A PUBLICIDADE, O SEGREDO E AS FRONTEIRAS ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO NO REGIME JURÍDICO DA ATIVIDADE ECONÔMICA


Porjulianapr- Postado em 26 março 2012

Autores: 
Ricardo Antônio Lucas Camargo

A PUBLICIDADE, O SEGREDO E AS FRONTEIRAS ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO NO REGIME JURÍDICO DA ATIVIDADE ECONÔMICA

 

Ricardo Antônio Lucas Camargo
Doutor em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais
Membro da Fundação Brasileira de Direito Econômico

 

 

 

Determinadas atividades, em nome do próprio funcionamento da economia concorrencial, foram tradicionalmente reservadas ao Estado, como é o caso das comunicações, pois se estas fossem parar às mãos dos agentes do mercado, não deixariam de ser conduzidas de modo a solapar os concorrentes, impedindo-se a pronta movimentação de capitais ou interceptando-se informações vitais para a conclusão dos negócios. HAYEK [Direito, legislação e liberdade – 3 – a ordem política de um povo livre. Trad. Henry Maksoud. São Paulo: Visão, 1985, p. 61], a propósito, põe a nu a possibilidade de o empresário passar a dominar todos os consumidores quando combate o monopólio estatal dos correios ao argumento de que sua razão de ser estaria no desejo do Governo controlar as comunicações dos cidadãos. Para ele, portanto – seja-nos lícito concluir –, é melhor que o poder econômico privado tenha o controle sobre as trocas de informações entre os cidadãos e também sobre os segredos de Estado. Quanto ao papel do segredo como instrumento de poder, é interessante trazer aqui um exemplo colhido ao cinema - abstração feita de méritos ou deméritos estéticos da película em si mesma -, a saber, Monty Python em busca do Cálice Sagrado (Monty Python and the Holy Grail – Dir. Terry Gilliam et allii, Inglaterra - 1975): o Rei Artur e Sir Bedivere seguem pela floresta e encontram um dos "cavaleiros que diziam 'Ni!'". Paralisados os dois diante do grito estridente - "Ni!" - que o gigantesco antagonista solta, este se identifica como integrante desta ordem, guardiã dos segredos das palavras sagradas "Ni Peng" e "Ni Wom". Impõe-lhes, então, para que possam prosseguir, uma prova: a obtenção de uma moita. Seguem pela cidade mais próxima para adquirirem o bem desejado pelo antagonista, mas todas as pessoas a quem se dirigem, negam-no. Até que, perdendo a paciência, o rei diz a uma senhora que se recusa a auxilia-los que, se não lhes for providenciada uma moita, ele lhe dirá "Ni!". Ante o terror da senhora ao ouvir a palavra assustadora, chega um moiteiro, que reprova o rei e o cavaleiro por dizerem "Ni!" a uma senhora, mas lhes vende a almejada moita. Em seguida, levando a moita ao cavaleiro da floresta, recebem deste uma outra missão: obter outra moita para estabelecerem os marcos entre os quais deverão cortar a mais grossa árvore da floresta com um arenque. Recusando-se a fazê-lo, o Rei descobre, por sorte, que os cavaleiros que diziam "Ni!" - e agora haviam passado a dizer "Eki-eki-eki-eki-ta-paaang!" - não podiam ouvir a palavra "É" ("Is"). Os cavaleiros que diziam "Ni!" – palavra jogada de surpresa, sem qualquer significado aparente e, por isto mesmo, desafiando o entendimento e desarmando os que são por ela alvejados – fazem recordar as ordens secretas da cavalaria, que guardavam determinados ensinamentos, que não revelavam aos profanos, e, em função mesmo do Mistério, tornavam-se fonte do medo. Dentre estas ordens, destacaram-se os Templários, os Cavaleiros de Malta, a Ordem de Aviz, a Ordem de Mariz e a Ordem dos CavaleirosTeutônicos, esta, a serviço da Liga Hanseática [http://www.tpk.fi/eng/institution/history_of_knighthood.html, acessado em 2 de setembro de 2002; http://www.kwtelecom.com/chivalry/britords.html, acessado em 8 de junho de 2002]. Para que se não diga que isto era um dos índices do obscurantismo medieval, observe-se o que diz MICHEL FOUCAULT [As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p.. 104] a respeito do saber durante a Idade Moderna: "mesmo quando era destinado à publicação, o saber do Renascimento se dispunha segundo um espaço cerrado. A 'Academia' era um círculo fechado, que projetava na superfície das configurações sociais a forma essencialmente secreta do saber. É que esse saber tinha por tarefa primeira fazer falar siglas mudas: visava reconhecer-lhes as formas, interpretá-las, retranscrevê-las em outros traços que, por sua vez, deviam ser decifrados; de tal sorte que nem mesmo a descoberta do segredo escapava a essa ardilosa disposição que a tornava a um tempo tão difícil e tão preciosa. Na Idade Clássica, conhecer e saber se imbricam na mesma trama: para o saber e para a linguagem, trata-se de uma ordem necessária e visível. Quando era enunciado, o saber do século XVI era um segredo, mas partilhado. Quando é oculto, o dos séculos XVII e XVIII é um discurso por sobre o qual se colocou um véu. É que é próprio à mais originária natureza do saber entrar no sistema das comunicações verbais e à da linguagem ser conhecimento desde a primeira palavra. Falar, esclarecer e saber são, no sentido estrito do termo, da mesma ordem".. A rejeição do oculto, hoje, em todos os planos, encontra ligação com um dos postulados do Estado de Direito formulados pelos iluministas [NASCIMENTO, Carlos Valder. Arts. 1º a 17. in: NASCIMENTO, Carlos Valder & MARTINS, Ives Gandra da Silva [org.]. Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 22-23], e que se encontra assim enunciado por MÁRIO LÚCIO QUINTÃO SOARES [Teoria do Estado. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 544], como sendo essencial à caracterização de um regime como democrático, por facilitar a participação do súdito no exercício do poder: "a administração pública necessária exige maior transparência dos atos praticados. A publicidade de seus mecanismos internos de tomada de decisões, das opções consideradas, dos efeitos previstos e das justificativas para certos procedimentos permite a real fluidez do jogo democrático". É neste sentido que se entende por que o artigo 336 versa o crime de inutilização do edital, voltando-se, justamente, à tutela do princípio da publicidade, como observam Antônio Pagliaro & Paulo José da Costa Júnior: “o presente delito é, substancialmente, uma forma de dano, prevista de maneira autônoma, porque o objeto inutilizado é um edital, ou seja, um manifesto que, afixado em local público ou aberto ao público, exprime um conteúdo de pensamento e vontade, o qual, por ordem de um funcionário público, deve ser levado ao conhecimento público. Aquele que tornar ilegível o manifesto dificultará a compreensão da obra administrativa, podendo impossibilitar aos cidadãos a execução da vontade pública nele expressa” [Dos crimes contra a administração pública. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 245]. Isto não quer dizer, por óbvio, que não se admita jamais o segredo no âmbito da coisa pública no contexto do Estado de Direito. No caso do júri, por exemplo, ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO recorda que “tanto a quebra da incomunicabilidade como a do sigilo da votação constituem violação de formalidades que desnaturam o próprio julgamento popular, retirando-lhe aquilo que lhe é mais essencial: a liberdade e a independência na formação da vontade decisória do cidadão chamado a exercer excepcionalmente a função jurisdicional” (Júri. Nulidades.Quebrada incomunicabilidade dos jurados e formulação de quesito sobre “insuficiência de provas”. Caso “Eldorado dos Carajás”. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, v. 8, n. 30, p. 238, abr/jun 2000). Também assim no que tange ao segredo das propostas nas licitações, voltado a evitar o estabelecimento de predefinições dos resultados quanto á contratação da oferta de bens e serviços pelo particular à Administração Pública, ao segredo do gabarito das provas de concurso, ao próprio segredo do voto em eleições. FRANCISCO BILAC PINTO FILHO traz à tona outro exemplo interessante de compatibilização do segredo com o Estado Democrático de Direito: “o Estado deve guardar segredos até mesmo de particulares, quando as informações que ele (Estado) detiver puderem causar malefícios à esfera individual de seus cidadãos” (O segredo de Estado e as limitações no habeas data. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 99, n. 366,p. 106m mar/abr 2003). Mas, como regra, vale o que asserido por M. MADELEINE HUTYRA DE PAULA LIMA: “o problema da corrupção e a luta contra ela envolvem relações de poder. Implicando o sigilo entremeando o poder decisório, visando a formulação de políticas públicas e a manipulação de verbas públicas, realizado no interior de gabinetes e afastado do controle pela Comunidade, que foi quem colocou os recursos financeiros nas mãos do poder. […] A única forma de reduzir o grau de corrupção é a atuação mais concreta da participação popular, que, por sua vez, exige uma prévia educação para a cidadania” (Corrupção: obstáculo à implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, v. 8, n. 33, p. 202, out/dez 2000). LUÍS HENRIQUE MARTINS DOS ANJOS & WALTER JONE DOS ANJOS observam que “esse controle em nível popular tradicionalmente foi exercido de maneira ocasional e às vezes até inusitada. Na maioria das vezes restringiu-se a ações populares de iniciativa inspirada por agentes políticos. Todavia, registra notável evolução, em razão do formidável avanço permitido pela Constituição de 1988, haja vista a inclusão de novos mecanismos para que o cidadão participe cada vez mais, eficazmente, do controle da coisa pública em geral como corolário do Estado Democrático de Direito. Assim, passamos a ter autorizadas por nossa Constituição novas experiências de gestão da res publica, sobretudo com o chamado orçamento participativo, que na verdade não se restringe apenas à questão de maior transparência e controle direto da população sobre a elaboração da peça orçamentária, inclundo-se aí a participação direta da cidadania, de modo voluntário, nas Conferências e Conselhos setoriais e regionais que traçam as diretrizes a serem seguidas pelo Governo em cada pasta, bem como através de comissões de fiscalização da execução de obras e serviços públicos” (Manual de Direito Administrativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 366-367). Longe vão, pois, os tempos em que, para justificar a não adoção do recall entre nós, dizia ANACLETO DE OLIVEIRA FARIA:“falece ao povo capacidade para, com isenção de ânimo e pleno conhecimento de causa (tal como acontece, ou deve acontecer, com o juiz togado), analisar as circunstâncias caracterizadoras do delito” (Do princípio da igualdade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 126). Não estamos, aqui, é bom advertir, a tomar posição acerca da viabilidade ou não da adoção deste instituto utilizado em alguns Estados dos EUA, mas sim a referir que o fundamento erguido por ANACLETO DE OLIVEIRA FARIA tinha sua força de convencimento aos tempos do regime militar, quando a titularidade do Executivo não era galgada pelo voto direto, mas sim pela escolha feita pelo Colégio Eleitoral. PAULINO JACQUES assim justificava a adoção da eleição indireta nos Atos Institucionais: “medidas salutares diante da baixa educação política do eleitorado brasileiro e da facilidade com que se deixa conduzir pelos demagogos” (Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 115). ROSAH RUSSOMANO, por seu turno, identificava em termos parecidos a alegada ratio legis: “sobretudonos países com baixo índice de politização, a eleição indireta apresenta aspectos deveras positivos, porque os que, por essa via, vão escolher o magistrado supremo da nação, apresentam, em geral, mais condições para fazê-lo do que o povo, considerado em seu conjunto. Permanecem, por outro lado, mais isentos, no sentido de que são menos tocados pela propaganda e pelos processos de popularidade, que chegam a emprestar um toque carismático a determinados candidatos” (Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 158). Válida que fosse tal premissa, ter-se-ia de concluir pela extinção do próprio júri, uma vez que neste quem julga é a própria população, e em caráter soberano. E é de se observar que tal argumento se mostrava antagônico, neste sentido, à tradição constitucional do Brasil, como salienta ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO: “ao longo de todas as épocas de nossa história constitucional, ressalta a evidente preocupação em assegurar um verdadeiro modelo de julgamento popular, cujos contornos fundamentais são inseparáveis da própria noção de Tribunal do Júri” (op. cit. p. 237). Quer dizer: publiciza-se na medida da conveniência da ampliação da participação no exercício do poder sobre determinada situação, oculta-se ou privatiza-se na medida da conveniência da redução do número de pessoas com poderes sobre determinada situação. Não se diga, outrossim, que somente os segredos dos homens de bem mereceriam tutela. Convém ter em mente, para que não haja dúvidas quanto a ser irrelevante a presença ou ausência de reprovabilidade na conduta de quem é o titular do direito ao segredo, como salienta EDGAR MAGALHÃES NORONHA [Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1972, v. 2, p. 194]: “o segredo pode ter por objeto fato ilícito ou imoral, pois o fim da lei é assegurar ao indivíduo as condições necessárias para que sua vontade atue livremente, sem o receio da indiscrição de outrem”. De outra visada, um dos principais institutos do Direito liberal se veria seguramente nulificado: o sigilo industrial e profissional [SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 190]. A vida empresarial tem como um dos seus elementos essenciais, mesmo quando lícita, o segredo. A contabilidade da empresa, em que pese franqueada a todos os que contribuem com o seu patrimônio para sua constituição e manutenção, em relação a terceiros remanesce sigilosa. Diversamente do que ocorre com a contabilidade pública, em que o acesso de qualquer pessoa é a regra – a ponto de GILMAR FERREIRA MENDES [Da transparência, controle e fiscalização. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do & MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à lei de responsabilidade fiscal. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 339; BULOS, Uadi Lammego. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 2003,p. 630], comentando o artigo 48 da Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, dizer que “ao menos no que tange ao novo regime de responsabilidade fiscal, a publicização de todos os documentos preconizados pela lei através da Internet somente fortalece e legitima o Estado, tornando as decisões governamentais cada vez mais próximas dos cidadãos” -, a contabilidade da empresa somente pode ter o seu sigilo quebrado em caráter excepcional. O profissional que fora destas hipóteses revele os segredos concernentes à vida contábil da empresa incidirá no crime previsto no artigo 154 do Código Penal. RUBENS REQUIÃO [Curso de Direito Comercial.São Paulo: Saraiva, 1986, v. 1, p. 135], acerca dos registros contábeis, observa que “os livros comerciais são a consciência dos comerciantes. A comissão redatora do Código Napoleônico de 1807. a propósito, declarava: ‘a consciência do comerciante está escrita nos seus livros; neles é que o comerciante registra todas as suas ações; são para ele uma espécie de garantia. É pelos livros que ele conhece o resultado de seus trabalhos, quando recorre à autoridade do magistrado, é à sua consciência que se dirige, é a seus livros que se reporta’”. O saudoso JOÃO EUNÁPIO BORGES [Curso de Direito Comercial terrestre. Rio de Janeiro: Forense, 1969, p. 243], por seu turno, mais aclara a razão do sigilo: “a situação econômico-financeira do estabelecimento, a qualidade dos clientes, o estado de suas contas, seus métodos de trabalho, as possíveis dificuldades que atravessa, são coisas que terceiros não devem saber. Simples suspeitas costumam abalar irremediavelmente o crédito de um estabelecimento”. Consoante JOSÉ HENRIQUE PIERANGELLI [Estudos jurídico-penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 431]: “também nos negócios ocorrem rivalidades, tal como acontece em todas as atividades, e neles apresentam-se dados confidenciais que são usados pelos competidores. São as chamadas armas, segredos que possuem os contendores, os quais, se revelados, podem causar sérios prejuízos ao usuário legítimo, e benefícios indevidos aos concorrentes”. O sigilo dos livros mercantis estava previsto no artigo 17 do Código Comercial de 1850 e hoje está albergado no artigo 1.190 do Código Civil de 2002. O objeto dos contratos de know-how sempre é o segredo tecnológico: sem o segredo, não há exclusividade no conhecimento transmitido que justifique o pagamento de royalties. FRAN MARTINS [Contratos e obrigações mercantis. Rio de Janeiro: Forense, 1986,p. 583] trata especificamente do tema: “por segredo entende-se o fato de não ser o know-how do conhecimento de terceiros, pertencendo apenas a uma pessoa”. PONTES DE MIRANDA [Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1956, t. 16, p. 449], a este respeito, doutrina: “se há meio ou processo de fabricação ou indústria, que alguém conhece em segredo, há segredo de fábrica ou de indústria. Dois direitos da personalidade estão em causa: o direito autoral de personalidade, pois que alguém descobriu ou inventou, e o direito de velar a intimidade. O direito de exploração existe, mas o segredo funciona como impeditivo do exercício do direito formativo gerador (direito à patente), que implica a divulgação do segredo”. O know-how traduz direito de propriedade industrial, cuja diferença em relação ao direito autoral é bem posta por ARNALDO RIZZARDO [Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Aide, 1991, v. 2, p. 839]: “a obra artística produz efeitos no mundo interior do homem, no mundo da percepção. A invenção industrial atua no mundo físico, aumentando o poder do homem pelo emprego da invenção, em termos de maior força, mais rapidez ou invenção”. Recorda WASHINGTON PELUSO ALBINO DE SOUZA [Primeiras linhas de Direito Econômico. 4ª ed. São Paulo: LTr, 1999,p. 493] que “não pode ficar sem registro a chamada ‘espionagem’ científica e industrial exercida, especialmente pelos países desenvolvidos, alegando-se ser este um dos caminhos seguidos pelo Japão para atingir o grau de desenvolvimento que conseguiu atingir”.Aliás, tal modalidade de espionagem está definida como crime de concorrência desleal no artigo 195, XI e XII, da Lei 9.279, de 1996. A divulgação, exploração, utilização de conhecimentos, informações ou dados confidenciais que sejam empregáveis na atividade industrial, comercial ou na prestação de serviços, tenha-os acessado licitamente (hipótese do inciso XI) ou mediante fraude (hipótese do inciso XII) demonstra o caráter essencial do segredo parao desenvolvimento das atividades da empresa no campo de batalha mercadológico. Observe-se que o conhecimento técnico, em si mesmo, permanece sigiloso, mas não o contrato respectivo, pois, como recorda ALFREDO DE ASSIS GONÇALVES NETO [Direito Comercial – apontamentos. Curitiba: Juruá, 1998,p. 227], olhos postos no artigo 211 da Lei 9.279, de 1996, “a averbação desses contratos, além de exigida para produzir efeitos contra terceiros, é indispensável para permitir a remessa de royalties ao exterior e, quando for o caso, autorizar a dedução dos respectivos pagamentos do imposto de renda”. E a razão para a publicidade do contrato em si mesmo tem sua razão de ser justamente na condição de vantagem competitiva - isto é, na condição de maior poder econômico – gerada pelo segredo, como é cediço em autores insuspeitos [WALD, Arnoldo. Curso de Direito Civil – obrigações e contratos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 365; SILVEIRA, João Marcos. A proteção jurídica dos segredos industriais e de negócio. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, v. 40, n. 121, p. 152, jan/mar 2001]. Este singelo exemplo é já suficiente para demonstrar não só a necessidade de se revisar a própria adequação dos conceitos empregados para a identificação dos caracteres diferenciais entre o Direito Público e o Direito Privado como também que a privatização dos serviços públicos de maneira alguma pode ser confundida com uma política econômica voltada a fortalecer a concorrência ou mesmo a um processo de democratização. Mesmo que não se entre – como, de resto, sempre nos hemos abstido de entrar – no mérito das vantagens ou desvantagens de se entregar à iniciativa privada a prestação de serviços públicos, é mister deixar bem claro que isto não corresponde, necessariamente, a um avanço em termos de participação da coletividade nos frutos do trabalho desenvolvido por cada um dos seus integrantes, podendo, antes, agravar o caráter de exclusão [MOLL, Luíza Helena Malta. Externalidades e apropriação: projeções do Direito Econômico na nova ordem econômica mundial. In: CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas [org.]. Desenvolvimento econômico e intervenção do Estado na ordem constitucional – estudos jurídicos em homenagem ao Professor Washington Peluso Albino de Souza. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1995, p. 145-146]. Não corresponde, necessariamente, a um avanço na tutela dos direitos fundamentais, podendo, antes, contribuir para aperfeiçoar as formas de violação. De acordo com M. MADELEINE HUTYRA DE PAULA LIMA, “a mentalidade de acumulação privada e a mobilidade dos capitais deixam de ser controladas pelo Estado-nação, cujos Poderes Legislativo, Executivo, e o aparato judicial, em que se insere o Ministério Público, ficam funcionalmente esvaziados ou relativizados, dificultando a efetivação dos direitos humanos, aparentando uma regressão nesses direitos” (op. cit. p. 186). Ou seja: a instância máxima de poder, deixando de ser o Estado, conduz a efetivação dos direitos humanos ao aleatório da boa vontade de quem detenha a posição de poder, que se converte em árbitro da atribuição do status humanitatis a quem quer que seja. Por isto que não é de estranhar que na obra de um dos maiores juristas liberais do Império, o VISCONDE DE URUGUAI, se encontre o seguinte asserto: “para que haja ordem e garantias para o cidadão, é indispensável que a legislação regulamentar decomponha o Poder Executivo, separe, classifique e explique suas atribuições, e regule conscientemente o exercício de cada uma das administrativas” (Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1862, t. 1, p. 75, nota 1). Por outra banda, a propalada economia que se fará na folha de pagamentos por vezes poderá implicar aumento da despesa pública em termos de remunerações de concessionários e permissionários. De acordo com LUIZ VICENTE DE VARGAS PINTO, com atenção a compromissos internacionais de alteração da Constituição de 1988, coligidos em seu livro, “a devastação dos ordenamentos jurídicos nacionais pode ser explicada a partir dos ‘programas de apoio financeiro’ patrocinados pelo Fundo Monetário Internacional (em parcerias ou em operações casadas com o Banco de Compensações Internacionais, ou, em inglês, Bank of International Settlements – BIS, mais o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento, ou Banco Mundial, e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, ou BID), através dos quais os países de Terceiro Mundo vêm sendo obrigados ao aniquilamento de suas indústrias estratégicas e dos seus sistemas financeiros (principalmente através da venda do controle acionário), combinado com a drástica redução de seus serviços públicos e a extinção de toda legislação de cunho social para, assim, redirecionarem os recursos financeiros em pagamentos milionários aos grandes capitais especulativos internacionais” (Constituição Federal comentada e anotada. Porto Alegre: LVVP/Escola Superior de Geopolítica D. João VI, 2001, p. 11). Tampouco será correspondente, necessariamente, a retrocessos nos campos a que estamos nos referindo. Só estamos dizendo que, neste assunto, não foi dada a última palavra, e que qualquer tentativa de se localizar um sinal dos tempos, com a vitória das “forças do Bem”, representadas pelo Egoísmo desenfreado, sobre as “forças do Mal”, representadas pelo Coletivismo e pelo Estatismo, será muito mais uma profissão de fé do que, propriamente, uma constatação com base em dados objetivos. Não deixa de ser significativo que um pensador sabidamente avesso ao marxismo rejeite francamente a tese do fim das ideologias:

 

Somente o futuro dirá do acerto ou das vantagens dessa tese de cunho neoliberal, especialmente ante a urgência de pagar a dívida social que nos atormenta, acumulada em razão de desesperadoras desigualdades individuais e regionais.

 

O essencial é que nos capacitemos de algumas diretrizes que parecem assinalar a rota político-jurídica da terceira fase do Direito moderno, a primeira das quais é representada pela reciclagem das ideologias, senão pelo seu total superamento, o que me parece difícil, visto que o homem não pode viver sem um “horizonte ideológico” [REALE, Miguel. Nova fase do Direito moderno. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 116].