Raça e Biopolítica na América Latina: os limites do direito penal no enfrentamento ao racismo estrutural


PorJefter Gerson- Postado em 24 outubro 2019

Autores: 
Roberta Camineiro Baggio
Alice Hertzog Resadori
Vanessa Chiari Gonçalves

Raça e Biopolítica na América Latina: os limites do direito penal no enfrentamento ao racismo estrutural

Race and Biopolitics in Latin America: the limits of criminal law in confronting structural racism

Roberta Camineiro Baggio1 
http://orcid.org/0000-0003-4907-6105

Alice Hertzog Resadori2 
http://orcid.org/0000-0003-3198-1959

Vanessa Chiari Gonçalves3 
http://orcid.org/0000-0003-1081-7324

 

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail roberta.baggio@ufrgs.br.

2Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail ali.resadori@gmail.com.

3Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail vanessachiarigoncalves@gmail.com.

 

 

RESUMO

Entre a fase de redemocratização das sociedades latino-americanas até os dias de hoje, os Estados da região apostaram no direito penal como um importante instrumento de enfrentamento ao racismo estrutural. Diante da consideração das teorias biopolíticas de Foucault e de Agamben, que analisam a raça como uma estratégia de formação das identidades nacionais embasadas em hierarquias, o presente artigo busca refletir sobre os limites do direito penal como mecanismo eficaz de enfrentamento ao racismo estrutural dos países da América Latina.

Palavras-chave:  Raça; biopolítica; América Latina

ABSTRACT

Between the phase of redemocratization of Latin American societies until the present day, the states of the region have bet on criminal law as an important instrument to confronting structural racism. Considering the biopolitical theories of Foucault and Agamben, who analyze race as a strategy for the formation of national identities based on hierarchies, the present article aims to reflect on the limits of the criminal law as an effective mechanism to fight against the structural racism of Latin American countries.

Keywords:  Race; biopolitics; Latin America

INTRODUÇÃO1

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), da ONU, em recente estudo, afirmou que um dos fatores de desigualdade estrutural na América Latina e no Caribe é a raça/etnia. Na região, mais de 20% da população é composta por afrodescendentes, o que soma em torno de 130 milhões de pessoas. Essa população ocupa os postos de menores rendas e sofre desigualdades de toda sorte, como maiores índices de desemprego, menores remunerações no trabalho, maiores taxas de mortalidade infantil e materna, entre outros (CEPAL, 2017).

Ao lado desses dados, que comprovam a desigualdade racial, impera na América Latina2 um mito de que não há racismo na região, ou ainda, de que as sociedades latino-americanas são racialmente inocentes já que nunca apresentaram um histórico de segregação racial oficial, ou seja, o racismo não foi institucionalizado de modo explícito pelos Estados da região (HERNÁNDEZ, 2017, p. 99). Diferentemente dos Estados Unidos e da África do Sul, que fizeram apostas institucionais desse tipo, aqui, brancos, negros e indígenas teriam se unido em harmonia, dando origem a sociedades miscigenadas e com uma imensa riqueza cultural, que sempre viveram em “uma síntese feliz” (RODRÍGUEZ GARAVITO; BAQUERO DÍAZ, 2015, p. 65). Esse mito, conhecido como mito da democracia racial3, quando analisado a partir dos marcos teóricos da biopolítica de Foucault e Agamben, revela-se como uma estratégia primordial para a formação das identidades nacionais dos países latino-americanos, conformando relações sociais hierarquizadas e secundarizando a percepção da desigualdade racial como fonte de permanentes conflitos e tensões.

Nos anos 1990, o período de reconstrução democrática da região, após as experiências autoritárias das ditaduras de segurança nacional, favoreceu a rearticulação de diversas pautas de direitos humanos, dentre elas, a do combate ao racismo. O Direito, que sempre contribuiu de um modo decisivo para a conformação da raça como uma estratégia biopolítica na região, converteu-se no principal instrumento de resposta dos Estados latino-americanos à pressão pública ocasionada pelo tema desde então, em especial o direito penal. Com exceção do Paraguai, todos os países da região criaram tipos penais de combate ao racismo. Na prática, contudo, essas legislações tiveram uma eficácia muito mais simbólica do que instrumental (RODRÍGUEZ GARAVITO; BAQUERO DÍAZ, 2015, p. 68). Diante desse cenário, o artigo se propõe a analisar os limites do direito penal como instrumento de combate ao racismo estrutural e sua condição de superação da raça como uma estratégia biopolítica de sustentação das hierarquias sociais, não pela via empírica da investigação e comparação das legislações penais nacionais em seus termos, categorias e modos de aplicação, mas considerando-as como fruto de decisões políticas que, se por um lado correspondem à onda de impulsionamento da pauta de direitos humanos na região, por outro estão assentadas em conjunturas históricas que reproduzem socialmente e institucionalmente os padrões estruturais do racismo.

Assim, mais do que a busca por dados empíricos, nos interessa tomar como ponto de partida o resultado ao qual chegaram Rodríguez Garavito e Baquero Díaz (2015), no estudo em que debruçaram-se com profundidade sobre as causas da inefetividade das legislações penais nos Estados latino-americanos, na medida em que estamos buscando analisar os limites do direito penal como mecanismo de enfrentamento da questão racial desde as bases teóricas da biopolítica. Tal comprovação da inefetividade do direito penal, somada a algumas contribuições teóricas da criminologia crítica que dialogam com a biopolítica, nos apontam um caminho persistente de reprodução da lógica dominante do processo de formação das hierarquias sócio-raciais.

O texto está dividido em três momentos. O primeiro, em que serão assentadas desde as bases teóricas de Foucault e Agamben a relação entre bioplítica e racismo, o segundo, em que tais bases contribuirão para a construção de um diagnóstico acerca das condições de sustentação do racismo na América Latina, e o terceiro, em que será apresentada a aposta dos Estados latino-americanos na sanção penal como resposta ao racismo, seguida de uma análise sobre os limites do direito penal a partir do entrelaçamento entre raça, biopolítica e criminologia crítica.

1. Biopolítica e racismo

Estudar raça na América Latina implica compreender que esta categoria operou e ainda opera como uma estratégia biopolítica de controle e de subalternização das populações. Assim, na primeira parte deste artigo será apresentado o conceito de biopolítica, cunhado por Foucault, bem como as considerações sobre o tema propostas por Agamben.

Nesta pesquisa, partimos da concepção de poder de Michel Foucault, para quem a modernidade é marcada por uma nova configuração das relações de poder, que supera a lógica do poder jurídico-discursivo, ou seja, daquele modelo de poder que se concretiza na forma de lei e ao qual os sujeitos se submetem e obedecem. Na modernidade, diz o autor, o poder se apresenta de forma múltipla, está em toda parte, configurando-se como uma estratégia complexa de cada sociedade, chamado de biopoder (FOUCAULT, 2011). As principais características do biopoder são as seguintes: não é repressivo, ele incita, provoca, produz; não é algo que alguém possui, mas que se exerce em todos os âmbitos; é uma ação sobre outra ação, que produz efeitos, respostas, reações; onde tem poder tem resistência; e não há contradição entre poder e liberdade, pelo contrário, são indissociáveis. Isso porque o biopoder só se exerce sobre sujeitos livres, na medida em que se não há liberdade, há estado de dominação (violência), e não exercício de poder. O biopoder é o poder sobre a vida, que se exerce por meio de duas estratégias não excludentes, mas complementares: a disciplina e a biopolítica (FOUCAULT, 2010b).

Foucault apresenta o conceito de disciplina no livro “Vigiar e Punir” (2010b), em 1975, como os “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade.” (FOUCAULT, 2010b, p. 133). As disciplinas constituem sujeitos dóceis por meio da submissão de seus corpos numa espécie de maquinaria de poder, que os esquadrinha, rearticula e recompõe. Esta mecânica do poder define como se pode exercer domínio sobre os corpos dos outros para que eles façam o que se quer e para que operem como se quer, conforme as técnicas, a rapidez e a eficácia que se determina. As técnicas de disciplina emergem no Século XVIII, período da Revolução Industrial, e são colocadas em funcionamento em diversas instituições disciplinares, como as fábricas, os colégios, as organizações militares e os hospitais. Tanto a arquitetura dessas instituições, como o controle orgânico das atividades, por meio de sistemas de vigilância, de hierarquia, de inspeções e de relatórios são responsáveis por regular os corpos e constituir sujeitos obedientes (FOUCAULT, 2010b).

No decorrer do Século XVIII e no Século XIX, se faz perceber uma nova forma de desenvolvimento do biopoder, chamada por Foucault de biopolítica. O autor nos apresenta este conceito em 1976, no livro “A História da Sexualidade I: a vontade de saber” (2011) e aprofunda sua análise no curso ministrado no Collège de France de 1978-79, publicado em livro com o título “Em Defesa da Sociedade” (2010).

Para Foucault, a modernidade é caracterizada pela inclusão da vida na política, a biopolítica. A partir deste período, o simples fato de viver passa a ser objeto dos cálculos e estratégias do poder estatal sobre a vitalidade e a mortalidade humana, sobre os regimes de conhecimento, sobre as formas de autoridade e as práticas de intervenção que são consideradas legítimas e desejáveis (RABINOW; ROSE, 2006, p. 24).

A biopolítica centra-se não mais no controle do “homem-corpo”, como faz a disciplina, mas na regulação do “homem-vivo”, do “homem-espécie” (FOUCAULT, 2010). Os corpos, na biopolítica, aparecem como o suporte de processos biológicos, como nascimentos, mortes, procriações, saúde e doença, sobre os quais são exercidas intervenções e controles reguladores, dirigidos a toda população (FOUCAULT, 2011). O foco na vida da espécie humana faz emergir mecanismos globais reguladores que, agindo sobre a população como um todo, podem fixar um equilíbrio, manter uma média, prever estimativas estatísticas, que possam otimizar um estado de vida (FOUCAULT, 2010).

Rompendo com a lógica do poder soberano, que atua para fazer morrer, o Estado moderno intervém para fazer viver, “para aumentar a vida, para controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiências, daí por diante a morte, como termo da vida, é evidentemente o termo, o limite, a extremidade do poder.” (FOUCAULT, 2010, p. 208). Foucault nos pergunta como que este poder, que tem como função deixar viver, pode deixar morrer? Para o autor, a resposta a esta pergunta se relaciona ao racismo, ou melhor, à introdução do racismo nos mecanismos do Estado. O racismo é a forma com que os Estados modernos decidem quem deve morrer e quem deve viver, inserindo uma divisão biológica entre os grupos da população: as raças. A primeira função do racismo, portanto, é de provocar essas fragmentações, essas divisões no interior do conjunto biológico a que se dirige o biopoder (FOUCAULT, 2010).

A segunda função do racismo é a de permitir funcionar uma condição de aceitabilidade de tirar a vida do outro numa sociedade de normalização. O racismo cria uma relação positiva entre a morte do outro e a minha vida. Na medida em que a morte do outro, da raça inferior, do degenerado, do anormal, permite a continuidade da vida da espécie humana de forma mais sadia e mais pura, ela significa a minha melhor possibilidade de vida (FOUCAULT, 2011). Assim, a função de morte do Estado moderno passa, necessariamente, pelo racismo, é ele quem possibilita o exercício do direito de matar, o exercício do poder soberano. Por esta chave de leitura, Foucault permite pensar as relações que vão se estabelecer entre as teorias biológicas evolucionistas do Século XIX e o discurso de poder, demonstrada na seguinte passagem:

No fundo, o evolucionismo […] tornou-se, com toda a naturalidade, em alguns anos do século XIX, não simplesmente uma maneira de transcrever em termos biológicos o discurso político, não simplesmente uma maneira de ocultar um discurso político sob uma vestimenta científica, mas realmente uma maneira de pensar as relações da colonização, a necessidade das guerras, a criminalidade, os fenômenos da loucura e da doença mental, a história das sociedades com suas diferentes classes, etc. Em outras palavras, cada vez que houve o enfrentamento, condenação à morte, luta, risco de morte, foi na forma do evolucionismo que se foi forçado, literalmente, a pensá-los (FOUCAULT, 2010, p. 216).

É neste contexto que emergem os discursos de formação dos Estados modernos, que combinam a uniformização da cultura, da língua, do território, da educação, do sistema jurídico, da história nacional, com a homogeneização da identidade nacional (SILVA, 2015). Na América Latina, conforme será tratado no próximo ponto deste artigo, a formação da identidade nacional passa pela preocupação com o melhoramento da população, difundida pelas teorias de controle de hereditariedade, que vêm nos processos de branqueamento da população o futuro das nações. Achille Mbembe (2016) sustenta que não há como se falar em biopolítica, especialmente a partir do Sul global, sem refletir sobre as estruturas da colonização, que, por meio da separação da população por raças e da promoção da escravidão, assumem a primeira forma da biopolítica: “a seleção de raças, a proibição de casamentos mistos, a esterilização forçada e até mesmo o extermínio dos povos vencidos foram inicialmente testados no mundo colonial” (MBEMBE, 2016).

Ao lado da raça, a sexualidade ocupa uma posição estratégica de controle e de normalização. Ela está no cruzamento entre o controle disciplinar do corpo, exercido por meio da vigilância permanente (FOUCAULT, 2011), e da regulamentação biopolítica, já que produz efeitos na população (FOUCAULT, 2010). É pela sexualidade que doenças individuais e que perversões podem se alastrar para outras gerações, provocando a degeneração da população. De outro lado, a sexualidade se encontra também no núcleo produtor da melhoria da população, se for realizada de forma disciplinada e regular. A medicina e a higiene passam a ter, no século XIX, um papel de centralidade, tendo em vista que estabelecem o vínculo entre as influências científicas sobre os processos biológicos e orgânicos, sobre a população e sobre o corpo. No contexto latino-americano, o controle e a regulação da sexualidade foram utilizados, de forma conjunta com os saberes médicos, nos projetos de miscigenação, que buscavam a melhora da população por meio do seu branqueamento. Assim, como será exposto adiante, especial controle foi exercido sobre as mulheres, as gestantes desta futura população, que, por seu descuido ou perversão, poderiam gerar descendestes degenerados, ou, de outro lado, se disciplinadas e regulares, poderiam contribuir para o aperfeiçoamento da população e, consequentemente, para o progresso nacional.

O racismo, portanto, não é apenas o desprezo de uma raça por outra, também não é uma operação ideológica em que o Estado transfere para um adversário as hostilidades que estariam dirigidas a ele. É muito mais profundo e complexo do que isso, está ligado a um mecanismo que permite o funcionamento do biopoder, ao mesmo tempo em que permite ao Estado moderno exercer seu poder soberano. A eliminação das raças degeneradas e a purificação da raça para melhoramento da população, mobilizadas pelo racismo, são o que viabilizam ao Estado o seu poder de deixar morrer (FOUCAULT, 2010).

Giorgio Agamben acrescenta elementos importantes à reflexão de Foucault sobre biopolítica, e, em especial, sobre a sua relação com o racismo. Diferente de Foucault, o autor entende que a biopolítica não é uma característica da modernidade, mas algo inerente à política ocidental desde suas origens. Para ele, a captura da vida na política constitui o cerne do poder soberano, ou seja, a biopolítica é tão antiga quanto o poder soberano. Para ilustrar seu argumento, Agamben (2010) apresenta os dois termos utilizados pelos gregos para designar a vida: zoé é o simples fato de viver, e bíos, uma forma própria de viver de um indivíduo ou de um grupo, a vida política. A transformação do “simples viver” em um “viver bem” se dá, portanto, na política, desde a antiguidade romana.

O autor utiliza a figura do direito romano Homo Sacer para demonstrar que a captura da vida pela política se dá muito antes da modernidade e para pensar sua função na política moderna. Na antiguidade, quando uma pessoa era considerada sacer, era legalmente excluída do direito e da política da cidade. Essa declaração de sacer impedia que a pessoa pudesse ser legalmente morta (sacrificada), porém, qualquer um poderia matá-la sem que a lei o culpasse por isso. O Homo Sacer, assim, era a vida nua, a vida abandonada pelo direito. O interessante de se perceber é que esta vida era incluída no ordenamento jurídico na forma de exclusão, ou seja, estava prevista no ordenamento apenas para constar que dele estava excluída.

A partir da análise do Homo Sacer, Agamben propõe que a tese de Foucault sobre biopolítica seja atualizada. Para ele, o que caracteriza a política moderna não é a inclusão da vida nua na política, nem é o fato de que ela passe a ser objeto do cálculo e das estratégias do poder estatal. A política moderna é caracterizada pelo fato de que a ligação entre vida e política se tornou tão forte, que é praticamente impossível identificar essa relação. Assim,

[...] lado a lado com o processo pelo qual a exceção se torna em todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espaço político, e exclusão e inclusão, externo e interno, bíos e zoé, direito e fato entram em uma zona irredutível de indistinção. (AGAMBEN, 2010, p. 16).

A politização da vida, como uma linha em movimento, vai se deslocando a todos os espaços da vida social, apagando a fronteira que separa a vida nua dos valores políticos, jurídicos e biológicos a ela atribuídos. Dessa maneira, fica difícil de identificar quando os Estados Modernos estão tomando decisões sobre a vida da população (biopolítica) e quando estas decisões recaem sobre a morte de determinadas vidas tidas como indignas de serem vividas (tanatopolítica).

Para Agamben (2010), a raça deve ser compreendida nesse contexto, dentro desta lógica biopolítica, em que há uma captura quase imperceptível do fato pela norma. Somos subjetivados de forma a compreender que há diferenças físicas entre negros e brancos e que a raça, portanto, é um conceito biológico, ontológico, um fato da natureza sobre o qual não há discussão. Agamben nos mostra que esse discurso produz efeitos de verdade porque o conceito de raça funciona como uma cláusula geral que, em vez de ser preenchida por uma situação de fato, realiza uma coincidência entre fato e direito (AGAMBEN, 2010). Ou seja, é a própria norma que cria “o negro” para dizer quem é “o branco”.

Para ilustrar esse argumento, trazemos um trecho do livro “Americanah”, de Chimamanda Ngozi Adichie, que conta a história de Ifemelu, uma jovem nigeriana que vai estudar nos Estados Unidos e que lá se descobre negra: “Eu sou de um país onde a raça não é um problema; eu não pensava em mim mesma como negra e só me tornei negra quando vim para os Estados Unidos” (ADICHIE, 2014, p. 315). É diante da experiência de ser negra em uma sociedade que hierarquiza os sujeitos pela sua cor, que Ifemelu conhece o peso da negritude. Da mesma forma, Frantz Fanon, ao narrar os efeitos da experiência colonial sobre os colonizados, em “Pele Negra, Máscaras Brancas”, mostra como o negro surge apenas diante de um outro, de um não negro:

Chego lentamente ao mundo, habituado a não aparecer de repente. Caminho rastejando. Desde já os olhares brancos, os únicos verdadeiros, me dissecam. Estou fixado. Tenho ajustado o microscópio, eles realizam, objetivamente, cortes em minha realidade. Sou traído. Sinto, vejo nesses olhares brancos que não é um homem novo que está entrando, mas um novo tipo de homem, um novo gênero, um preto (FANON, 2008, p. 108).

Adichie e Fanon nos fazem pensar em como a raça não é um dado neutro e fixo, mas é relacional. Ainda, desvelam como a valoração da cor da pele é uma escolha política e não uma decorrência natural da existência de peles com tonalidades diversas, na medida em que o corpo biopolítico não é um pressuposto biológico que a norma remete, ele é a própria norma e também o critério da sua aplicação (AGAMBEN, 2010). Compreender que a norma não se remete a um fato ontológico permite perceber que a raça não é um dado da natureza, é produto de estratégias biopolíticas de controle da vida das populações. Conforme já referido, a separação do corpo biopolítico em raças e a sua hierarquização fazem parte da lógica biopolítica dos Estados modernos, que têm no projeto colonial uma expressão de como a raça é acionada para definir quem se permite viver e quem se deixa morrer. Essas provocações de Fanon e Adichie nos tiram da zona de conforto de produção e reprodução desta lógica, que justifica a dominação dos povos em razão de uma tida inferioridade de determinadas classes, gêneros e raças e de uma necessidade de levar a eles a “civilidade”.

2. Raça, dominação colonial e branqueamento das nações latino-americanas

Conforme explicitado acima, Foucault (2010 e 2011) nos diz que o racismo tem duas funções, a de dividir o corpo populacional entre quem pode viver e quem pode morrer e a de permitir uma condição de aceitabilidade da retirada da vida do outro, criando uma relação positiva entre sua a morte e a minha vida. Estas duas funções vêm sendo operadas desde o período colonial (MBEMBE, 2016) e produzem importantes efeitos no pensar o racismo na América Latina.

A divisão do corpo populacional foi proporcionada, especialmente, pela escravidão, o “regime de trabalho” colonial por excelência. Ao se definir que uma parcela da população seria desprovida de lar, de direitos sobre o seu corpo e de direitos políticos, se rompeu com a unidade do corpo-espécie, aceitando que uma parcela da população de um determinado território fosse mantida viva, mas em condições de “dominação absoluta, alienação ao nascer e morte social (expulsão da humanidade de modo geral).” (MBEMBE, 2016, p. 131) Como propriedade, o escravo tem valor, como ferramenta de trabalho, tem um preço, por isso, deve ser mantido vivo. Mas sua vida não lhe pertence, quem tem poder sobre ela é o seu senhor, que, com emprego de violência, exerce seu direito de propriedade, decidindo se deve viver ou se merece morrer.

As colônias, fala Mbembe (2016), são organizadas de forma estatal, mas não criam um mundo humano, de respeito à soberania. Pelo contrário, elas produzem o não humano, o selvagem, o bárbaro, o quase-animal, aquele que não faz jus aos controles e garantias da ordem judicial, sendo possível governar a colônia na ilegalidade absoluta, na suspensão da norma. Ou seja, o

[…] direito soberano de matar não está sujeito a qualquer regra nas colônias. Lá, o soberano pode matar em qualquer momento ou de qualquer maneira. A guerra colonial não está sujeita a normas legais e institucionais. Não é uma atividade codificada legalmente. Em vez disso, o terror colonial se entrelaça constantemente com fantasias geradas colonialmente, caracterizadas por terras selvagens, morte e ficções para criar um efeito de real (MBEMBE, 2016, p. 134).

Para além da divisão da população entre quem deve viver (colonizador) e quem pode morrer (o selvagem), o racismo na América Latina (re)produziu um efeito positivo na morte do outro, do degenerado, na medida em que esta morte permite a vida. Vida aqui se refere ao corpo-espécie, à população, e não apenas às vidas individuais. A morte do degenerado, então, permite a melhora da espécie humana e, por isso, é positiva. Como já mencionado, esta função do racismo está conectada aos saberes científicos eugênicos, baseados na crença da superioridade branca. Estes saberes contribuíram para promover o que Agamben (2010) chama de intersecção entre norma e fato, ou seja, a conexão entre a raça e a hierarquização dos sujeitos em razão da cor da pele.

A América Latina desenvolveu uma forma própria de eugenia, baseada na compreensão de hereditariedade de Jean Baptiste Pierre Lamarck. Diferente da perspectiva de Gregor Mendel, adotada pelos Estados Unidos e pelos países da Europa, pela qual nenhum nível de desenvolvimento social poderia mudar o fato de que grupos bem sucedidos teriam uma boa carga genética, ao passo que pessoas em desvantagem teriam uma má carga genética, a teoria de Lamarck aceitava que forças externas exerciam influência na hereditariedade. Assim, características assumidas por uma pessoa em razão da sua adaptação ao ambiente seriam transmitidas para suas gerações futuras (HERNÁNDEZ, 2017). A adoção do lamarckismo na América Latina justificou as ações higienistas de melhoramento das classes inferiores, dando suporte à promoção da mestiçagem como forma de aperfeiçoamento das populações.

Entretanto, as compreensões de raça e de mestiçagem não foram tomadas de modo uniforme. Neste sentido, Moutinho (2004) analisa os autores clássicos que trabalham, com base em saberes científicos, com as ideias de raça e mestiçagem na construção da nacionalidade brasileira. A autora percebe que a compreensão entre raça e miscigenação é variável neste país, não sendo concebida de forma fixa e estável, a partir de uma única história oficial, como um dado, um fato. Para Gobineu (1937), o “pai do racismo científico”, a mestiçagem era vista como a degeneração da raça branca. Já Nina Rodrigues (1938), trabalhava com a ideia de raça influenciada pelo clima e pelo meio social, podendo ser modificada positiva ou negativamente conforme esses fatores, o que denota uma não fixidez deste conceito. Oliveira Vianna (1956) defendia a miscigenação controlada (em especial entre homens brancos e mulheres negras), de forma que não diluísse as características superiores dos brancos, mas depurasse as características inferiores dos negros. Paulo Prado (1981), Gilberto Freyre (2003) e Sérgio Buarque de Holanda (1995), de outro lado, entendiam que a mistura das raças é a “alma brasileira”. Moutinho (2004) chama a atenção para o fato de que, apesar de diversas, todas estas percepções acabam contribuindo para a formação do ideário de nação brasileira4. Este estudo, portanto, reforça a impossibilidade de assumirmos a raça como um dado incontestável da natureza, e a necessidade de a compreendermos como uma estratégia biopolítica que busca a normalização dos corpos e o controle das populações.

Uma outra leitura importante para a região, que busca romper com a colonialidade, mesmo que situada no horizonte de um debate de superioridade de raças, foi feita pelo mexicano José Vasconcelos (2010). Objetivando se distanciar das correntes darwinistas, pelas quais sobreviveriam os bons e morreriam os débeis, Vasconcelos (2010) expõe sua tese: o mundo estaria povoado por quatro diferentes raças, os brancos, os negros, os indígenas e os mongóis. A cada período histórico, que pode durar milhares de anos, domina uma raça diferente, que acaba sendo substituída por outra no período subsequente. A última e derradeira substituição será feita entre os brancos (dominantes neste período) por uma quinta raça, uma raça universal, decorrente de todas as outras, que superará todas as debilidades do passado: a raça cósmica. Para o autor, esta raça surgirá na América Latina, onde já há mestiçagem entre brancos, escravos africanos, imigrantes orientais e indígenas. Essa mistura de raças gerará uma espécie superior, maleável, com uma rica carga genética.

Gloria Anzaldúa (2005) parte da perspectiva da raça cósmica para afirmar que a mistura das raças gerará uma nova consciência mestiça, uma consciência de mulher, de fronteiras, que rompe com dualidades entre raças e opera no entre-meios, carregando várias culturas ao mesmo tempo em que não pertence a nenhuma. Nas palavras da autora:

Como mestiza, eu não tenho país, minha terra natal me despejou; no entanto, todos os países são meus porque eu sou a irmã ou a amante em potencial de todas as mulheres. (Como uma lésbica não tenho raça, meu próprio povo me rejeita; mas sou de todas as raças porque a queer em mim existe em todas as raças.) Sou sem cultura porque, como uma feminista, desafio as crenças culturais/religiosas coletivas de origem masculina dos indo-hispânicos e anglos; entretanto, tenho cultura porque estou participando da criação de uma outra cultura, uma nova história para explicar o mundo e a nossa participação nele, um novo sistema de valores com imagens e símbolos que nos conectam um/a ao/à outro/a e ao planeta. Soy un amasamiento, sou um ato de juntar e unir que não apenas produz uma criatura tanto da luz como da escuridão, mas também uma criatura que questiona as definições de luz e de escuro e dá-lhes novos significados (ANZALDÚA, 2005, p. 707-708).

A mestiçagem também foi vista na América Latina como o passaporte para alcançar os desejos de civilização e de progresso das nações. O progresso, ligado aos princípios evolutivos darwinistas, representava o desejo de criação de uma civilização futura, melhor que a atual, alcançada pela evolução humana. Em razão da influência do poder imperial, a civilização buscada tinha como modelo a Europa, que representava o ideal ocidental de modernidade. Essa visão hegemônica do mundo era levada aos países colonizados como se fosse neutra, científica, natural. Desta forma, o imperialismo, além de político, se consolidava nas esferas econômicas e sociais das sociedades colonizadas, reproduzindo-se como uma forma de consenso tanto entre colonizadores, como colonizados (MISKOLCI, 2012).

Os povos latinos, por serem distantes do modelo europeu, eram vistos de forma negativa pelas elites dominantes, se constituindo como o grande obstáculo para o progresso e para a civilização. Por este motivo, as elites buscavam o rompimento com este povo e a criação de uma nova nação, branca e civilizada, compreendida muito mais a partir de suas feições biológicas do que políticas. Nação abarcava dois aspectos, a homogeneidade do povo e a harmonia política, ou, traduzindo pelos ideais das elites dominantes do fim do Século XIX, pelo branqueamento e pela civilização (MISKOLCI, 2012).

Na busca por harmonia política, as elites fizeram concessões aos negros, como a abolição da escravatura, sem, contudo, lhes conceder direitos de igualdade em relação aos brancos. Com o objetivo de branquear a nação, somado ao medo das possíveis revoltas dos negros, estimulou-se a vinda de imigrantes europeus para trabalharem como assalariados nas fazendas de café no Brasil. Acreditava-se que tanto a nova forma de trabalho empregada (não escrava), quanto a cor destes imigrantes, seria responsável pela melhora do nosso povo (MISKOLCI, 2012). Na Argentina, a imigração de europeus foi estimulada para alcançar o progresso material, industrial e aumentar a população de forma rápida. A Constituição de 1853 previu diversos mecanismos para facilitar a livre imigração (de europeus), como a liberdade de comércio, a indústria sem travas, o reconhecimento de direitos aos estrangeiros, entre outros. Esta constituição foi baseada no livro “Bases y puntos de partida para la organización política de la República Argentina”, de Juan Bautista Alberdi. O autor afirma que tudo o que há de civilização na América Latina foi a Europa que trouxe e que tudo o que não é europeu na América é bárbaro. Portanto, defende que o futuro também estaria na Europa, pois ela “[…] nos traerá su espíritu nuevo, sus hábitos de industria, sus prácticas de civilización, en las inmigraciones que nos envíe.” (ALBERDI, 2005, p. 99).

Neste contexto, começa-se a dar importância às novas teorias de controle da hereditariedade, relacionadas tanto com a preocupação com a melhoria da população, quanto ao temor com os desvios que poderiam ser acometidos os negros. Estas teorias relacionavam raça a gênero, defendendo que as raças inferiores seriam o equivalente ao feminino na espécie humana, enquanto as mulheres seriam relacionadas às raças inferiores no paralelo do gênero. Assim, negros e mulheres eram vistos como ameaças à ordem e à normalidade, e, por isso, sobre eles deveria recair um controle e disciplinamento. Este controle intersecciona a disciplina dos corpos e a normalização das populações (FOUCAULT, 2010), exercendo-se também com relação à sexualidade, pois ela deveria contribuir para alcançar o ideal de branqueamento da nação, disciplinando-se, assim, a vida privada em razão de objetivos públicos e coletivos (MISKOLCI, 2012).

As dinâmicas de gênero foram fundamentais para que se pudesse alcançar o projeto da nação civilizada em toda a América Latina. As mulheres ocuparam um papel importante na reprodução das nações, já que criaram em seu ventre a população nacional do futuro. Por outro lado, colocaram sob ameaça este projeto de nação, na medida em que podiam descumprir as normas sociais e manter relações inter-raciais ou inter-classe, gerando filhos que não correspondiam ao ideal de nação que se buscava alcançar (WADE, 2008). Desta forma, percebe-se que o racismo e o sexismo são estratégias biopolíticas que atuam conjuntamente, sendo necessário compreendê-las num contexto interseccional (CRENSHAW, 2002).

Para além de se relacionarem, o racismo e o sexismo se utilizam das mesmas estruturas de pensamento e de discurso, reproduzindo relações de poder que se justificam na natureza, fundamentando-se nas diferenças fenotípicas. Os dois fenômenos também relacionam a realidade social com a corporal, inscrevendo a cultura nos corpos e assim, naturalizando-a como algo dado, imutável. Nas palavras de Mara Viveros Vigoya, “En la sociedad de clases, las diferencias de sexo y las diferencias de raza, construidas ideológicamente como ‘hechos’ biológicos significativos son utilizadas para naturalizar y reproducir las desigualdades de clase.” (VIVEROS VIGOYA, 2008, p. 173).

As relações de poder não são neutras nem quanto ao gênero e nem quanto à raça. São os homens brancos que exercem poder, assegurando sua posição de dominantes, sua virilidade e mesmo a construção da sociedade de forma a produzir e reproduzir este poder. O fazem por meio do controle da sexualidade das mulheres brancas e de relações de estupro com as mulheres negras de classes subalternas (NASCIMENTO, 2017). Este mecanismo de controle e de dominação é comum a diversas sociedades em que a hierarquia social possui uma dimensão racializada. Em Cuba, os homens brancos controlavam a sexualidade das mulheres brancas por meio da noção de honra, ameaçando-as de que, a qualquer suspeita de desvio, teriam sua honra maculada para sempre. Para os homens a honra era relativizada, sendo admitidas as relações extraconjugais com mulheres de classes mais baixas (WADE, 2008).

Já na Colômbia, os homens brancos usavam o sexo como expressão de sua dominação por meio das relações sexuais com mulheres mestiças, o que provocou duas importantes reações nos homens negros: a proteção das “mulheres de família” e a depredação machista às mulheres mestiças que se relacionavam com os brancos. Assim, percebe-se que o imaginário latino-americano de nações mestiças é baseado nas relações inter-classe dominadas por homens brancos que se relacionam com mulheres negras, índias ou mestiças. Ou seja, a sexualidade atua não só como marcador de classe, mas também de gênero e de raça, já que é um projeto de controle exercido pelos homens brancos (WADE, 2008). Contudo, para além destas dominações exemplificativas, a sexualidade é utilizada, ao lado da raça, como mecanismo produtor da sociedade em sua totalidade, ou seja, se configura como uma estratégia biopolítica. Abdias Nascimento narra com presteza como esta estratégia é tanto de vida, quanto de morte, tanto de produção de uma população embranquecida, como de genocídio da população negra:

O processo de miscigenação, fundamentado na exploração sexual da mulher negra, foi erguido como um fenômeno de puro e simples genocídio. O “problema” seria resolvido pela eliminação da população afrodescendente. Com o crescimento da população mulata, a raça negra iria desaparecendo sob a coação do progressivo clareamento da população do país (NASCIMENTO, 2017, p. 84).

Nesse sentido, estabeleceu-se que o sexo deveria ser eminentemente reprodutivo e realizado dentro do casamento, pois era apenas por meio dele que se consolidaria o embranquecimento da população (MISKOLCI, 2012). O desejo era compreendido como uma manifestação de instintos primitivos, ligados aos negros, devendo, portanto, ser controlado. Só eram considerados verdadeiros cidadãos nacionais aqueles que provassem ser capazes do autocontrole do desejo, ou seja, que praticassem sexo reprodutivo dentro do casamento. Contudo, apenas homens brancos (aos moldes dos europeus) podiam desenvolver este autocontrole, pois se acreditava que os negros, oriundos das classes populares, tinham a sua sexualidade mais aflorada, com desejos exacerbados, incapazes de viverem moralmente por contra própria (MISKOLCI, 2012). Esta fetichização dos negros em termos sexuais, que criou o mito da mulata sedutora e do negro hipersexualizado, que ora os retrata como objeto de desejo, ora com repugnância, é fruto das relações hierárquicas interseccionais que buscam manter a hegemonia dos homens brancos dominantes (WADE, 2008).

O projeto de branqueamento e progresso da nação era contraposto por pesadelos das elites, por pânicos morais, entendidos como “reações coletivas a supostas ameaças a uma imagem idealizada que uma sociedade tem de si mesma” (MISKOLCI, 2012, p. 56). Estes pânicos morais eram agenciados por pessoas, grupos e pelos meios de comunicação, buscando adesão da sociedade em torno do inimigo comum, que, neste período, era a degeneração social. Além dos efeitos individuais e coletivos, os pânicos morais acabaram servindo de fundamento a normas e convenções culturais, que foram moldando as subjetividades ao longo do tempo (MISKOLCI, 2012).

A consolidação da civilização dependia de se afastar os fantasmas da degeneração por meio de um projeto modernizante, autoritário, que buscava o branqueamento do povo e um modelo idealizado de família. Diversos saberes hegemônicos contribuíram para o alcance da civilidade e do branqueamento. A medicina e a criminologia exerciam o controle moral, definindo quais eram os comportamentos adequados e inadequados; os exercícios físicos, que passam a ser obrigatórios nas escolas, atuavam no controle dos corpos e também na produção dos gêneros sobre eles; o alistamento militar obrigatório servia como forma de disciplina dos homens, especialmente aqueles oriundos das classes populares, lhes introjetando a branquitude almejada; e a imprensa contribuía para publicizar os comportamentos tidos como inadequados, criando condições para que o pânico moral fosse disseminado. Estes saberes contribuíram para delinear e reforçar as normas a serem seguidas e para consolidar os pânicos morais relacionados à sua dissidência (MISKOLCI, 2012).

Percebe-se, portanto, que o racismo opera na América Latina desde a dominação colonial (MBEMBE, 2016), provocando fissuras no corpo populacional e criando condições para que a morte do outro, do degenerado, seja vista como possibilidade de vida para o corpo-espécie (FOUCAULT, 2010). Esta espécie que vive é aquela que pode levar adiante os ideais de progresso e de branqueamento das nações, por meio da mestiçagem controlada. É aquela que tem seus corpos vigiados e sua vida regulada por normas que criam a raça branca (ou, no máximo, mestiça), ao mesmo tempo em que a utilizam como seus critérios de aplicação (AGAMBEN, 2010).

3. Raça, biopolítica e direito penal: algumas contribuições da criminologia crítica ao debate

O cenário latino-americano que fez da raça uma estratégia biopolítica de difícil identificação, também fez do direito um importante instrumento de normalização das hierarquias raciais. Assim como outras áreas do conhecimento, o direito é elaborado de forma a atender aos cálculos das relações de poder. Nesse sentido, a lei é produzida (e reproduz) determinados discursos, que funcionam como se fossem verdades, mas justificam relações de poder, estruturando regras para o governo das pessoas, dividindo-as, sujeitando-as, adestrando-as (FOUCAULT, 1995).

Contudo, a partir da década de 1990, com o fim das ditaduras de segurança nacional, uma onda de democratização propiciou a entrada de uma série de demandas por direitos humanos na agenda política da América Latina, dentre elas o combate ao racismo. O ápice do processo de articulação da pauta e de pressão sobre as agendas políticas estatais se deu na reunião preparatória da Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, ocorrida em Santiago do Chile em 2000, onde participaram mais de 1700 ativistas, representando um marco significativo na consolidação da produção legislativa antidiscriminatória da região (HERNÁNDEZ, 2017, p. 98). De fato, dos 19 Estados latino-americanos analisados no presente artigo, 11 legislaram no sentido de combater o racismo depois do ano 2000, sendo que à exceção do Paraguai que nunca legislou sobre o assunto, 18 desses Estados possuem legislações antidiscriminatórias, todas do âmbito penal5.

Ainda que, como afirmou Foucault (2011), se considere que onde há poder há resistência e, nesse sentido, o avanço do combate ao racismo pelo direito penal possa ser visto como um importante instrumento de explicitação das relações de hierarquia racial nas sociedades latino-americanas, o problema que se apresenta nesse artigo refere-se à identificação dos limites do direito penal como instrumento de combate ao racismo estrutural e de superação da raça como uma estratégia biopolítica de sustentação das hierarquias sócio-raciais.

A questão que se coloca como base de sustentação da problemática aqui desenvolvida considera o importante papel do direito penal ao longo da história latino-americana no cumprimento de sua função de justificação do poder, reafirmando a hierarquia de raça dos aparatos institucionais altamente seletivos dos Estados. Nesse sentido, Rodríguez Garavito e Baquero Díaz realçam o papel do direito na reafirmação do mito da democracia racial enquanto prática institucional seletiva e discriminatória, diferenciando o “direito nos livros” do “direito em ação”, de modo a demonstrar o quanto as identidades e hierarquias sociais são determinantes na aplicação cotidiana do universo jurídico. Nas palavras dos autores:

Aunque el “derecho en los libros” (el de las constituciones y las leyes) no consagraba un apartheid legal, el “derecho en acción” (el de la policía, las cárceles, los funcionarios y las cortes, para no hablar de los espacios privados) reforzó una jerarquía racial altamente eficaz, donde el color acarreaba consecuencias tan importantes como la clase social. Basta recordar el papel de las fuerzas policiales en la aplicación de normas informales de segregación en espacios públicos hasta bien entrado el siglo XXI […] De modo que el derecho ha tenido responsabilidad importante en la construcción y el mantenimiento de las profundas desigualdades económicas y sociales de las “pigmentocracias” latinoamericanas que teorizara el antropólogo chileno Alejandro Lipschutz hace ya 70 años. (2015, pp. 65-6)

Diante desse cenário e da constatação já referenciada de que a “aposta” regional feita no direito penal tem tido um efeito mais simbólico do que instrumental (RODRÍGUEZ GARAVITO; BAQUERO DÍAZ, 2015, p. 68) surge a indagação sobre até que ponto a adoção de sanções penais no combate ao racismo não esbarra tout court na reafirmação da manutenção da questão racial como uma estratégia biopolítica de controle e de contenção dessas populações, só que agora disfarçada e protegida pela narrativa de cumprimento da agenda internacional de direitos humanos.

Não se ignora aqui a importância da conversão sofrida pelo direito penal em espaço de disputa na agenda política de combate ao racismo, consolidando-se como a principal resposta dada por parte dos Estados da América Latina a essa demanda político-social. Contudo, a natureza individualizada da sanção penal somada à manutenção da seletividade do sistema penal em relação às populações afro e, ainda, a prevalência de sua simbologia sobre sua instrumentalidade no combate ao racismo, indicam uma ineficiência no alcance de resultados que contribuam para atingir os efeitos do racismo estrutural nas sociedades latino-americanas.

Ainda que o direito penal não sofresse da função de seletividade, que o manteve ao longo da história de formação das identidades nacionais latino-americanas como parte importante da estratégia de biopolítica para o controle e manutenção das desigualdades e hierarquias raciais, sua natureza não comporta o enfrentamento de práticas sistêmicas e estruturais como o racismo, sobretudo por seu alcance individualizado e pelo exercício de uma função que, ao estabelecer uma sanção, busca punir os comportamentos desviantes e não as práticas sociais consolidadas, contradizendo a própria lógica das lutas antirracistas, que denunciam o enraizamento social do racismo6. Para Hernández, o resultado da aposta dos países da América Latina no direito penal “tem sido tratar o racismo como obra de indivíduos isolados, que supostamente possuem preconceitos anormais. Em suma, os racistas são criminosos e não representantes de normas culturais racistas arraigadas” (2017, p. 99).

Nesse sentido, para além da crítica com relação à natureza individualizada do direito penal, interessa pontuar a importante contribuição que os estudos criminológicos críticos trouxeram para a reflexão acerca da opção dos Estados pelo direito penal. A criminologia crítica ou radical parte da noção de seletividade do sistema de justiça criminal, desenvolvida pelas correntes interacionistas, direcionando a sua análise para dois aspectos centrais: os preconceitos internalizados pelos indivíduos e, especialmente, pelos operadores desse sistema e as pressões econômicas do capitalismo produtivo.

No tocante aos preconceitos assimilados, pode-se dizer que a lógica do pensamento estigmatizante é binária e corresponde à primeira função do racismo apontada por Foucault (2010), qual seja, a de criar fissuras no corpo populacional, de forma que seja possível dividir o conjunto biológico a que se dirige o biopoder (FOUCAULT, 2010). Essa divisão faz com que cada indivíduo dentro de um contexto social de interação possa ocupar a posição de “normal” ou de estigmatizado em relação a cada atributo que possua ou ao papel social que desempenhe. Embora essa tendência atinja a todos os indivíduos, é certo que determinadas condições de vida podem fazer com que alguém possa ser escalado para representar o papel de estigmatizado em quase todas as situações sociais, naturalizando-se os preconceitos. E mais, quando os estigmas “são transmissíveis ao longo das descendências familiares as instabilidades resultantes na interação podem ter um efeito muito profundo sobre os que recebem o papel de estigmatizados” (GOFFMAN, 2008, pp. 149-150). Mas é evidente que os processos de estigmatização possuem uma função social geral relacionada à necessidade de obtenção de “apoio para a sociedade entre aqueles que não são apoiados por ela” (GOFFMAN, 2008, pp. 149-150). Assim, estabelece-se um mecanismo de controle social no qual a estigmatização de certos grupos raciais funciona como “um meio de afastar essas minorias de diversas vias de competição” (GOFFMAN, 2008, pp. 149-150).

Essa situação torna-se perceptível quando se pensa no imaginário construído no Brasil, a partir da incorporação da criminologia positivista. Isso porque, no período que se seguiu à abolição da escravatura, a ordem racial brasileira e a hegemonia da raça branca ruíram, possibilitando o surgimento de um amplo conflito racial. Ao mesmo tempo, Nina Rodrigues adaptava a teoria lombrosiana, possibilitando a construção de uma legitimação que manteve o status quo hierárquico-racial, “senão em termos de políticas públicas para a formalização do apartheid brasileiro, em concretização prática de um controle racial segregacionista que permitiu o contínuo genocídio negro”. (GÓES, 2016, p. 279). Ou seja, possibilitando que o Estado exercesse seu poder soberano de decidir quais vidas mereciam ser vividas e quais podiam ser deixadas à morte (FOUCAULT, 2010). Racismo esse, naturalmente, velado como se observa nas palavras do próprio Nina Rodrigues “todo brasileiro é mestiço, se não no sangue, pelo menos nas ideias” (1938, p. 117).

Do ponto de vista da economia dos castigos, pode-se afirmar que a crença de que no Brasil e na América Latina impera a impunidade é falsa, tratando-se de uma generalização indevida da “histórica imunidade das classes dominantes”, uma vez que para a maioria da população “do escravismo colonial ao capitalismo selvagem” a punição é um fato cotidiano. E ela se apresenta de forma implacável sempre que “pobres, negros ou quaisquer outros marginalizados vivem a conjuntura de serem acusados da prática de crimes interindividuais (furtos, lesões corporais, homicídios)” (BATISTA, 1990, p. 38), garantindo uma equação econômica.

A criminologia crítica latino-americana tem pontuado que a diferença entre o sistema dos países do Norte e dos países do Sul global está na dose mais elevada de violência observada aqui. Ao lado das dores do aprisionamento seletivo em condições indignas, somam-se os mecanismos de controle social informal e clandestino, que está relacionado com as condições históricas da formação social e econômica da região. A citação de Vera Andrade sobre o caso brasileiro é bem exemplificativa dessa situação já que

a violência contra os corpos nunca saiu de cena, sobretudo, contra os corpos negros e pobres das periferias brasileiras. Aqui, na periferia, a lógica da punição é simbiótica com a lógica genocida, e vigora uma complexa interação entre pena de prisão como pena oficial (com as suas funções nobres declaradas) e pena informal de morte, por dentro da prisão. Executam-se penas com crueldades extremas, tortura e morte, vale dizer, com inversão constitucional em ato, penas cruéis, difamantes, e pena de morte em tempo de paz. (ANDRADE, 2012, p. 309-310)

Para Mbembe (2016), a articulação entre as velhas e novas modalidades de controle social está gerando uma nova forma de biopolítica, a necropolítica. Ela é caracterizada não mais pelo controle da população para gerar vida, mas sim pela sua sujeição à política da morte, ao massacre, à aniquilação em larga escala. Segundo o autor, “as novas tecnologias de destruição estão menos preocupadas com inscrição de corpos em aparatos disciplinares do que em inscrevê-los, no momento oportuno, na ordem da economia máxima, agora representada pelo ‘massacre’”. (MBEMBE, 2016, p. 141). Neste contexto, alguns grupos são marcados como passíveis de serem mortos, como é o caso, na América Latina, dos negros e das populações periféricas (ALVES, 2010-2011). A título exemplificativo, trazemos os dados de homicídios do Brasil, divulgados no Atlas da Violência 2018. No período de 2016, a concentração de homicídios na população negra foi alarmante. Enquanto as taxas de homicídios de não negros foram de 16%, os homicídios de negros somaram 40,2%, ou seja, duas vezes e meia a mais. Se considerarmos a década, de 2006 a 2016, a taxa de homicídios de negros aumentou 23,1%, sendo que a de não negros reduziu 6,8%. Entre as mulheres, a taxa de homicídio de negras foi 71% superior à de não negras (IPEA; FBSP, 2018).

Ocorre que as classes dominantes na América Latina fizeram questão de atribuir os problemas locais às “características individuais inerentes” aos que resistiam à importação do modelo do capitalismo produtivo. Não consideravam que a apatia e a insensibilidade ao desafio para a mudança decorriam da “natureza exploradora do sistema em que haviam de se integrar os 'inferiores'. Era mais fácil atribuir essa dificuldade a características inatas, a deficiências congênitas, psíquicas ou intelectuais”. (OLMO, 2004, p. 173-174). Desse modo, vem da criminologia crítica a compreensão do direito penal e do sistema de justiça criminal como mecanismo de controle social formal das massas miserabilizadas pela exclusão inerente ao capitalismo produtivo. Assim, numa perspectiva minimalista, a seletividade do sistema aparecerá na análise dos processos de criminalização primária (normativa), secundária (judicial) e terciária (executória).

A mesma seletividade que opera na repressão penal contra as populações marginalizadas ou estigmatizadas, manifesta-se quando essas mesmas populações se encontram na condição de vítimas dos delitos. Como já foi abordado, 18 Estados latino-americanos criminalizaram o racismo nas suas legislações internas, mas a repressão efetiva aos crimes dessa natureza é inexpressiva nos países da região7. Os países não ultrapassam os limites da criminalização primária, de forma que as normas incriminadoras do racismo possuem caráter meramente simbólico e, quando utilizadas, reafirmam as condições de manutenção do racismo estrutural ao tratarem de condutas individualizadas que, dentro da lógica binária, se afastam da “normalidade” sustentada, no caso do racismo, pelo mito da democracia racial8 (RODRíGUEZ GARAVITO; BAQUERO DÍAZ, 2015).

De outro lado, as notícias sobre atos de racismo em locais públicos e privados e nas redes sociais fazem perceber que a cifra obscura desse delito é extremamente significativa. Preserva-se, assim, na ausência de estatísticas oficiais suficientes sobre os crimes de racismo9, o mito da democracia racial que mantém na invisibilidade os atos de preconceito, de violência psicológica e física e de extermínio da população afrodescendente. Desse modo, a seletividade do sistema de justiça criminal denunciada pela criminologia crítica dialoga perfeitamente com a adoção da lógica biopolítica dos Estados, por meio da utilização da categoria raça como mecanismo de hierarquização entre os indivíduos, tanto no que diz respeito à escolha entre quem merece viver e quem pode morrer, como na diferença entre quem merece ser punido e quem deve permanecer impune ou, ainda, quem deve ser tratado legalmente como infrator de normas antidiscriminatórias numa clara manifestação de manutenção da estratégia biopolítica de não reconhecimento do racismo que permeia e define estruturalmente e não apenas individualmente os espaços sociais e institucionais das sociedades latino-americanas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final deste estudo, podemos perceber que a raça vem operando na América Latina como estratégia biopolítica de controle das populações desde a dominação colonial, se manifestando por meio dos projetos de branqueamento das nações, de controle e subalternização de negros e indígenas e pela naturalização do mito da democracia racial. Tal estratégia produz e reproduz efeitos de verdade potentes, na medida em que intersecciona a norma com o fato que ela pretende regular de forma que não se perceba esta conexão. Assim, tomamos a raça como um dado biológico, natural, e não percebemos que a própria norma que hierarquiza os sujeitos em razão da cor da pele é que determina o que é ser preto e o que é ser branco.

Mesmo diante da função “normalizante” cumprida pelo direito ao longo da história, 18 dos 19 Estados da América Latina utilizaram o ordenamento jurídico penal para sancionar os crimes decorrentes da diferenciação e subalternização em razão da cor da pele, em uma onda de reconhecimento de que o racismo é um fenômeno a ser combatido na região. Contudo, a simbologia da letra da lei tem superado a eficácia prática dessas legislações.

Diante desse quadro, ao refletir sobre os limites do direito penal ante sua ineficiência e de seu alcance individual e seletivo, o presente artigo considera a sua impossibilidade concreta de romper com as lógicas sociais, jurídicas, políticas e culturais que estabelecem e reforçam o racismo enraizado nas práticas sociais e institucionais das sociedades latino-americanas, de modo que torna-se possível afirmar que esse viés de enfrentamento acaba por desembocar no reforço da raça como uma estratégia de biopolítica em, pelo menos, dois níveis: (1) quando a seletividade atua para manter o primarismo de uma criminalização meramente simbólica ou (2) quando, dentro dessa aplicação seletiva, atua contra o desvelamento da sistematicidade do racismo, reforçando o mito da democracia racial ao responsabilizar individualmente condutas que se colocam como situações meramente excepcionais.

1Nos termos da Portaria n. 2016/2018 – CAPES, registre-se que o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. “This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) - Finance Code 001”.

2Nesse trabalho, a América Latina é concebida desde os aportes teóricos da sociologia histórica desenvolvida por Waldo Ansaldi e Verónica Giordano, de modo que a expressão adota a perspectiva de um conceito em construção, mas que guarda forte identidade com os processos colonizatórios vinculados à Espanha e à Portugal abarcando México, América Central, quase todos os países da América do Sul e alguns países do Caribe, configurando-se na seguinte listagem: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, El Salvador, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela (ANSALDI, GIORDANO, 2012, p. 59).

3O mito da democracia racial é o debate utilizado para enfrentar a ideia de harmonia entre as raças na América Latina e explicar as desigualdades raciais em toda a região. Gilberto Freyre é reconhecidamente o teórico “[...] que echó raíces en el pensamiento social y jurídico latinoamericano” (RODRÍGUEZ GARAVITO; BAQUERO DÍAZ, 2012, p. 65). Sobre o tema no Brasil, ver: Oracy Nogueira, Peter Fry, Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, Carlos Hasenbalg, Laura Moutinho, Lilia Schwarcz e Jessé Souza. Na América Latina: Alejandro Lipschutz, César Rodríguez Garavito, Carlos Andrés Barreros Días e Tanya Hernández.

4Outros autores discutem as variações das compreensões de raça vigentes no Brasil, como Lilia Schwarcz (1993), Abdias Nascimento (2017) e Jessé Souza (2017). Como este estudo não trata especificamente do caso brasileiro, optamos por apresentar apenas a análise de Moutinho (2004) para ilustrar como as compreensões sobre o mito de origem da nação não são uniformes.

5Os 11 países que legislaram depois de 2000 foram Bolívia (Lei 045/2010), Chile (Lei 20.609/2012), Colômbia (Lei 1482/2011), Equador (Código Orgânico Integral Penal – 2014), Guatemala (Decreto 57/2002), Honduras (Decreto 23/2013), México (Código Penal Federal com alterações em 2013 e 2014), Nicarágua (Lei 641/2007), Panamá (Lei 14/2007), Peru (Lei 28867/2006) e Venezuela (Lei orgânica contra a discriminação racial – 2011). Nas décadas de 1980 e 1990, temos: Argentina (Lei 11179/1984 e Lei 23.592/1988), Brasil (Lei 7716/1989 e Lei 9459/1997) e Cuba (Lei 62/1987). Antes desse período, temos: Costa Rica (Lei 4573/1970), El Salvador (Decreto Legislativo 270/1973) e Uruguai (Lei 9155/1933 e Decreto-lei 10.279/1942). Com exceção de Cuba e Venezuela que legislaram a matéria em textos específicos, as legislações dos demais países operaram alterações nos Códigos Penais dos Estados, de modo a incluir alguma tipificação antidiscriminatória. Além de alterar seus códigos penais, Argentina, Brasil e Bolívia também fizeram legislações específicas sobre o combate ao racismo.

6A análise que Rodríguez Garavito e Baquero Díaz fazem do que chamam de “fuga para o direito penal” em toda a América Latina é que esta está fundamentada em uma reinterpretação liberal-integracionista que se tornou possível devido à conjuntura de redemocratização da região, mas que jamais conseguiu alcançar a profundidade das demandas sociais estruturantes que existiam nas sociedades latino-americanas (2015, p. 67).

7Rodríguez Garavito e Baquero Díaz (2015) realizam uma análise detalhada sobre a (in)efetividade das leis que penalizam o racismo na América Latina. Neste estudo, os autores concluem pela ineficácia instrumental destas legislações, motivada por fatores diversos, relacionados à conjuntura político-social de cada Estado.

8A respeito da postura dos Tribunais brasileiros sobre as ações penais por crime de racismo no Brasil, ver Gonçalves e Moraes (2017) e Santos (2013).

9No informe sobre a situação das pessoas afrodescendentes nas Américas, de 2011, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos pontua que um dos fatores que dificultam a análise da discriminação por raça nas Américas é a falta de dados estatísticos oficiais produzidos pelos Estados.

 

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Sobre as autoras

Roberta Camineiro Baggio Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora Associada da Graduação e do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora Coordenadora do grupo de pesquisa “Constitucionalismo na América Latina: paradigmas, práticas jurídicas e novos sujeitos de direito a partir da segunda metade do século XX”. E-mail roberta.baggio@ufrgs.br.

Alice Hertzog Resadori Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestra em Direito, com ênfase em Direitos Humanos, pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter), membro do grupo de pesquisa “Constitucionalismo na América Latina: paradigmas, práticas jurídicas e novos sujeitos de direito a partir da segunda metade do século XX”. Bolsista CAPES de Doutorado. E-mail ali.resadori@gmail.com.

Vanessa Chiari Gonçalves Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora Adjunta de direito penal e criminologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Direito. Pesquisadora líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Penal e Criminologia da UFRGS/CNPq. Bolsista CNPQ de Pós-Doutorado. E-mail vanessachiarigoncalves@gmail.com.

As autoras contribuíram igualmente para a redação do artigo.

 

Raça e Biopolítica na América Latina: os limites do direito penal no enfrentamento ao racismo estrutural. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2179-89662019000301834&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 24 out. 2019.