Princípio da insignificância: minimalismo ou seletividade penal?


Porwilliammoura- Postado em 03 junho 2013

Autores: 
ENCARNAÇÃO, Frederico Cesar Leão

A adoção de critérios relativos à pessoa do agente para a incidência (ou não) do princípio da insignificância significa retroceder ao Direito Penal do Autor em detrimento ao Direito Penal do Fato.

INTRODUÇÃO

O Estado Democrático de Direito pressupõe a existência de uma Constituição que vise promover a justiça social, sempre em observância aos princípios da legalidade, da igualdade e da segurança jurídica.

Dentro desse contexto, o princípio da insignificância, apesar de não estar previsto expressamente no ordenamento jurídico pátrio, é apontado como princípio implícito da Carta Magna de 1988, uma vez que se amolda aos fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil, bem como à estrutura garantista do Direito Penal.

O referido princípio serve como limitador da esfera de alcance da tipicidade legal, pois torna o fato atípico, malgrado a ocorrência de lesão a bem jurídico protegido, sendo, desse modo, considerado um dos norteadores do chamado Minimalismo Penal.

Questiona-se: o princípio da insignificância é, de fato, um meio de propiciar o Minimalismo Penal ou mais uma forma de seletividade do Direito Penal?

O indigitado princípio deveria ser um meio de interpretação restritiva do tipo penal incriminador, que proporcionasse o Minimalismo Penal, a partir da seleção de condutas que efetivamente necessitam de punição.

Constatar-se-á, no entanto, que o princípio da insignificância, embora apresentado pelos aplicadores do Direito com um discurso garantista, é, na verdade, mais um instrumento, dentro do sistema penal, para garantir e legitimar a seleção de pessoas, principalmente, pelo nível econômico e cultural que apresentam.

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça afirmam que são requisitos necessários para a aplicação da insignificância: mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, grau reduzido de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada. Chegam à incoerência de assegurar que os referidos requisitos são de natureza objetiva.

Afora total subjetividade contida nos vetores cunhados pelos Tribunais, tem-se examinado o princípio da insignificância à luz das condições pessoais do agente, afastando-se a sua aplicação nos casos de reincidência e maus antecedentes.

A adoção de critérios subjetivos e relativos à pessoa do agente para a incidência (ou não) do princípio da insignificância significa distorcer toda a Teoria do Crime, bem como retroceder ao Direito Penal do Autor em detrimento ao Direito Penal do Fato.

Estudar o tema sob a perspectiva que será proposta, além de possibilitar maior conhecimento, permite o surgimento de um maior potencial crítico a respeito do assunto.  Ademais, contribuirá, em última análise, para a celeridade na prestação jurisdicional, na medida em que poderá diminuir a sobrecarga de processos criminais.

O método empregado para a coleta dos dados abrangeu a realização de pesquisas bibliográficas de penalistas clássicos e contemporâneos. Além de pesquisas às jurisprudências dos Tribunais Superiores, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais Estaduais.

Estrutura-se o presente estudo em três capítulos para melhor compreensão do tema. Destina-se o primeiro a abordar a origem do princípio da insignificância, apontando divergências doutrinárias. No segundo capítulo, discorre-se sobre o conceito e a natureza jurídica do princípio em análise. Por último, faz-se uma análise crítica acerca dos requisitos adotados para a sua aplicação.


1 ORIGEM DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

O princípio da insignificância, segundo Mauricio Antonio Ribeiro Lopes,[1] surgiu com a caótica situação econômica e social que passava a Europa a partir da Primeira Guerra Mundial, o que proporcionou um aumento das práticas de pequenos crimes contra o patrimônio, daí a denominação de “criminalidade de bagatela” ou, para os alemães, “Bagatelledelikte”.

Há resquícios dele na passagem de Franz von Liszt ao aduzir, em 1903, que: [2]

“A nossa legislação faz da pena, como meio de luta, um emprego excessivo. Se deveria refletir se não mereceria ser restaurado o antigo princípio mínima non curat praetor, ou como regra de direito processual (superamento do princípio da legalidade), ou como norma de direito substancial (isenção de pena pela insignificância)”.

Para Diomar Ackel Filho,[3] a seu turno, o princípio surgiu anteriormente ao primeiro conflito bélico mundial, pois no Direito Romano já vigorava o princípio da insignificância, consubstanciado na ideia de que o pretor, de maneira geral, não cuidava de causas ou delitos de bagatela.

Menciona-se, outrossim, que o artigo 7º do Código Penal soviético de 1960 previa “não ser delito a ação ou a omissão que, embora revestindo formalmente as características de um fato previsto na parte especial do Código, não oferece perigo social, dada a sua escassa significação”.[4]

Não obstante o dissenso na doutrina acerca de suas origens, sustenta-se que a partir do brocardo latino minima non curat praetor, Claus Roxin, primeiramente no ano de 1964, e posteriormente em sua obra Política Criminal y Sistema del Derecho Penal em 1972, introduziu o princípio da insignificância no sistema penal.[5]

Atribui-se, portanto, a formulação do princípio da insignificância, nos moldes em que hoje é compreendido, à Claus Roxin.


2 CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

Apesar de não estar previsto expressamente no ordenamento jurídico brasileiro, “o princípio da insignificância surge como recurso teleológico para integração semântica e política do Direito Penal”.[6]

Como bem explicitado por Carlos Vico Mañas:[7]

“Ao realizar o trabalho de redação do tipo penal, o legislador apenas tem em mente os prejuízos relevantes que o comportamento incriminado possa causar à ordem jurídica e social. Todavia, não dispõe de meios para evitar que também sejam alcançados os casos leves. O princípio da insignificância surge justamente para evitar situações dessa espécie, atuando como um instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, com significado sistemático político-criminal da expressão da regra constitucional do nullum crimen sine lege, que nada mais faz do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal”.

O indigitado princípio é considerado pela doutrina como uma “importante construção dogmática, com base em conclusões de ordem político-criminal, que procura solucionar situações de injustiça provenientes da falta de relação entre a conduta reprovada e a pena aplicável”.[8]

Nesse sentido, Rogério Greco[9] preleciona:

“[...] o princípio da insignificância serve como instrumento de interpretação, a fim de que o exegeta leve a efeito uma correta ilação do tipo penal, dele retirando, de acordo com a visão minimalista, bens que, analisados no plano concreto, são considerados de importância inferior àquela exigida pelo tipo penal quando da sua proteção em abstrato”.

Partindo-se do conceito analítico de crime, assim considerado como um fato típico, antijurídico e culpável para a doutrina majoritária, e da noção de que a tipicidade, a conduta, o resultado e o nexo causal, formam o fato típico, excluído qualquer desses elementos não se há de falar em crime.

Em que pese o entendimento minoritário[10] no sentido de que o princípio da insignificância exclui a antijuridicidade da conduta, a posição amplamente dominante trata o princípio como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, isto é, ao ser levado em consideração no caso concreto, excluir-se-á a tipicidade.

Tipicidade “é a adequação de um fato cometido à descrição que dele se faz na lei penal”, conforme ensina Francisco Muñoz Conde.[11]

Cezar Roberto Bitencourt[12] complementa:

“A tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. Segundo esse princípio, que Klaus Tiedemann chamou de princípio da bagatela, é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado.”

Desse modo, no Estado Democrático de Direito, e segundo a ideia de que o Direito Penal deva ser concebido como a ultima ratio do sistema, não se pode idealizar que a mera adequação formal da conduta ao tipo – tipicidade formal – seja suficiente à responsabilização penal do indivíduo. Como esclarece Israel Domingos Jorio, “algumas ofensas, muito embora hajam atingido bens altamente valiosos, o fazem de maneira mínima, verdadeiramente microscópica, insignificante”.[13] (grifos do autor)

Indispensável, destarte, além de a conduta do agente ajustar-se, de maneira precisa, àquela abstratamente definida na lei penal, a presença da tipicidade conglobante, consubstanciada na conjugação da antinormatividade com a tipicidade material. É na vertente material da tipicidade que se assenta a análise do princípio da insignificância.

Nesse passo, uma conduta será materialmente típica quando, na prática, seriamente ofender bem juridicamente tutelado e constitucionalmente relevante. Do contrário, em caso de ofensa mínima ao bem jurídico, não há se falar em tipicidade material e, por conseguinte, não há crime, uma vez que ausente o seu elemento tipicidade penal.

Vale citar os ensinamentos de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes:[14]

“O juízo de tipicidade, para que tenha efetiva significância e não atinja fatos que devam ser estranhos ao Direito Penal, por sua aceitação pela sociedade ou dano social irrelevante, deve entender o tipo, na sua concepção material, como algo dotado de conteúdo valorativo, e não apenas sob seu aspecto formal, de cunho eminentemente diretivo.

Para dar validade sistemática à irrefutável conclusão político-criminal de que o Direito Penal só deve intervir até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico, não se ocupando de bagatelas, é preciso considerar materialmente atípicas as condutas lesivas de inequívoca insignificância para a vida em sociedade”.

O princípio da insignificância, por derradeiro, serve como limitador da esfera de alcance da tipicidade legal, pois torna o fato atípico, malgrado a ocorrência de lesão a bem jurídico protegido, sendo de aplicação obrigatória pelo intérprete da norma.


3 O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA COMO INSTRUMENTO DE SELEÇÃO DE PESSOAS

Inicia-se este ponto do estudo com uma indagação: o princípio da insignificância tem, de fato, sido aplicado pelos operadores do Direito como um meio de proporcionar a mínima intervenção penal com a seleção de comportamentos, ou como forma de seleção de pessoas merecedoras de reprimenda? 

Basta uma consulta a qualquer acervo jurisprudencial dos Tribunais para se constatar que o princípio da insignificância, embora apresentado com uma roupagem garantista, não passa de mais um mecanismo de seleção de pessoas e não de ações dignas de punição.

O Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento no sentido de que os delitos que importem em débito fazendário de até R$ 10.000,00 (dez mil reais) – valor mínimo legalmente estabelecido para a execução fiscal – devem ser tratados à luz do princípio da insignificância, excluindo-se a tipicidade material da conduta, por conta do disposto no artigo 20 da Lei 10.522/2002, com a redação dada pela Lei 11.033/2004.

O referido dispositivo “materializa a consideração de que os custos necessários para a cobrança judicial são maiores do que eventual benefício advindo com o êxito da ação”.[15]

Luiz Flavio Gomes conclui, acerca da temática, que “se esse valor é insignificante para o fim de ajuizamento da execução fiscal (se o ente público entende que não vale a pena executar qualquer débito até esse patamar de R$ 10.000,00), com muito mais razão é irrelevante para fins penais”.[16]

Idêntica é a conclusão a que chega Guilherme de Souza Nucci:[17]

“Ora, se a União abre mão de receber valores inferiores ao referido montante, torna-se injustificável acionar o Estado-juiz, na esfera penal, para eventual aplicação de sanções muito mais severas. A ilogicidade é nítida e afasta qualquer legitimação punitiva estatal.

Em suma, quando valores não forem considerados significantes para qualquer espécie de cobrança, mormente na área fiscal, devem ser visualizados como insignificantes pelo Direito Penal”.

No mesmo sentido, Paulo Queiroz:[18]

“Efetivamente, tendo a União renunciado à execução forçada do crédito, por entender que os custos daí resultantes não justificam a mobilização do Judiciário, sentido algum faria promover a ação penal em tais casos, em razão do caráter residual (subsidiário) do direito penal, que é um plus relativamente à intervenção civil”.

Assim, se o próprio Estado, por intermédio de seus órgãos fiscais não movimentam o Judiciário, na esfera cível, para a cobrança de valores consolidados até R$ 10.000,00 (dez mil reais), indiscutivelmente não cabe ao Estado – Ministério Público – fazê-lo, no âmbito criminal.

Com efeito, assistem razão os doutrinadores e a jurisprudência, pois o Direito Penal deve ser orientado pelo princípio da intervenção mínima ou ultima ratio. Em outras palavras, cabe ao Direito Penal atuar apenas nas hipóteses em que exista relevante e inaceitável lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido e quando os demais ramos do Direito não se mostrarem capazes de exercer suficientemente essa tutela.

Dessa forma, o que mais chama a atenção (e decepciona) não é o valor estabelecido como critério para incidência do princípio da insignificância nos delitos tributários, e sim o fato de os operadores do Direito não darem aplicação correta e necessária ao princípio, sobretudo nos delitos de natureza patrimonial.

Nesses crimes, cujos sujeitos ativos são normalmente integrantes dos estratos sociais mais baixos, o Supremo Tribunal Federal aduz que o princípio da insignificância tem aplicação quando presentes, cumulativamente, os seguintes requisitos: mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, grau reduzido de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada.

De fato, insignificância é um “conceito extremamente fluido e de incontestável amplitude”, como afirma Luiz Regis Prado.[19] Por isso, a criação desses vetores pela Suprema Corte se trata (apenas aparentemente) de tentativa nobre de garantir uma aplicação segura do princípio da insignificância, subtraindo-o da arbitrariedade.

Precisas são as críticas de Paulo Queiroz,[20] com a quais se concorda, aos quatro critérios adotados pelo Supremo Tribunal Federal para aplicação do princípio da insignificância:

“Parece-nos, porém, que tais requisitos são tautológicos. Sim, porque se mínima é a ofensa, então a ação não é socialmente perigosa; se a ofensa é mínima e a ação não perigosa, em consequência, mínima ou nenhuma é a reprovação; e, pois, inexpressiva a lesão jurídica.

Enfim, os supostos requisitos apenas repetem a mesma ideia por meio de palavras diferentes, argumento em círculo”.

A incoerência, porém, reside na afirmação, por parte do Pretório Excelso, de que se tratam de requisitos de natureza objetiva. Não se consegue aceitar que expressões como “nenhuma periculosidade social da ação” e “reduzido grau de reprovabilidade do comportamento” possam ser vistas como “condições objetivas” para a incidência de determinado instituto jurídico.

Insofismável a conclusão no sentido de que se trata de requisitos com conceitos indeterminados, com alta carga de subjetividade, que permite a atuação discricionária (e infelizmente arbitrária) do intérprete.

Sabe-se que conceitos jurídicos indeterminados são importantes para a evolução do Direito, pois dão margem de interpretação ao julgador, permitindo-se a solução de novos problemas das mais variáveis formas. Essa importância é evidente, por exemplo, no Direito Civil (com as cláusulas gerais) e no Direito Administrativo (com a discricionariedade administrativa). Entretanto, o Direito Penal não é disciplina que comporta a criação de conceitos vagos – seja pelo legislador seja pela jurisprudência –, pois se lida com a liberdade do indivíduo, motivo o bastante para se resguardar a segurança jurídica. 

Poder-se-ia conjecturar que tais requisitos não são frutos da atividade legislativa, e sim da atividade jurisdicional e que, portanto, seriam de adoção facultativa por parte do julgador. E é verdade, trata-se de criação jurisprudencial pretoriana, não vinculando as instâncias singelas.

Em incontáveis acórdãos, contudo, os operadores do Direito invocam os supracitados requisitos como se lei fossem, utilizando-os para se eximir de aplicar o princípio da insignificância nos casos de crimes que atentam contra o patrimônio privado (normalmente praticados pelas classes subalternas) e como brecha para aplica-lo em casos de ofensas ao patrimônio público (normalmente praticados pelas elites).

Para exemplificar, registre-se a Apelação Criminal 2008.34.00.038100-3/DF, julgada em 20/07/2010, pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em que se aplicou o princípio da insignificância em favor de um agente acusado de danificar a cancela instalada no estacionamento da Procuradoria da República no Distrito Federal, avaliada em R$ 560,00 (quinhentos e sessenta reais), ao insistir em ingressar no prédio com sua motocicleta.[21]

Aquele que intencionalmente provoca dano a um bem público, sem imiscuir-se no valor atribuído ao bem, no mínimo, não preenche o requisito do “reduzido grau de reprovabilidade do comportamento”. Frise-se que “a noção de reprovabilidade está diretamente relacionada com um juízo de censura projetado pela sociedade sobre a conduta, estabelecendo em relação a ela um juízo de desvalor”.[22]

Não se consegue, igualmente, aceitar que a conduta daquele empresário que promove o ingresso de mercadorias em território nacional, para a finalidade exclusiva de lucro, iludindo tributos no valor de até R$ 10.000,00 (dez mil reais), é menos ofensiva ou menos reprovável do que a conduta daquele que subtrai duas latas de azeite, totalizando a “importância” de R$ 20,00 (vinte reais). Tampouco se acredita haver na subtração das latas de azeite algum resquício de periculosidade nessa conduta, bem como existir alguma expressividade na lesão jurídica provocada.

Ainda assim, no julgamento do HC 212.729/SP, na data de 27/09/2011, supreendentemente, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, rejeitou a aplicação do princípio da insignificância em um caso em que houve a subtração de duas latas de azeite, avaliadas em R$ 20,00 (vinte reais), fazendo-se referência aos antecedentes do paciente.[23]

De igual forma, não se vislumbra fundamento constitucional para considerar criminosa a conduta do agente que subtrai 07 (sete) tubos de pastas de dente, totalizando o valor de R$ 69,44 (sessenta e nove reais e quarenta e quatro centavos), de uma farmácia de grande porte do município de Guarapari/ES, sobretudo quando as mercadorias furtadas foram recuperadas e devolvidas ao estabelecimento comercial ainda no dia dos fatos.

Lamentavelmente, em 23/11/2011, julgando a Apelação Criminal nº: 21100120290, a Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo,[24] à unanimidade, negou provimento ao recurso interposto, em que se pugnou pela absolvição de um réu que estava sendo acusado de subtrair os referidos tubos de pastas de dente, também levando em conta os antecedentes criminais do agente.

Constata-se, sem muito esforço, que para iludir tributos na monta de R$ 10.000,00 (dez mil reais) é necessário ter patrimônio o bastante para garantia de uma vida digna. O mesmo não se pode dizer em relação à subtração de duas latas de azeite ou de tubos de pastas de dente. Aquele que pratica um furto, nessas condições, o faz não visando o proveito econômico, mas sim a sua subsistência.

Sobre a ausência de critérios seguros para a aplicação do princípio da insignificância, registrem-se as palavras de Luiz Flávio Gomes:[25]

“Em virtude da ausência de critérios legais claros e definitivos, nota-se na aplicação do direito patentes desigualdades (que chocam o homem comum e colocam a Justiça em descrédito). Há juízes que admitem a insignificância e outros que não; há juízes que levam em conta só o desvalor do resultado e outros que exigem também o desvalor da ação e da culpabilidade; a falta de critérios legais nesse âmbito é fator de grande insegurança e permite, muitas vezes, grande poder de discricionariedade ao Juiz (recorde-se quanto mais discricionários os poderes do Juiz, mais facilmente pode-se chegar a atos arbitrários e discriminatórios)”.

Com efeito, Rogério Greco afirma ser “muito subjetivo o critério para que se possa concluir se o bem atacado é insignificante ou não”, aduzindo que “teremos, outrossim, de lidar ainda com o conceito de razoabilidade para podermos chegar à conclusão de que aquele bem não mereceu a proteção do Direito Penal, pois que inexpressivo”.[26]

Luiz Regis Prado afirma, por tais razões, que a “sua aplicação costuma vulnerar a segurança jurídica, peça angular do Estado de Direito”.[27] Há quem afirme, peremptoriamente, que o princípio é “incompatível com as exigências da segurança jurídica. A delimitação dos casos de bagatela ficaria confiada à doutrina e à jurisprudência, sendo o limite sempre discutível”.[28]

Questiona-se: se nos casos de crimes contra a ordem tributária adota-se um critério objetivo para aplicar (ou não) o princípio da insignificância, por que não adotá-lo nas demais infrações penais (principalmente naquelas de natureza patrimonial)?

São evidentes a possibilidade e a necessidade de adoção de critérios mais seguros, sobretudo nos delitos patrimoniais, visto que se trata da categoria de crimes que mais contribui para o crescimento da população carcerária brasileira, conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional, levantados até junho de 2011.[29]

Ousa-se dizer que essa abstenção por parte do Poder Legislativo e do Poder Judiciário tem um único propósito: propiciar “legitimamente” a manipulação das decisões sempre em favor dos mais abastados.

Guilherme de Souza Nucci[30] sustenta que:

“A sensibilidade da magistratura brasileira tem atingido níveis ideais, ao praticar cortes justos e avançados, em matéria punitiva, evitando-se apenar o agente de pequenas agressões, mais pelo contraste entre a conduta lesiva e a finalidade da pena do que, propriamente, pelo resultado do crime”.

Com o devido respeito ao autor, como se pode observar, o Poder Judiciário está longe de atingir níveis ideais no que se refere à aplicação do princípio da insignificância.

Faz-se mister transcrever as críticas de Pierpalo Cruz Bottini:[31]

“A restrição da interpretação generosa da insignificância a determinados delitos mostra como a própria jurisprudência acaba por repetir algumas incongruências que pautam a atividade legislativa, em especial o sutil e inconsciente corte social que acaba por gerar decisões desproporcionais e desiguais para autores de delitos de natureza similar”.

Poder-se-ia colacionar inúmeros outros precedentes como esses, que demonstram ser o princípio da insignificância (da forma como é tratado pela jurisprudência pátria) um mecanismo criado para a criminalização (ou descriminalização) de pessoas determinadas, conforme sua classe social.

Afora total subjetividade contida nos tradicionais vetores cunhados pelos Tribunais, parte da doutrina e (grande) parte da jurisprudência, como observado nos acórdãos citados alhures, tem examinado o princípio da insignificância à luz das condições pessoais do agente.

Concorda-se com Luiz Regis Prado[32] quando afirma que

“a restrição típica decorrente da aplicação do princípio da insignificância não deve operar com total falta de critérios, ou derivar de interpretação meramente subjetiva do julgador, mas ao contrário há de ser resultado de uma análise acurada do caso em exame [...]”.

No entanto, data venia, parece equivocado o entendimento de que para a determinação do conteúdo da insignificância é necessário analisar a “culpabilidade, personalidade, conduta social, antecedentes [...]”.[33]

Guilherme de Souza Nucci[34] perfilha do mesmo entendimento, aduzindo:

“Outro dado fundamental, objeto de análise para a constatação da insignificância, diz respeito à pessoa do autor e ao modo como desenvolveu sua conduta aparentemente lesiva. Os atributos de personalidade, antecedentes, conduta social, associados à particular execução, suas circunstâncias e consequências, são fatores essenciais para vincular ao grau de potencial lesivo ao bem jurídico, visto em visão total”.

Frise-se que culpabilidade, personalidade, conduta social e antecedentes são algumas das circunstâncias judiciais elencadas no artigo 59 do Código Penal que devem ser observadas pelo magistrado na fixação da pena-base, conforme o procedimento trifásico, idealizado por Nelson Hungria e estampado no artigo 68 do Estatuto Repressivo.

Nessa perspectiva, entende-se de forma majoritária, como dito anteriormente, que a incidência do princípio da insignificância afasta o elemento tipicidade (em seu aspecto material). Ora, ausente o elemento tipicidade, não há crime. Logo, se não há crime, por consequência lógica, não se há de falar em pena (e também não em análise do artigo 59 do Código Penal).

Com razão, Luiz Flavio Gomes adverte que “a insignificância relaciona-se ao injusto penal, nada tendo com os critérios subjetivos típicos da reprovação da conduta, que se relacionam com a culpabilidade (necessidade da pena)”.[35]

No mesmo sentido, Paulo Queiroz conclui que “por traduzir um problema de tipicidade, e não de individualização judicial da pena, o princípio da insignificância deve ser reconhecido independentemente da existência de maus antecedentes, reincidência ou continuidade delitiva”.[36]

Do mesmo modo, a conclusão de Luiz Luisi:[37]

“É inquestionável que, se não existe a tipicidade, as circunstâncias presentes no contexto do fato e a vida passada do autor não têm a virtude de transformar em ilícito o fato. Uma lesão insignificante a um bem jurídico, ainda que seja de autoria de um reincidente na prática de delitos graves, não faz com que ao mesmo se possa atribuir um delito. Seus antecedentes, por mais graves que sejam, não podem levar à tipificação criminal de uma conduta que, por haver causado insignificante dano a um bem jurídico, não causou uma lesão relevante”.

A adoção de critérios relativos à pessoa do agente para a incidência (ou não) do princípio da insignificância significa retroceder ao Direito Penal do Autor em detrimento ao Direito Penal do Fato. Em outras palavras, as circunstâncias de cunho pessoal somente poderão ser examinadas nas hipóteses em que elas forem elementares do tipo, sob pena de considerar uma conduta criminosa em razão da pessoa que a praticou e não em razão dos fatos.

Assim, uma mesma conduta pode ser considerada delituosa se praticada por “X” e não ser vista como crime quando cometida por “Y”, a depender da situação econômica, personalidade, antecedentes criminais etc. de cada um deles. Vale dizer, é a punição do sujeito pelo que ele é e não pelo que fez.

Embora não haja um critério absoluto a respeito do que seja o direito penal do autor, Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli consideram “uma corrupção do direito penal, em que não se proíbe o ato em si, mas o ato como manifestação de uma ‘forma de ser’ do autor, esta sim considerada verdadeiramente delitiva”.[38]

Nota-se que a concepção trazida pelos autores acerca do Direito Penal do Autor se coaduna com a consideração de aspectos relacionados à pessoa do agente para a aplicação do princípio da insignificância.

Com efeito, conforme lecionam Zaffaroni e Pierangeli “um direito que reconheça, mas que também respeite a autonomia moral da pessoa, jamais pode penalizar o “ser” de uma pessoa, mas somente o seu agir, já que o direito é uma ordem reguladora de conduta humana”.[39]

Além de tecnicamente equivocado o entendimento de analisar as circunstâncias do artigo 59 do Código Penal antes mesmo da configuração do crime, surge um problema de ordem prática.

A práxis forense demonstra que boa parte dos juízes (compreendendo aqueles de primeira e segunda instâncias), não conseguem (e não querem) analisar corretamente as circunstâncias judiciais, estabelecendo penas bem acima do mínimo legal com referências imprecisas e dados não explicitados. Como observa o desembargador Sérgio Bizzotto Pessoa de Mendonça, do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo:[40] “algumas expressões já se tornaram chavões ou clichês cansativamente repetidos em muitas sentenças com a finalidade de atender apenas formalmente à motivação da fixação da pena-base com base nas circunstâncias judiciais”.

Vale trazer as palavras de Aury Lopes Junior criticando a postura de determinados julgadores:[41]

“Esse juiz representa uma das maiores ameaças ao processo penal e à própria administração da justiça, pois é presa fácil dos juízos apriorísticos de inverossimilitude das teses defensivas; [...] como (paleo)positivista, acredita no dogma da completude do sistema jurídico, não sentindo o menor constrangimento em dizer que algo ‘é injusto, mas é lei, e, como tal, não lhe cabe questionar’; sentem-se à vontade no manejo de conceitos vagos, imprecisos e indeterminados (do estilo ‘prisão para garantia da ordem pública’, ‘homem médio’, ‘crimes de perigo abstrato’, etc.), pois lhe permitem ampla manipulação etc”.

Se mesmo após toda a persecução penal, de posse do conjunto probatório (muitas vezes favorável ao réu), o julgador não analisa corretamente as circunstâncias pessoais do agente, fixando uma pena extremamente elevada, parece pouco provável que, apenas com o inquérito policial ou peças de informações obtidas pelo Parquet, rejeitará a denúncia com fulcro na insignificância. Notadamente diante do entendimento jurisprudencial majoritário no sentido de que o recebimento da inicial acusatória dispensa fundamentação, enquanto para a sua rejeição é imprescindível à demonstração dos motivos de fato e de direito.

Pergunta-se: o magistrado preferirá o tradicional despacho “recebo a denúncia, pois preenchidos os requisitos do art. 41 do CPP” ou expor motivadamente as razões de fato e de direito que o levaram a rejeitar a peça acusatória? Constata-se na prática, lamentavelmente, que o julgador (não todos) opta pelo caminho mais curto.

Ainda que o juiz eleja a segunda opção – a rejeição da denúncia com a exposição de seus fundamentos –, teria ele elementos suficientes para aferir aspectos relacionados ao agente? Acredita-se que não.

O conjunto probatório antes da audiência de instrução e julgamento é incapaz de fornecer qualquer juízo de certeza sobre culpabilidade, personalidade, conduta social, entre outros. Esse foi inclusive um dos fundamentos para a edição da Súmula 438 do Superior Tribunal de Justiça, que preconiza ser inviável a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com base em pena em perspectiva (prescrição virtual ou prescrição em perspectiva).

A crítica não se limita aos magistrados. Estendem-se, também, aos membros do Ministério Público. Nesse sentido, as brilhantes palavras de Oscar Mellin Filho:[42]

“Em suas manifestações processuais, muitos membros do Ministério Público não resistem a revelar as escolhas que fazem, dentre os indivíduos processados, classificando uns como perigosos, outros nem tanto. Quem são, contudo, os perigosos?

Chega-se, por exemplo, a considerar perigoso réu que simplesmente negou a autoria do crime que lhe é imputado, sendo taxado de mentiroso. Aqueles que ostentam algumas condenações por furto são classificados como criminosos natos, com a “personalidade voltada para o patrimônio” (TJ/SP Apelação nº 1146.686.3/8). O que pratica roubo não faz jus a determinados benefícios legais, em sede de execução penal, porque é “pessoa extremamente perigosa, violenta e nociva à comunidade” (TJ/SP Agravo nº 1224.374.3/2). E mais: “não há como negar que o roubador — autor de crime doloso com violência ou grave ameaça — é, presumidamente, possuidor de personalidade perigosa” (grifo meu) (TJ/SP Apelação nº 990.08.058077-9).

[...]

Ocorre que o juízo de periculosidade, assim abraçado por nós membros do Ministério Público, acaba por influenciar também os juízes e tribunais na escolha das vias e mecanismos legais que lhe são colocados à disposição pelo extenso cardápio da dogmática jurídica. Dessa escolha, travestida em individualização da pena(1), resultará a imposição de penas qualitativa e quantitativamente diferentes e regimes mais ou menos severos.

[...]

A ausência de senso crítico ao recusar-se a diferenciar, por exemplo, roubos de roubos (arroubos) ou traficantes de traficantes, costuma reproduzir disparatados aforismas do senso comum da mídia policial: “o tráfico é a constituição dos crimes. É o ápice, pois todos os demais crimes estão interligados com o entorpecente, seja o roubo praticado pelo viciado, o furto pelo usuário ou o homicídio pelo traficante” (TJ/SP Agravo nº 1224.269.3/3).

Todas essas posturas, embora produzidas em meio a dispositivos retórico-processuais em casos concretos, não se limitam a convencer o juiz da causa. Repercutem em muito na construção do verdadeiro Direito Penal, que não é o das leis penais e muito menos o das normas e princípios constitucionais, mas o das práticas judiciárias”.

Como bem salientam Julio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini:[43]

“Com as cautelas necessárias, reconhecendo caber induvidosamente na hipótese examinada o princípio da insignificância, não deve o delegado instaurar inquérito policial, o promotor de justiça oferecer denúncia, o juiz recebe-la ou, após a instrução, condenar o acusado. Há no caso a exclusão da tipicidade do fato e, portanto, não há crime a ser apurado”.

Expressões como “habitualidade delitiva”, “criminoso contumaz”, “criminoso habitual, que faz do crime seu meio de vida” também já se tornaram “chavões” ou “clichês”, pois são empregadas rotineiramente para afastar a incidência do princípio da insignificância, muitas vezes sem que o agente tenha sequer uma condenação transitada em julgado, malferindo-se o princípio da presunção de inocência.  

Argumenta-se com frequência que “comportamentos contrários à lei penal, mesmo que insignificantes, quando constantes, devido à sua reprovabilidade, perdem a característica da bagatela e devem se submeter ao direito penal”.[44] Entretanto, esquece-se que o Direito Penal é a arma mais poderosa de que dispõe o Estado para a repressão de condutas desvirtuadas e, por isso, deve ser a ultima ratio.

Sobre esse aspecto, citam-se as considerações de Fernando Célio de Brito Nogueira:[45]

“[...] numa visão mais humanizada do Direito Penal, o princípio da insignificância não pode ser desprezado ou desconsiderado a pretexto de fomentar a impunidade. O que fomenta a impunidade e o recrudescimento da criminalidade são muito mais a ausência de resposta estatal efetiva aos grandes desmandos e ilicitudes da Nação, condutas que não raras vezes sangram os cofres públicos e o bolso dos cidadãos que trabalham e pagam impostos, bem como o não-atendimento das necessidades básicas das pessoas”.

A sociedade certamente se contentará com a condenação daquele empresário que promove o ingresso de mercadorias em território nacional, iludindo tributos na monta de R$ 10.000,00 (dez mil reais), e não com a daquele desempregado que subtrai latas de azeite ou tubos de pastas de dentes.

Cumpre frisar que não se pretende com este breve estudo sustentar a aplicação indiscriminada do princípio da insignificância a toda e qualquer conduta, pois sabe-se que qualquer ofensa a determinados bens jurídicos, como por exemplo, à vida ou à dignidade sexual, é, por si só, constitucionalmente relevante. O que se busca é demonstrar a necessidade de construção de decisões justas com aplicação racional do referido princípio, por meio de critérios não meramente subjetivos.

Em virtude dessas ponderações, conclui-se que o princípio da insignificância, trazido pela jurisprudência comumente com um discurso garantista, se trata de mais um mecanismo dentro do sistema penal de garantir e legitimar a seleção de pessoas e não comportamentos a serem submetidos a lei penal.