Revolução cibernética na comunicação e ilusão democrática


Porcarlos2017- Postado em 20 novembro 2017

Autores: 
Delfim Soares

Resumo: Análise da fragilidade democrática das redes de comunicação. As revoluções da comunicação situam-se no aparato tecnológico e não na estrutura social. As redes cibernéticas aumentam a ilusão de participação democrática, mas o aperfeiçoamento tecnológico aprofunda o totalitarismo do sistema, instaurando o globalitarismo. A diversidade dos meios disfarça os fins da homogeneização universal, do mesmo modo que aparências democráticas fortalecem o globalitarismo sistêmico.

 

Abstract: ( Communication cybernetic revolution and democratic illusion) Analysis of democratic fragility on communication nets. The communication revolutions have place in the technological array, not in the social structure . Cybernetic nets increase the democratic participation illusion, but the technological improvement expands the totalitarianism of system and establishes the globalitarism. The media diversity disguises the universal homogenization aim, as the democratic appearances consolidate the systemic globalitarism.

Palavras chave: Cibernética. Comunicação. Democracia.

 

 

As transformações que têm ocorrido com a informatização dos meios de comunicação podem, certamente, ser consideradas uma verdadeira revolução. Tal caracterização se deve muito mais às inovações do aparato tecnológico do que às possíveis mudanças sociais que a perspectiva revolucionária poderia pressupor. As utopias mais marcantes na história das sociedades costumam estar ligadas a devaneios revolucionários. Aliás, todas as revoluções têm sistematicamente motivações mais ou menos democráticas e acabam se materializando como disfarces de novas formas de perpetuação da dominação das maiorias por minorias privilegiadas.

Pretendemos confrontar, de forma sucinta, o devaneio democrático com o imperialismo econômico, o desenvolvimento dos meios de comunicação com as barreiras da informação, a evolução do passado com a perspectiva do futuro. Vamos comparar a crescente tecnicização na expansão da comunicação a serviço do imperialismo, bem como a crescente massificação dos meios como ilusão de participação democrática.

Vamos situar as grandes transformações técnicas que ocorreram, bem como as que estão acontecendo, nos processos, nos sistemas e nos meios de comunicação com o pressuposto conceitual de uma revolução que implica em profundas mudanças sociais, alterando a estrutura da organização social. Há uma crônica ingenuidade sociológica na avaliação de tais transformações, pois não passam, geralmente de embalagens novas para uma estrutura velha ou, quando muito, trocas de grupos no domínio da estrutura que se perpetua.

A aceleração que a cibernética tem provocado nas comunicações estimula mais ainda a formulação de uma perspectiva revolucionária. No entanto, se nos despirmos da ingenuidade, limitaremos tal perspectiva ao aparato tecnológico e, muito remotamente, a estenderemos ao campo sociopolítico.

 

Revoluções ilusórias do passado

 

Há alguns milhares de anos, o homem criou a linguagem escrita. Foi uma verdadeira revolução na evolução da comunicação. No entanto, é muito difícil saber até hoje se esse novo instrumental foi mais útil para difundir o saber ou para perpetuar a marginalização da maioria. Da mesma forma, a história ainda não definiu claramente onde se situa o poder da comunicação: se tal poder está no monopólio da informação pelos grupos dominantes ou se está na ignorância generalizada entre as maiorias dominadas. Embora se tratasse de um potencial universalizante do saber, como foi usado a serviço de alguns monopólios eruditos, acabou se transformando, muitas vezes, em instrumento de dominação, na sustentação de uma estrutura antidemocrática.

A segunda grande revolução da comunicação foi o surgimento da imprensa. A produção em série do processo industrial materializava a possibilidade de multiplicação quase instantânea do saber, concretizando a escrita como meio potencial de comunicação de massa. Mera ilusão! Os séculos que nos separam de Gutemberg não foram suficientes para acabar com o analfabetismo que domina grande parte da humanidade, no portal do século XXI. O fato é que as sociedades pré-letradas ocupam o terceiro mundo. Nelas se evidencia, de forma inequívoca, a dominação pela ignorância e a mais profunda degradação gerada pelo imperialismo.

A massificação dos meios, conseqüência natural da revolução industrial, materializada nos grandes jornais do hemisfério norte atinge o estágio de uma revolução global com o cinema, a rádio e a televisão.

Parecia, a princípio, uma grande dificuldade massificar populações analfabetas. Mas logo o sistema soube tirar proveito da situação. Populações que não passaram pela galáxia de Gutemberg, vivendo no século XX, sem raízes culturais sólidas apoiadas na erudição da escrita, teriam certamente mais dificuldade para assimilar novas informações e isso atrapalharia o condicionamento inovador de orientação consumista. Por outro lado, a fragilidade intelectual de tais populações facilita demais sua manipulação pelas novas linguagens do cinema, Rádio ou Tv. O que inicialmente era um obstáculo à massificação pela imprensa se torna um fator favorável à massificação pelos meios eletrônicos. O sistema sempre encontra um meio de tirar proveito de situações aparentemente adversas.

revolução da massificação, muito mais do que as anteriores, produz a confusão entre vulgarização e democratização, elitização e demagogia, consumismo e liberdade, manipulação e alienação. A ilusão da informação é uma constante da comunicação massificada. O transitório, o descartável e o supérfluo são a essência da nova cultura. Da escravidão do trabalho se passa à obsessão do consumo. O sistema capitalista encontrou nos meios de massa um instrumento altamente eficaz de ilusionismo social onde a mais profunda ditadura econômica se mascara de participação popular. Amplos processos de lavagem cerebral substituem os grilhões da antiguidade. As elites precisam cada vez menos de exércitos ou mercenários. Os meios são os novos mercenários, a multidão continua sendo constituída por escravos, mas as cadeias e os grilhões são ideológicos, psicossociais. As nossas democracias fictícias são ricas em rituais alucinógenos: campanhas publicitárias, campanhas eleitorais, diversões alienantes, manipulações informativas. Ideologia do conformismo e axiologia consumista moldam o admirável mundo novo da massificação. A burguesia continua fazendo sua festa e o grande rebanho obedece. A massificação é uma forma mal disfarçada de marginalização social. Os mercenários meios de comunicação são os principais agentes desta fantástica revolução democrática!...

É natural esta função manipuladora dos meios de massa. Pela sua origem: pertencem à elite ou são por ela patrocinados. Pela sua condição institucional: a interdependência das instituições, seu necessário fortalecimento mútuo e sua natureza instrumental a serviço da estrutura de classes. Por sua natureza amoral: como empreendimentos econômicos, os meios de comunicação são necessariamente amorais. Aliás, como a moral social não passa de artifício ideológico, voltado para a sustentação do sistema, talvez seja institucionalmente mais adequado classificar a alienação, a marginalização e a degradação da maioria como processos morais inquestionáveis. Seria uma adequação institucionalmente correta da moral dos senhores de Nietzsche aos interesses do sistema...

E ainda tem gente que estranha o fato de os meios de massa se colocarem tão freqüentemente a serviço dos grupos dominantes nos mais variados processos de manipulação social... Comunicação é essencialmente propaganda ou, numa perspectiva do poder, lavagem cerebral. Daí decorre como tragicômico o devaneio de muitos jornalistas e publicitários (existirá alguma diferença essencial entre os dois?!... ) se atribuírem imparcialidade, neutralidade ou independência. Parecem os militares golpistas, frequentes em republiquetas de bananas, fazendo ditadura para salvar a democracia!...

 

Revolução cibernética

 

O retrospecto da evolução dos meios de comunicação social não deixa muitas dúvidas sobre sua natureza conservadora. Tem havido uma crescente institucionalização da comunicação, acompanhada de transferência de funções outrora atribuídas a outras instituições sociais. Por outro lado o paradoxo estrutural do sistema capitalista da combinação entre estagnação e mudança tem-se manifestado também na evolução dos meios de comunicação. Efetivamente o sistema tem estimulado profundas transformações nos meios. Pode –se mesmo falar de uma efervescente revolução tecnológica, permeada cada vez mais pela cibernética. Esta revolução está provocando algumas mutações tanto no campo da organização, quanto no plano do comportamento social. Convém, no entanto, delimitar horizontes e fronteiras de tais mudanças. Como a indisfarçável institucionalização crescente da comunicação não tem outro objetivo senão a estagnação da estrutura social, não resta outra alternativa para esta revolução tecnológica a não ser limitá-la às transformações do aparato tecnológico. Trata-se, portanto, de uma revolução dos meios e não dos fins. Esta distinção entre a tecnologia e a estrutura social deve estar sempre clara. Tal clareza torna duvidosa a aplicação do conceito de revolução ao conjunto de transformações que a revolução cibernética está provocando, da mesma forma que aconteceu com as grandes transformações do passado.

Grandes objetivos da organização social almejados no passado têm sido viabilizados pela cibernética. A informatização de sistemas de administração e de comunicação finalmente tornou possível o surgimento de um sistema econômico e de sistemas sociais subalternos. Isto era um sonho pré-cibernético. A necessidade de um sistema nervoso para o tecido social que ultrapassasse o controle ideológico, de forma mais palpável foi suprida pelo aparato dos meios eletrônicos de comunicação de massa, atingindo seu ápice com as redes informatizadas de comunicação internacional. Neste ponto, mais uma vez se evidencia a orientação das transformações tecnológicas no sentido da convergência conservadora da estrutura social. O velho e discutível conceito da aldeia global, imagem da humanidade comprimida, interligada, informada e manietada, exprime um velho ideal de todos os modelos imperialistas. É a colonização, disfarçada de cosmopolitismo. É a dominação disfarçada de globalização. Trata-se de desnudar a hipocrisia do velho sistema.

A lavagem cerebral universalizada foi aperfeiçoada pelo fascínio tecnológico. A internacionalização cibernética expandiu a sensação igualitária cosmopolita. A instantaneidade colonizadora aprofundou a ilusão da comunhão e da identidade entre colônias e metrópoles. Em decorrência desses fatores, os velhos disfarces do nacionalismo e da soberania tornaram-se obsoletos.

A universalidade da classe dominante, a natureza transnacional da economia e a interdependência política multinacional sempre atestaram a natureza folclórica delirante das nacionalidades. A revolução consumista internacionalizada, com decisiva participação dos meios de massa, completa-se na revolução cibernética das redes internacionais. As máscaras do sistema estão caindo. À medida que a globalização cresce, o globalitarismo se fortalece. O sistema forte tolera cada vez mais aberturas nas redes informatizadas. Não é propriamente democracia na comunicação. Os sistemas fracos não toleram dissidências e as reprimem. Quando um sistema permite as discordâncias é porque está fortalecido e a dissidência não representa risco.

Talvez seja interessante observar como são freqüentes as atitudes conservadoras dos meios de comunicação de massa. Empresariados, institucionais, estruturalmente subservientes, desempenham suas funções naturais no sistema. Uma vez ou outra parecem preocupados com valores éticos e chegam até a denunciar uma ou outra imoralidade perpetrada dentro do sistema.

Mas não devem ser mantidas ilusões sobre a verdadeira natureza amoral das instituições, enquanto instrumentais estruturais do sistema de poder. Não é à toa que, sempre que se denuncia ou desmascara uma imoralidade, se tem o cuidado de caracterizá-la como exceção, salvando assim a sacralidade institucional. Somente uma grande carga de ingenuidade pode alimentar a ilusão da existência de empresas de comunicação que não sejam amorais, como, de resto o é toda a estrutura do poder.

Paradoxalmente todo o poder é amoral mas se fortalece na difusão de valores morais: a ordem moral dos dominados sustenta e aprofunda a dominação exercida pela elite amoral. Este paradoxo é universalizado pelo dogma da globalização.

Os meios de massa são mais ou menos orquestrados, com grandes índices de manipulação, superficiais e banalizantes e, normalmente, oligopolizados. Constituem uma expressão mais ou menos clara do imperialismo cultural, testa de ferro da dominação estrutural. Sua massificação vulgarizada generaliza a ilusão de uma certa democracia. Mas, executam de forma bastante eficaz o velho ideal do sistema imperialista, conformando o atual dogma da globalização. Esta é uma nova forma de imperativo categórico da dominação: se auto-justifica de forma ostensiva, apoiado na ética implícita da igualdade social. O ópio do povo da explicação marxista trocou a roupagem da alienação...

Existe uma diferença significativa entre os meios de massa e a grande Rede (Internet e outras similares). Os primeiros evidenciam a passividade do público e o controle elitista dos meios. Há uma tendência centralizadora de orientação institucional, numa representação cultural bem integrada no cosmopolitismo capitalista. As redes de Tv por assinatura simulam um espectro mais amplo de escolha por parte do público. Tal fato poderia ser visto como um avanço democrático dos meios de massa. A ilusão gerada por esta visão ingênua desmorona quando se constata que esse novo modelo reproduz na comunicação uma das características permanentes do sistema capitalista. Diversifica os meios e centraliza os fins em mais uma forma de aprofundamento das desigualdades sustentadas pelo liberalismo.

Como o conceito de democracia implica num princípio ético de igualdade, o liberalismo redunda sempre num modelo estruturalmente totalitário, por mais variados e sofisticados que sejam seus disfarces. Efetivamente, uma ideologia centralizada na defesa dos privilégios da classe dominante, como acontece com o liberalismo, implica numa exigência estrutural totalitária, não importando quantos artifícios de fachada democrática possa explorar.

A grande rede tem uma aparência mais democrática. Extremamente dispersa, permite dissidências, intromissões e contestações. Tal dispersão instrumental costuma gerar outro tipo de ilusão social: uma sensação libertaria, próxima da anarquia. Pode observar-se a concretização de mais um paradoxo: dispersão máxima e convergência universal convivem na mesma Rede. Mais uma vez convém lembrar que o sistema objetiva a homogeneidade universal, por mais diferenciados que sejam os meios.

Pode-se buscar informação também em fontes não institucionais bem como trocar experiências com pessoas ou grupos de todas as tendências, em qualquer canto do planeta. Mais que os meios de massa, a grande rede cria uma sensação mais realista da existência da aldeia global. Sendo o grau de escolha e de participação bem maiores do que nos meios de massa, a sensação democrática costuma ser mais acentuada entre os internautas do que no grande público massificado. Poder-se-ia classificar a rede cibernética de comunicação como instrumento ou ambiente democrático?

 

Democracia na Rede

 

Com um simples clique ativamos navegadores de rede. Software e hardware cada vez mais sofisticados, materializando crescentes índices de aceleração na inovação tecnológica, encurtando espaços entre criação e obsolescência, representam uma nova forma da essência consumista do sagrado descartável. Processadores e placas cada vez mais potentes nos transportam em viagens virtuais quase instantâneas por todos os cantos do mundo, intermediados por redes de telecomunicações cada vez mais eficientes.

Cada microcomputador se transforma numa porta do globo. Talvez seja mais exato afirmar que o monitor do micro é uma janela por onde se vê o mundo todo ou, então, a telinha reduz o globo à palma de nossas mãos. Por ela alcançamos bibliotecas e laboratórios. Entramos em universidades e museus. Vasculhamos editoras e institutos de pesquisa. Por ela lemos jornais e revistas. Assistimos programas de rádio e televisão. Por ela contatamos órgãos governamentais e grupos de contestação. Contatamos pessoas de todos os tipos e de todos os cantos da terra. Por ela todos somos acessíveis ao mundo. Nela tudo se compra e tudo se vende.

A grande rede está-se transformando no verdadeiro sistema nervoso da nova sociedade, conjugando o máximo de diversidade com a universalização plena. Como não poderia deixar de ser, o crescimento da diversidade periférica fortalece o aumento da padronização central: isto se deve à instrumentalização sistêmica da comunicação e da organização social. Este aparente paradoxo está na medula do sistema capitalista.

Não se pode conceber ou analisar os sistemas de comunicação, tanto nos mass media quanto na Internet, sem o paradigma do sistema capitalista. A comunicação cibernética se constitui no sistema nervoso do modelo capitalista e, ao mesmo tempo, na sua principal extensão. Torna-se necessário, portanto, conhecer as entranhas econômicas, ideológicas e políticas do capitalismo, da dominação de classe e da objetivação consumista para deixar de alimentar delírios democráticos em relação à comunicação cibernética.

Como os meios de massa, a grande rede também é um instrumental essencialmente consumista; a amplitude do leque de opções dá ao consumidor a ilusão de liberdade, gerando o devaneio democrático, enquanto, por outro lado, o fortalecimento capitalista aprofunda o globalitarismo. Inexorável e imperativo, o totalitarismo sistêmico do capitalismo se expande e fortifica, sofisticando sua roupagem liberal.

A globalização dogmática, inquestionável e imperialista, inibe a percepção das desigualdades sociais perpetuada na estrutura social. O clímax universal do ilusionismo social, instrumentalizando meios de massa e redes cibernéticas, se alcança quando todos se sentem cidadãos do mundo num espasmo alucinado de igualdade total. A globalização, como dogma central desta versão alienante, constitui-se no processo mais eficaz e mais abrangente de neocolonialismo. As desigualdades se aprofundam, encobertas e amortecidas pela voracidade consumista e pelo delírio igualitário universal.

O globalitarismo adora o capital, deifica a concorrência, propaga o liberalismo, dogmatiza a globalização. O novo culto se realiza nos centros consumistas; sua ideologia se difunde nos meios de massa e nas redes informatizadas. Em seu altar de sacrifícios são imoladas as classes inferiores de todo o mundo, com destaque para os países mais atrasados. Estes foram mantidos cronicamente na condição de colônias, alimentando a ilusão hipócrita da independência e da soberania nacional.

A globalização representa o fim deste teatro grotesco. Finalmente caíram os véus. Não é necessário fingir nacionalidades: todos somos cidadãos globais, numa sofismática e ingênua igualdade social. Trata-se de mais uma forma de sado-masoquismo. Institucional e individual, sistêmico e personalizado, o novo modelo eliminou a percepção das desigualdades estruturais com a panacéia da globalização. Nunca foi tão fácil a exploração do homem pelo homem: o lobo nunca esteve tão bem disfarçado de cordeiro...

A voracidade global transfigurou-se em ingênua igualdade cosmopolita onde as vítimas, seduzidas e hipnotizadas pela velha ideologia agora ambientada na sofisticação da novidade tecnológica, buscam sua própria imolação no altar do capital, despudoradamente desnacionalizado.

 

Sistema cibernético e poder

 

Novas tecnologias de comunicação surgem com freqüência crescente, ao mesmo tempo que as já existentes se aperfeiçoam. As opções, incrementadas pelo fascínio da tecnologia sofisticada e da novidade, são cada vez mais diversificadas. Esta variante apontaria na direção do aumento da liberdade dentro dos sistemas de comunicação. Por outro lado temos o desejo histórico da classe dominante de construir um modelo de organização social que possa realmente ser caracterizado como sistema

A cibernética viabilizou a concretização deste desejo. Ao projetar o sistema cibernético na organização social, a estrutura social pode finalmente materializar um sistema social. Quando se constata que a essência de um sistema está na organização, na lógica e na eficiência, conclui-se que os elementos periféricos, - consumidores ou cidadãos, - são meros executores das decisões que emanam do centro, - a classe dominante. Desta forma, a funcionalidade sistêmica implica na redução da liberdade individual a uma sensação ilusória. Em outras palavras, a organização sistêmica levaria a democracia para o plano da utopia.

O totalitarismo sistêmico se afirma em todos os setores da organização social e não apenas como sistema de poder. Como sistema de comunicação, a rede cibernética, não foi criada nem se mantém dissociada do sistema de poder. Por si só, esta associação seria suficiente para colocar em dúvida qualquer caracterização democrática.

O sistema de poder domina a grande rede em múltiplos setores. Realçamos o aparato tecnológico, o campo da informação e a instrumentalização consumista da rede. Não podemos esquecer também a capacidade crônica que o sistema tem de contornar e tirar proveito de eventuais situações contestatórias.

Embora computadores pessoais já sejam vendidos em supermercados, ainda estamos muito longe de universalizar o acesso da maioria da população. O poder aquisitivo das massas está ainda distante dos custos do equipamento necessário para acessar a rede cibernética; devem ainda acrescentar-se as despesas com provedores e redes telefônicas.

Quando se confrontam os desníveis nas condições econômicas da população entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, onde poder aquisitivo e custos tecnológicos costumam concretizar uma proporção inversa, detecta-se mais uma forma de aprofundamento das diferenças e do sofisma da globalização que afirma o pressuposto da igualdade ao mesmo tempo que aprofunda as desigualdades, em escala planetária.

Agravando este desequilíbrio, a atualização constante de hardware e software paga um tributo considerável à sua obsolescência cada vez mais precoce.

O pagamento deste tributo é uma necessidade imposta pelas atuais limitações tecnológicas da rede. É necessário melhorar as redes de telefones e de satélites, aumentar a capacidade dos provedores. A capacidade e velocidade de transmissão de dados, da rede até nossos computadores ainda é muito limitada. O mínimo que se espera de hard-ware de comunicação computerizada é a capacidade plena de transmissão de vídeo em tempo real.

O desenvolvimento tecnológico tem um custo. Os consumidores pagam. Mais uma vez se materializa a seleção econômica, num atestado que confirma o uso da grande rede como agente de reprodução das desigualdades sociais.

No plano do controle da informação, a grande rede oferece, à primeira vista, uma liberdade que não se encontra em outros meios institucionais. Convém, no entanto, não alimentar muitas ilusões quanto ao caráter democrático da rede. Sendo uma estrutura criada e mantida pelo sistema, não pode deixar de refletir os interesses que a sustentam. Quando se navegapela rede, se constata a prevalência de home pages institucionais. O fato de a informação ser poder implica na necessidade sistêmica de controle e restrição no acesso. A primazia de endereços institucionais fortalece esta estrutura. A rede fornece essencialmente informação permitida. As dissidências não representam risco considerável para o sistema. Trata-se de uma relativa democracia informativa.

A função que tende a afirmar-se no primado da rede é a universalização consumista. É neste aspecto que mais claramente se manifesta sua instrumentalização econômica. Tudo se vende e se compra pela rede. Realizam-se negócios e administram-se contas bancárias. A rede viabilizou a montagem de um sistema empresarial global, sustentando e fomentando o consumo em escala planetária.

A conseqüência mais evidente é que as desigualdades sócio-econômicas também se universalizam. As distâncias sociais passam do plano regional para o campo planetário; com isso a precariedade democrática também se universaliza.

Um fator importante da organização sistêmica está na capacidade de tirar proveito das adversidades. Numa perspectiva macroscópica do contexto ideológico, as divergências secundárias são freqüentemente toleradas pelo sistema, como forma de amortecer o impacto da homogeneização e, ao mesmo tempo, como apelo democrático mascarando o totalitarismo estrutural. Num segundo estágio, o sistema tende a absorver as dissidências, integrando-as e invertendo seus objetivos originais. Movimentos de contracultura costumam ser sistematizados, a médio ou longo prazo, num processo mágico de manipulação.

Merece destaque especial a guerrilha cibernética dos vírus de computador. A criação e difusão pela rede destes vírus materializa um tipo de divergência tecnológica de verdadeiro boicote. Por vias travessas, coloca em questão o controle do sistema sobre a rede cibernética de comunicação, gerando a ilusão de liberdade e de certa anarquia dentro do sistema.

Despindo-se da ingenuidade, qualquer analista descobrirá como tal dissidência acaba servindo o sistema. Desenvolve-se uma verdadeira indústria de software antivirus. O sistema cresce num setor florescente, tão promissor quanto a criatividade dos guerrilheiros cibernéticos. Involuntariamente (?!), estes dissidentes fomentam o fortalecimento do sistema. O consumidor sempre paga o pato.

Mais uma vez o sistema tira proveito da contestação. O sonho democrático da rede mais uma vez se desfaz no aumento dos custos e na reprodução econômica das desigualdades. Desta forma, a natureza globalitária da rede concretiza mais uma denúncia latente do delírio libertário embalado pela ingenuidade sociológica.

 

Individualização na Rede

 

A expansão da telemática tem provocado algumas transformações significativas, principalmente no que se refere às participações individuais dos cidadãos - consumidores. A natureza passiva e massificante da televisão tem sido alterada pela introdução do vídeo-texto no sistema de Tv a cabo, fator que permite uma certa interatividade e, ao mesmo tempo, realça a função informativa deste meio de comunicação.

Um dos campos mais promissores na simbiose do aparato de comunicação massiva com a rede está na adaptação dos aparelhos de Tv como terminais da Internet. Esta inovação da telemática está-se transformando no fato mais importante da história da Rede.

Inúmeros programas de correio eletrônico se espalham pela rede. Cada internauta tem uma caixa virtual universal. Este serviço coloca-o ao alcance de toda a rede de forma permanente, mesmo quando está desconectado. Também representa a possibilidade de interação com milhões de instituições, grupos e indivíduos que tenham acesso à Rede.

Chats, netmeeting, pontos de encontro, grupos de discussão e outros similares representam a forma mais explícita e menos formal de participação individualizada na Rede. É neste setor que a comunicação aparece mais democrática. Há uma certa desinstitucionalização do processo; por vezes um espírito libertário. Concretiza-se uma certa compensação para a natureza coercitiva da comunicação institucional. Os chats também representam uma válvula de escape para o solipsismo gerado pelo urbanismo industrial. Funcionam como pontos de encontro onde não existe uma fronteira clara entre o pessoal e o impessoal, ou entre o conhecido e o anônimo. Muitas vezes não realizam uma relação interpessoal e, colocando o convívio humano no plano virtual, não deixam de representar um novo modelo de alienação.

Esta constatação nos leva a formular uma hipótese de manipulação sistêmica. Como disfunções sociais ou como válvulas de segurança social, as manifestações libertárias dentro da Rede amorteceriam o impacto de sua natureza globalitária. Seriam toleradas ou estimuladas sem riscos consideráveis para a estabilidade sistêmica. Como mecanismos inseridos numa estratégia de distração, fortaleceriam indiretamente a natureza totalitária da organização.

No plano técnico, a Rede comporta inúmeras participações individuais; estas se reduzem muito no campo psicossocial e, no plano ideológico estrutural, são insignificantes.

Finalmente, podemos observar a expansão das possibilidades técnicas de participação individual no sistema de comunicação cibernética. Isso é natural no sistema capitalista e em suas extensões tecnológicas. O que precisamos descobrir é a fronteira entre a realização individual e a manipulação social. A utopia democrática começa na ausência da percepção apurada dos limiares da manipulação ideológica.


Delfim Soares é sociólogo, doutor em Filosofia e professor de Sociocibernética e Comunicação no Mestrado em Comunicação da UFF.

 

Disponível em http://www.compuland.com.br/delfim/delf1.htm