classes inferiores, bem como também se mostra seletiva no momento da aplicação dessa lei, tendo como liame a influência midiática sobre a formação dessa ideologia.

Assim, faz-se a construção da ideologia penal dominante ou senso comum penal, sendo aquela concepção difundida pela mídia em que a sociedade afirma uma idéia maniqueísta, isto é, aquela idéia que só teremos uma sociedade harmônica quando o homem mau for tirado de circulação. O que circunda o sistema punitivo são sistemas de controles informais, como a família, escola e a mídia, que ajudam a construir essa ideologia que é seletiva.

Outrossim, pensa-se erroneamente que o sistema penal é um símbolo que vai trazer a segurança e harmonia para a sociedade, o que não passa de uma pura ilusão, tendo em vista que não se pode acabar com violência produzindo mais violência como faz o atual sistema punitivo.

Outra função da mídia é manipular o telespectador, reproduzindo e disseminando a insegurança. Desta maneira, o medo faz com que a população clame por um sistema penal mais punitivo e repressivo, “a mídia consegue o impensável, ou seja, que os próprios setores vulneráveis ao sistema penal sejam exatamente aqueles que mais apóiam as políticas publicas de repressão desenfreada” (GUIMARÃES, p. 274, 200).

E completa Nilo Batista (p. 273, 1990):

O compromisso da imprensa – cujos órgãos informativos se inscrevem, de regra, em grupos econômicos que exploram os bons negócios das telecomunicações – com o empreendimento neoliberal é a chave de compreensão dessa especial vinculação mídia-sistema penal, incondicionalmente legitimante. Tal legitimação implica a constante alavancagem de algumas crenças, e um silêncio sorridente sobre informações que as desmintam. O novo credo criminológico da mídia tem seu núcleo irradiador na própria idéia de pena: antes de mais nada, crêem na pena como ritmo sagrado de solução de conflitos.

 

Ante o exposto, contata-se que o sistema penal gera mais violência, proporcionando assim um aumento da criminalidade, engendrando cada vez mais delinqüentes pelo processo de marginalização social, reproduzindo nas cadeias, que como frisa Baratta (p. 183-184. 2005) “(...) os institutos de detenção produzem efeitos contrários à reeducação e reinserção do condenado, e favoráveis à sua estável inserção criminosa (...) A vida no cárcere é repressiva e uniformizante”.

Logo, percebe-se que é um mito falar que o sistema punitivo vai acabar com a insegurança, e também que ele protege a todos de forma igualitária, visto que, como já fora supramencionado, isso se dá precipuamente pela construção da ideologia penal dominante, que tem como principal aliada a influência da mídia para a formação dessa ideologia.

 

3 A (IN) EFICÁCIA DA PRETENSÃO PUNITIVA EM RELAÇÃO AOS CRIMES DE COLARINHO BRANCO

 

Os conflitos dos valores e dos interesses hegemônicos com os das parcelas dominadas da sociedade vão refletir diretamente no Direito. Diante dessa premissa, é perceptível que o sistema punitivo é dotado de notável seletividade, dando privilégios aos detentores de poder e deixando à mercê os excluídos.

Dessa forma, o sistema penal apenas enfatiza a distância entre pobres e ricos, o que já ocorre nos demais âmbitos sociais. Essa situação é lastimável, pois apenas os excluídos acabam sendo postos na prisão, sendo que crimes praticados pelos ricos, como por exemplo, crimes com o uso de violência, nas camadas mais elevadas, normalmente ficam acobertados pela mídia, bem como os crimes de colarinho branco, que causam inestimáveis prejuízos, sendo bem mais prejudiciais à sociedade, porém os autores desses crimes muitas vezes não sofrem qualquer tipo de sanção ou repressão.

Esses crimes ficam impunes, porque como afirma Vera Andrade (p. 45-56, 2003), existe uma divisão maniqueísta entre bem e mal, e só podem ser punidos aqueles que têm o estereótipo de maus, como os negros, pobres, enfim, os excluídos da sociedade, enquanto que os detentores do poder, como não condizem com esse estereótipo, ficam imunes a esse sistema, apesar de cometerem crimes muito danosos. Pode-se falar até em prática indireta de outros crimes, à guisa de exemplo o homicídio, pois o governo deixa de investir em outras áreas extremamente necessárias para a manutenção da vida, como a saúde pública.

Faz parte da realidade brasileira a impunidade dos possuidores do poder, seja ele econômico, político ou social, sendo que são inúmeros os crimes praticados por estes que ficam ilesos, pois essa parcela da sociedade monopolizadora do poder, engendra uma realidade favorável a ela, porém destoante das situações concretas, e a divulga até que seja aceita e internalizada pelos membros da sociedade.

Nesse diapasão, Michel Foucault (p. 12, 2003) entende que o poder produz domínio de objetos e rituais de verdade, eficácia, produtiva e riqueza estratégica. Entretanto, para que esse poder seja legitimado e internalizado por aqueles sobre os quais é exercido, deve circular continuamente, de forma ininterrupta, adaptada e individualizada no corpo social. Em virtude disso, o discurso faz-se essencial, uma vez que a ele cabe a busca da legitimação do sistema penal e a fundamentação de seu operar.

Adiante, observa-se que o discurso do sistema punitivo que visa à ordem social justa é apenas uma falácia, tendo em vista que os órgãos de que depende tem pouca ou nenhuma capacidade operacional, estando presente apenas para legitimar tal sistema. E também, esse discurso é usado para dominar, domesticar e aumentar a produtividade e baixar a resistência, fazendo com que os privilegiados usufruam de seus poderes com segurança.

A função declarada do Sistema Penal é combater a criminalidade, conquanto, diante dos pressupostos aludidos anteriormente, percebe-se que a função real desse sistema é manter a sociedade de classes, justamente por esse motivo que os que possuem poder, no mais das vezes, não são postos na prisão. Logo, observa-se que tal sistema cumpre sua função real de forma bastante eficaz.

Destarte, surgem as diversas indagações sobre os tipos penais que são cometidos pelas classes sociais mais abastadas (não criminalizadas) da nossa tessitura social, em outras palavras, as pessoas que detêm status de imunes ao sistema penal, caracterizando os chamados crimes do colarinho branco. (STRECK, p. 35, 2004). Sendo que são muito mais lesivos à sociedade e no mais das vezes não há sequer uma punição para esses crimes, visto que a legislação é deveras seletiva e benevolente nos moldes dos crimes contra a ordem econômica, isso porque é cediço que estes crimes são praticados quase sempre por pessoas que não são vulneráveis ao sistema penal, acarretando a impunidade por parte dos autores dessas infrações penais.

Assim, percebe-se que há uma dissonância no nosso sistema punitivo, a começar pelo próprio ordenamento jurídico, que traz em seu bojo leis extremamente rígidas para aquelas condutas praticadas pelas classes sociais mais vulneráveis, enquanto que prevê leis extremamente benévolas aos crimes cometidos pelos que detêm o poder em nosso país.

Diante disso, ressalta-se a ineficácia punitiva em relação aos crimes cometidos pelas classes mais abastadas, principalmente no que diz respeito aos crimes de colarinho branco, que são extremamente lesivos à nossa sociedade, sendo que não há leis que asseguram uma punição severa para estes crimes e muito menos órgãos oficiais que apliquem efetivamente essas leis, a exemplo das agências policias e do próprio poder judiciário, que não tratam essas pessoas como criminosas, mas tão-somente quem detém o rótulo de criminosos na sociedade.

Nesse sentido, Baratta (p. 86, 2005) reitera esse posicionamento de que as pessoas que não possuem as etiquetas de criminosas, em função principalmente das suas condições econômicas, ganham um tratamento diferenciado no que concerne às atividades da polícia, do poder judiciário e também do Ministério Público, como nos esclarece adiante:

 

Esta direção de pesquisa parte da consideração de que não se pode compreender a criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal, que a define e reage contra ela, começando pelas normas abstratas até a ação das instâncias oficiais (polícia, juízes, promotores de justiça, instituições penitenciárias que as aplicam), e que, por isso, o status social de delinquente pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias sociais de controle social da delinquência, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias. Portanto, este não é considerado e tratado pela sociedade como “delinquente.” Dessa forma, sob esse ponto de vista, tem-se estudado o efeito estigmatizante da atividade da polícia, dos órgãos de acusação pública e dos juízes.

 

Assim, Vera Andrade (p. 50, 2003) preconiza que o índice de criminalidade na realidade é muito maior do que a oficialmente registrada, tendo em vista que a criminalidade não é exclusiva das classes menos favorecidas, mas sim se manifesta efetivamente como um comportamento da maioria da população, sendo uma falácia a concepção difundida de que somente há que se falar em uma minoria perigosa da sociedade. Dessa maneira, a criminalização é, com regularidade, deveras desigual e distribuída de uma forma estritamente seletiva.

 

3.1 A INEFICÁCIA DA PREVENÇÃO GERAL: A NECESSIDADE DE SE INVERTER A FUNÇÃO REAL E DA APLICAÇÃO DE OUTRAS PENAS

 

Como já fora alhures discutido acima, pode-se afirmar que a nossa legislação penal não é efetivamente posta em prática, tendo em vista que algumas pessoas ficam imunes a esse processo de criminalização, normalmente aquelas pessoas que pertencem aos estratos sociais elevados. Isso porque é patente que o sistema penal é deveras seletivo, filtrando as pessoas que devem ser postas no sistema penal e aquelas pessoas que vestem o manto da imunidade perante esse sistema.

Nesse sentido, a Comissão Parlamentar de Inquérito, tendo a finalidade de investigar a realidade do atual Sistema Carcerário Brasileiro, aponta que:

 

Observa-se a total ausência nas cadeias e presídios brasileiros de gente que detêm posses, embora sejam frequentes as denúncias publicadas pela mídia, relatando o envolvimento das pessoas das classes médias e altas em crimes de homicídio, corrupção, fraude, acidentes de trânsito e outros classificados como delitos de “colarinho branco.” São rotineiras e em elevado número as prisões de envolvidos com estes tipos de crimes, mas a permanência dos mesmos atrás das grades é uma raridade (BRASIL, p. 47, 2009).

 

Nessa contenda, deduz-se que a prevenção geral do sistema penal, ou seja, o caráter intimidatório que o sistema penal e suas leis trazem consigo, em verdade, torna-se verdadeiramente ineficaz, visto que percebe-se claramente que grande parte da sociedade não se intimida com isso, à guisa de exemplo, ressalta-se os autores (geralmente os ricos) que cometem os crimes de colarinho branco, que muitas vezes o cometem por conta da quase certeza da impunidade. Como bem enfatiza Vera Andrade (p. 51, 2003):

 

A seletividade do sistema penal se deve à especificidade da infração e das conotações sociais dos autores, pois impunidade e criminalização são orientados pela seleção desigual de pessoas de acordo com seu status social, e não pela incriminação igualitária de condutas objetivas e subjetivamente consideradas em relação ao fato-crime, conforme preconiza a teoria da dogmática penal.

 

Outrossim, Vera Andrade (p. 173, 2003) assevera que é impossível se avaliar de uma forma deontológica o impacto intimidatório da pena de uma forma estritamente abstrata, contudo, se alguma avaliação for feita a despeito disso, indubitavelmente chega-se a conclusão de que a prevenção geral não possui a eficácia declarada pelo sistema penal, como é cediço nos imensuráveis dados empíricos do crescente aumento dos índices criminais após agravamento qualitativo e quantitativo e os inúmeros casos de reincidência. Por isso, reitera que é uma falácia pensar que a intimidação pela severidade das penas pode, por si só, diminuir a intensidade dos crimes.

Em assim sendo, Cláudio Guimarães (p.47, 2007) comunga o mesmo pensamento de Vera Andrade, no sentido de que a teoria da prevenção geral do sistema penal (intimidação) é verdadeiramente um pensamento utópico e deveras equivocado, que vê o homem como um ser racional e o Estado como o ente que pune, vez que, primeiramente, alicerça-se na cominação de uma pena, utilizando-se, para tanto, somente de uma ameaça, através das leis penais, de modo que se intimide as pessoas a não cometerem crimes. Todavia, percebe-se que essa prevenção geral é uma falácia, tendo em vista que as pessoas que não possuem o estereótipo de criminosas cometem crimes sem se preocupar com essa possibilidade de serem punidas, na certeza da impunidade.

Vê-se, pois, que a prevenção geral negativa, assim cognominada em função de seu objetivo intimidatório, através de consecução de penas, para eventuais delitos futuros, não depende da existência de crimes já cometidos. Nessa seara, a intimidação que se consuma com a pena aplicada, para aquele que cometera um ilícito penal, na teoria serve para coagir outros a evitarem a criminalidade no contexto social. Entretanto, na prática essa função de intimidação não ocorre efetivamente. (CAMARGO, p.49, 2002).

Neste aspecto, defende-se que deve haver sim uma política criminal adequada, mas que ela se volte não para as pessoas que cometem crimes que não lesionam efetivamente os bens jurídicos protegidos pelo nosso ordenamento jurídico, mas sim que essa política tenha como foco as classes sociais mais abastadas, que geralmente cometem crimes muito mais danosos à sociedade, principalmente através dos crimes de colarinho branco.

Assim sendo, diante do atual paroxismo vivido pelo sistema penal, é que se pode falar que é necessário inverter as funções exercidas atualmente pelo sistema penal, em outras palavras, aplicar as penas restritivas de liberdade não para aqueles crimes que na prática não causam efetivamente nenhum dano à sociedade, mas sim tão-somente para os crimes danosos, especialmente os crimes contra a ordem econômica, aí incluídos nesse rol os crimes de colarinho branco, que acarretam imensuráveis prejuízos à sociedade.

Por conseguinte, a Comissão Parlamentar de Inquérito, confirmou através de um estudo realizado nos presídios do nosso país, o que já é notório e conhecido por todos: a seletividade presente no sistema penal. Senão vejamos:

 

Em um estudo realizado pela Comissão Parlamentar de Inquérito, encontrou-se inúmeros presos apodrecidos em estabelecimentos desumanos e violentos por crimes simples como furto de latas de leite, de peças de roupas, dívida ou por ameaça. Também, constatou-se que há milhares de presos provisórios que aguardam há anos e sem qualquer perspectiva de julgamento. Assim, esses fatos evidenciam que o país continua injusto: “para os pobres os rigores da lei, para os ricos os favores dos reis”, ou ainda que “a deusa da justiça tem um olho aberto para os humildes e outro fechado para os poderosos”, havendo necessidade premente de construção de instituições ágeis, isentas e de um sistema jurídico igual para todos. (BRASIL, p. 49, 2009).

 

Dessarte, o correto seria a não aplicação das penas restritivas de liberdade para as pessoas que praticam crimes que não causam nenhum prejuízo real para com os bens jurídicos protegidos, aplicando-lhes penas alternativas e penas restritivas de direito. E para aqueles que cometem crimes verdadeiramente lesivos à sociedade, aplicar-se-ia as penas restritivas de liberdade, respeitando-se, dessa maneira, o princípio da lesividade previsto no diploma legal, como bem esclarece Eugenio Raúl Zaffaroni (p. 240, 1991): “a irracionalidade da ação repressiva do sistema penal não pode chegar ao ponto de pretender imputar uma pena sem a pressuposição de um conflito no qual resulte afetado um bem jurídico tutelado.”

Nessa senda, reitera-se que os crimes contra a ordem econômica, especificamente os de colarinho branco, esses sim merecem ser punidos com as penas restritivas de liberdade, haja vista que afetam direta ou indiretamente milhões de pessoas, como por exemplo, nos crimes de lavagem de dinheiro, que trazem consigo um prejuízo catastrófico para os cofres públicos, a culminância disso é que milhões de pessoas são atingidas indiretamente, pois os recursos públicos são desviados, tendo como consequência o não investimento desses recursos para a população.

A despeito desse tema, Leciona Camargo (p. 31, 2002):

 

O controle social não se utiliza do poder sancionário ou repressivo, no Estado Democrático de Direito, como único meio eficaz para a manutenção da ordem social. Outros meios são prioritários para este controle social, e, em razão do princípio da subsidiariedade, que decorre do princípio da ultima racio, a interferência do direito penal se verifica somente nos casos de danos relevantes aos bens jurídicos protegidos. Quando a contrariedade à ordem jurídica não for relevante, deve ser objeto de outros ramos do direito. Conexo a este princípio, está o caráter fragmentário do direito penal, entendendo-se que não há a atribuição do direito penal em proteger, indiscriminadamente, todos os bens jurídicos, nem apenar todas as ações que os lesionem, mas somente aquelas que forem danosas e/ou relevantes.

 

Ademais, levando-se em consideração a aplicação do princípio da proporcionalidade, infere-se que tem de haver uma proporção entre o dano causado pela prática da conduta e a pena aplicada, sendo que no sistema de punição, a severidade da sanção reflete o grau de reprovabilidade e de culpabilidade da conduta, havendo, portanto, uma justa aplicação das sanções penais (PALLAMOLLA, p. 157, 2009).

Não obstante, em verdade, na prática isso não ocorre de forma fidedigna, tendo em vista que não há uma proporção justa entre o dano causado pelo autor e a respectiva pena que lhe será imputada, isso porque o código penal elenca os crimes e suas respectivas penas, não havendo, por conseguinte, nenhuma diferença prática entre, por exemplo, uma pessoa furtar uma lata de leite em um supermercado e outra pessoa furtar 500 mil reais de um banco à guisa de exemplo, sendo que nesses dois casos aludidos, as pessoas praticaram o mesmo crime, qual seja, crime de furto, portanto, responderão pelas mesmas penas, não havendo correlação com o dano ocasionado através de suas infrações.

Nesse diapasão, reitera-se que as penas privativas de liberdade deveriam ser aplicadas somente em crimes que causassem danos reais à sociedade, não havendo necessidade de se aplicar essas penas a crimes que não o fossem tão danosos nesse sentido, visto que além de todos esses motivos que já foram expostos, há que se falar também no tanto que o Estado gasta para manter presos nas cadeias, como bem enfatiza Valdir Sznick (p. 51, 1999):

 

Como não só a falência da pena de prisão, superlotada e com quase uma centena de milhares de mandados de prisão, há o custo das construções penitenciárias, dos funcionários e outros. Não se compreende retirar por pouco tempo da sociedade, aplicando-se pena privativa de liberdade; penas substitutivas às penas de prisão começaram a surgir. Preocupam-se os penalistas com alternativas às chamadas penas detentivas. Essas penas, alternativas da prisão, concorrem, de um lado, para a diminuição da população carcerária

 

Portanto, para o resto da população que comete outros crimes que não são tão lesivos como os crimes de colarinho branco, a real propensão seria a não aplicação das penas restritivas de liberdade, pelos motivos susomencionados, mas sim penas alternativas, penas restritivas de direito, multa, prestações de serviços à comunidade, entre outras penas.

 

CONCLUSÃO

Diante do exposto, pode-se inferir que a seletividade do sistema penal é um fenômeno perceptível, já que este reproduz o que já ocorre nos demais âmbitos sociais, em outras palavras, a latente distância entre pobres e ricos. E por mais que os ricos cometam crimes, previstos no Código Penal, sendo muito mais danosos a ordem pública, ficam quase sempre protegidos pelo sistema penal, enquanto aqueles que cometem crimes pequenos, como furtar alimentos por necessidade, são presos e duramente reprimidos pelo sistema. E isso só faz aumentar a criminalidade, pois corre o risco de serem corrompidos pela própria prisão.

Sendo assim, ressalta-se que a seletividade incide somente sobre aqueles que têm o “estereótipo” de maus, em outras palavras, a camada mais vulnerável da população a quem se pode associar. De outro lado, têm-se os detentores do poder, que não fazem parte desse rol, pois, como não condizem com esse estereótipo, ficam imunes a esse sistema, apesar de cometerem no mais das vezes crimes muito mais danosos às tessituras sociais.

Nesse diapasão, reitera-se que a demarcação corrente da criminalidade é balizada principalmente pela influência midiática, sendo que esta atribui o status de criminoso sempre as pessoas advindas dos estratos sociais mais vulneráveis. Portanto, é notório que os estereótipos da criminalidade propugnados pela mídia orientam e influenciam diretamente nas ações dos órgãos oficiais de forma seletiva, através de um processo de filtragem que vai separar quem é considerado criminoso e quem não o é.

Com isso, o presente estudo propugna pela aplicação das penas privativas de liberdade tão-somente em crimes que causem danos reais à sociedade, não havendo necessidade de se aplicar essas penas a crimes que não o fossem tão lesivos nesse sentido, visto que, além de todos esses motivos que já foram debatidos ao longo desse trabalho, há que se reiterar o quão dispendioso é pro Estado manter esses sistemas carcerários em todo o país.

Em epítome, os crimes cometidos pelas pessoas provenientes dos estratos sociais mais abastados, geralmente os que praticam os crimes de colarinho branco, merecem ser punidos com as penas privativas de liberdade. Já para o resto da população que comete outros crimes que não são tão lesivos como os crimes de colarinho branco, dever-se-ia aplicar outros tipos de sanções, como as penas alternativas, penas restritivas de direito, multa, prestações de serviços à comunidade, entre outras penas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

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PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à pratica.1ª ed, São Paulo: IBCCRIM, 2009.

 

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WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

Currículo do articulista:

Aluna do 8° período do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco(UNDB).

 

 

Disponível em: http://www.viajus.com.br/viajus.php?pagina=artigos&id=3753