Primeiras impressões sobre a responsabilidade civil das empresas desenvolvedoras e administradoras de aplicativos para chamar táxis


Porbgomizzolo- Postado em 30 março 2015

Primeiras impressões sobre a responsabilidade civil das empresas desenvolvedoras e administradoras de aplicativos para chamar táxis 

Vitor Guglinski

1. INTRODUÇÃO

Um dos maiores desafios do Direito na contemporaneidade relaciona-se com o avanço, cada vez mais acelerado, das inovações produzidas com o uso da informática e da internet. O Direito avança em progressão aritmética; a tecnologia em progressão geométrica.

A cada dia que passa, novos aplicativos são desenvolvidos e lançados por diversasstartups com o objetivo de proporcionar aos usuários da rede uma enorme variedade de utilidades e conveniências, bastando que o utente que disponha de algum sistema operacional compatível com a utilização dos aplicativos que, normalmente, são desenvolvidos para os sistemas Android, iOS e Windows Phone, atualmente disponíveis em tablets e smartphones.

Nesse novo universo frequentemente repaginado em que vivemos, a questão envolvendo a responsabilidade civil dos desenvolvedores e administradores de aplicativos tem chamado nossos tribunais a se pronunciar a tal respeito, uma vez que várias pessoas têm sido vítimas de maus elementos que utilizam tais serviços como instrumentos para a prática de ilícitos.

Para citar fatos recentes, a justiça do estado do Espírito Santo determinou, liminarmente, que a Google e a Apple retirassem de suas lojas virtuais, bem como removessem de todos os smartphones em que estivessem instalados, os aplicativos Secret e Cryptic, respectivamente (leia aqui: http://www.conjur.com.br/2014-ago-19/juiz-manda-apple-google-removerem-aplicativo-secret-celulares).

Até o momento em que escrevemos este texto, a maioria das notícias envolvendo a má utilização de aplicativos refere-se a casos de intimidade e privacidade devassadas, em especial aqueles envolvendo o que se convencionou denominar revenge porn (pornografia de vingança), em que usuários da internet promovem a divulgação e circulação de fotos e vídeos íntimos. Em regra, tais ofensas à intimidade e à privacidade são perpetradas por homens que, insatisfeitos com o fim do relacionamento, exibem suas ex-parceiras durante o ato sexual ou fotografias delas nuas.

Contudo, a imprensa trouxe à lume uma nova situação envolvendo a utilização de aplicativos. Trata-se de um usuário do aplicativo 99Taxis, que foi agredido fisicamente por um taxista na cidade de São Paulo. No caso, a vítima relatou que chamou o táxi, através do referido aplicativo, tendo especificado que gostaria de pagar a corrida com cartão de débito ou crédito. Entretanto, no momento do pagamento, o taxista disse que não receberia nessas modalidades, o que gerou discussão entre as partes. O cliente então saiu do taxi, e enquanto caminhava, foi seguido pelo taxista, que o espancou pelas costas (leia mais em: http://g1.globo.com/são-paulo/noticia/2014/08/jovem-acusa-taxista-de-ataque-apos-negar-pagamento-combinado-app.html).

Pois bem.

As questões que desafiam debate são:

  1. O Código de Defesa do Consumidor é aplicável ao caso?
  2. Há responsabilidade civil por parte da empresa desenvolvedora/operadora do aplicativo pela agressão sofrida pelo usuário?

As indagações acima são, aparentemente, simples. Todavia, o tema é complexo, seja pela vastidão do campo de aplicação do instituto da responsabilidade civil, seja pela ausência de referências doutrinárias e jurisprudenciais específicas. Exemplo disso é a própria Lei nº 12.965/14 (Marco Civil da Internet), que, apesar de prever a responsabilização civil de provedores de aplicações de internet, não tratou do tema em apreço, regulando tão somente a responsabilidade desses provedores nos casos envolvendo dano decorrente de conteúdo gerado por terceiros. Daí se vê a peculiaridade do caso em estudo.

Assim, buscar-se-á analisar separadamente cada uma dessas questões propostas, esclarecendo-se, desde já, que, como explicitado no título do artigo, trata-se de primeiras impressões sobre a matéria, sendo o estudo fundamentado em outras situações analisadas pela doutrina e jurisprudência, envolvendo serviços aparentemente gratuitos de internet, o que desafia reflexões mais aprofundadas pela comunidade acadêmica, especialmente por parte dos estudiosos da responsabilidade civil.



2. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

 

A respeito da aplicação do Código de Defesa do Consumidor às empresas desenvolvedoras/administradoras de aplicativos, parece-nos que a resposta é positiva.

Explica-se.

Em regra, para que um serviço se sujeite às regras do CDC, é necessário que seja remunerado, nos termos do § 2º do art. 3º do CDC, que dispõe, expressamente: “serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração...” (grifei).

Contudo, cabe ponderar que, na esteira da melhor doutrina e da jurisprudência, há serviços cuja a remuneração nem sempre ocorre de forma direta, mas indiretamente. Ou seja, o fornecedor, ainda que não receba qualquer quantia diretamente do usuário do serviço, aufere vantagens (não precisa ser necessariamente uma vantagem pecuniária) em razão de sua atividade.

Sobre o tema, leciona GARCIA:

“Segundo o artigo, estariam excluídas da tutela consumerista aquelas atividades desempenhadas a título gratuito, como as feitas de favores ou por parentesco (serviço puramente gratuito). Mas é preciso ter cuidado para verificar se o fornecedor não está tendo uma remuneração indireta na relação (serviço aparentemente gratuito). Assim, alguns serviços, embora sejam gratuitos, estão abrangidos pelo CDC, uma vez que o fornecedor está de alguma forma sendo remunerado pelo serviço” (GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do Consumidor: código comentado e jurisprudência. 7ª ed., Niterói: Impetus, 2011, p. 26).

No mesmo sentido, TARTUCE afirma que: “De início, cumpre esclarecer que, apesar de a lei mencionar expressamente a remuneração, dando um caráter oneroso ao negócio, admite-se que o prestador de serviço tenha vantagens indiretas, sem que isso prejudique a qualificação da relação consumerista” (TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor: direito material e processual. 3ª ed. São Paulo: Método, 2014, p. 98).

Como exemplo, cite-se as ações reparatórias envolvendo a Google e blogs, em que o STJ vem reconhecendo que aquela empresa, em que pese fornecer seus serviços gratuitamente aos internautas, é, no entanto, remunerada por empresas parceiras. Confira-se as seguintes ementas:

CIVIL E CONSUMIDOR. INTERNET. RELAÇÃO DE CONSUMO. INCIDÊNCIA DOCDC. GRATUIDADE DO SERVIÇO. INDIFERENÇA. PROVEDOR DE PESQUISA. FILTRAGEM PRÉVIA DAS BUSCAS. DESNECESSIDADE. RESTRIÇÃO DOS RESULTADOS. NÃO-CABIMENTO. CONTEÚDO PÚBLICO. DIREITO À INFORMAÇÃO.

1. A exploração comercial da Internet sujeita as relações de consumo daí advindas à Lei nº 8.078/90.

2. O fato de o serviço prestado pelo provedor de serviço de Internet ser gratuito não desvirtua a relação de consumo, pois o termo"mediante remuneração", contido no art. 3º, § 2º, do CDC, deve ser interpretado de forma ampla, de modo a incluir o ganho indireto do fornecedor.

3. O provedor de pesquisa é uma espécie do gênero provedor de conteúdo, pois não inclui, hospeda, organiza ou de qualquer outra forma gerencia as páginas virtuais indicadas nos resultados disponibilizados, se limitando a indicar links onde podem ser encontrados os termos ou expressões de busca fornecidos pelo próprio usuário.

4. A filtragem do conteúdo das pesquisas feitas por cada usuário não constitui atividade intrínseca ao serviço prestado pelos provedores de pesquisa, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos termos do art. [14] do CDC, o site que não exerce esse controle sobre os resultados das buscas.

5. Os provedores de pesquisa realizam suas buscas dentro de um universo virtual, cujo acesso é público e irrestrito, ou seja, seu papel se restringe à identificação de páginas na web onde determinado dado ou informação, ainda que ilícito, estão sendo livremente veiculados. Dessa forma, ainda que seus mecanismos de busca facilitem o acesso e a consequente divulgação de páginas cujo conteúdo seja potencialmente ilegal, fato é que essas páginas são públicas e compõem a rede mundial de computadores e, por isso, aparecem no resultado dos sites de pesquisa.

6. Os provedores de pesquisa não podem ser obrigados a eliminar dos eu sistema os resultados derivados da busca de determinado termo ou expressão, tampouco os resultados que apontem para uma foto ou texto específico, independentemente da indicação do URL da página onde este estiver inserido.

7. Não se pode, sob o pretexto de dificultar a propagação de conteúdo ilícito ou ofensivo na web, reprimir o direito da coletividade à informação. Sopesados os direitos envolvidos e o risco potencial de violação de cada um deles, o fiel da balança deve pender para a garantia da liberdade de informação assegurada pelo art. 220, § 1º, da CF/88, sobretudo considerando que a Internet representa, hoje, importante veículo de comunicação social de massa.

8. Preenchidos os requisitos indispensáveis à exclusão, da web, de uma determinada página virtual, sob a alegação de veicular conteúdo ilícito ou ofensivo - notadamente a identificação do URL dessa página - a vítima carecerá de interesse de agir contra o provedor de pesquisa, por absoluta falta de utilidade da jurisdição. Se a vítima identificou, via URL, o autor do ato ilícito, não tem motivo para demandar contra aquele que apenas facilita o acesso a esse ato que, até então, se encontra publicamente disponível na rede para divulgação.

9. Recurso especial provido.

(STJ, 3ª Turma, REsp. Nº 1.316.921/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 26/06/2012, publicado em 29/06/2012).

DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. INTERNET. BLOGS. RELAÇÃO DE CONSUMO. INCIDÊNCIA DO CDC. GRATUIDADE DO SERVIÇO. INDIFERENÇA. PROVEDOR DECONTEÚDO. FISCALIZAÇÃO PRÉVIA DO TEOR DAS INFORMAÇÕES POSTADAS NOSITE PELOS USUÁRIOS. DESNECESSIDADE. MENSAGEM DE CONTEÚDO OFENSIVO. DANO MORAL. RISCO INERENTE AO NEGÓCIO. INEXISTÊNCIA. CIÊNCIA DAEXISTÊNCIA DE CONTEÚDO ILÍCITO. RETIRADA IMEDIATA DO AR. DEVER. DISPONIBILIZAÇÃO DE MEIOS PARA IDENTIFICAÇÃO DE CADA USUÁRIO. DEVER. REGISTRO DO NÚMERO DE IP. SUFICIÊNCIA.

1. A exploração comercial da Internet sujeita as relações de consumodaí advindas à Lei nº 8.078/90.

2. O fato do serviço prestado pelo provedor de serviço de Internetser gratuito não desvirtua a relação de consumo, pois o termo"mediante remuneração" contido no art. 3º, § 2º, do CDC, deve serinterpretado de forma ampla, de modo a incluir o ganho indireto dofornecedor.

3. A fiscalização prévia, pelo provedor de conteúdo, do teor dasinformações postadas na web por cada usuário não é atividadeintrínseca ao serviço prestado, de modo que não se pode reputardefeituoso, nos termos do art. 14 do CDC, o site que não examina efiltra os dados e imagens nele inseridos.

4. O dano moral decorrente de mensagens com conteúdo ofensivoinseridas no site pelo usuário não constitui risco inerente àatividade dos provedores de conteúdo, de modo que não se lhes aplicaa responsabilidade objetiva prevista no art. 927,parágrafo único, do CC/02.5. Ao ser comunicado de que determinado texto ou imagem possuiconteúdo ilícito, deve o provedor agir de forma enérgica, retirandoo material do ar imediatamente, sob pena de responder solidariamentecom o autor direto do dano, em virtude da omissão praticada.6. Ao oferecer um serviço por meio do qual se possibilita que osusuários externem livremente sua opinião, deve o provedor deconteúdo ter o cuidado de propiciar meios para que se possaidentificar cada um desses usuários, coibindo o anonimato eatribuindo a cada manifestação uma autoria certa e determinada. Soba ótica da diligência média que se espera do provedor, deve esteadotar as providências que, conforme as circunstâncias específicasde cada caso, estiverem ao seu alcance para a individualização dosusuários do site, sob pena de responsabilização subjetiva por culpain omittendo.7. O montante arbitrado a título de danos morais somente comportarevisão pelo STJ nas hipóteses em que for claramente irrisório ouexorbitante. Precedentes.8. Recurso especial a que se nega provimento.

(STJ, 3ª Turma, REsp. Nº 1.192.208/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 12/06/2012, publicado em 02/08/2012).

Outro caso típico, embora haja divergência entre tribunais estaduais, diz respeito ao site Buscapé, em que há julgadores que admitem sua responsabilidade por danos ao consumidor e, de outro lado, aqueles que afastam sua responsabilização. A ilustrar, confira-se as ementas abaixo:

RECURSO INOMINADO. RESPONSABILIDADE CIVILCONSUMIDOR. COMÉRCIO ELETRÔNICO. AQUISIÇÃO DE PRODUTO PELA INTERNET. PRODUTO NÃO ENTREGUE. DIREITO DO AUTOR À DEVOLUÇÃO DOS VALORES PAGOS. RESPONSABILIDADE DA RÉ BUSCAPÉ, PORQUANTO FAZ PARTE DA CADEIA DE FORNECEDORES. SENTENÇA MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. RECURSO IMPROVIDO. (Recurso Cível Nº 71004490157, Terceira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Fabio Vieira Heerdt, Julgado em 13/03/2014)

DIREITO CIVIL OBRIGAÇÕES COMPRA E VENDA SITE DE INTERNET "BUSCAPÉ" LOJA VIRTUAL INADIMPLEMENTO NÃO ENTREGA DO PRODUTO DANO AO COMPRADOR LEGITIMIDADE PASSIVA RESPONSABILIDADE OBJETIVA E SOLIDÁRIA NÃO CARACTERIZAÇÃO.

O site eletrônico BUSCAPÉ não possui legitimidade passiva para responder em ação de restituição pelo inadimplemento de obrigação originária de compra e venda de loja virtual, pois o fato do site apresentar as lojas, os produtos, os preços e as condições, não retira do interessado a obrigação de contratar diretamente com o vendedor a compra e o pagamento do preço, portanto, não efetuando intermediação, não está caracterizada a responsabilidade objetiva do artigo 14 doCDC para responder solidariamente pelos danos experimentados pelo consumidor. Ação parcialmente provida e recurso provido para declarar a extinção do processo. (TJSP, 35ª Cãmara de Direito Privado, APL 90005105020078260506, Rel. Des. Clóvis Castelo, julgado e publicado em 15/04/2013).

Vistas as ementas transcritas, parece-nos que o Judiciário tende a reconhecer a existência de relação de consumo, ainda que o serviço fornecido pelo provedor ou pela página seja gratuito.

No caso em comento, o primeiro detalhe que deve ser observado é no sentido de que o aplicativo em questão não se trata de um serviço destinado à hospedagem, tráfego ou propagação de conteúdo, isto é, não há o armazenamento de arquivos (vídeos, fotos, textos etc.), mas sim de um simples serviço cujo objetivo é aproximar passageiros e taxistas, de modo a agilizar a disponibilização de táxis aos usuários, ao mesmo tempo em que aqueles profissionais têm mais chances de captar clientes, e assim manter o táxi menos ocioso.

Sendo assim, s. M. J., aos aplicativos localizadores de táxis não deve ser dispensado o mesmo raciocínio empregado na investigação jurídica levada a efeito nos casos envolvendo aplicativos destinados ao armazenamento de conteúdos. Em princípio, aquelas plataformas não armazenam dados para troca entre os usuários, propondo-se tão somente a localizar os táxis mais próximos do usuário, comunicando ao respectivo motorista que há um cliente nas proximidades, de modo que ele se desloque até o passageiro para realizar a corrida.

Resumidamente, num primeiro contato, ao que nos parece, o serviço oferecido pelos aplicativos para chamar táxis assemelha-se ao que é oferecido pelo site Buscapé, isto é, há tão somente uma aproximação do consumidor (passageiro) com o fornecedor (taxista).

Advirta-se, entretanto, que, com base nos julgados cujas ementas foram transcritas, o reconhecimento da responsabilidade civil dos operadores desse tipo de aplicativo pode variar conforme a corrente adotada pelo aplicador do direito. Isto é, se for entendido que a empresa operadora do aplicativo integra a cadeia de fornecimento, poderá ser responsabilizada por eventual vício do serviço, mas não por fato (acidente de consumo). Noutro giro, entendendo-se que o contrato de transporte é firmado diretamente com o motorista do táxi, fica afastada a responsabilidade da empresa que gerencia o aplicativo.

2.1. VÍCIO DO SERVIÇO

Nada obstante, reforce-se a necessidade de se distinguir duas situações para que haja a incidência do Código de Defesa do Consumidor nos casos envolvendo aplicativos para chamar táxis; (i) a responsabilidade por eventual vício do serviço e (ii) a responsabilidade pela agressão sofrida pelo passageiro.

Veja-se.

Ao se consultar o site da empresa 99Taxis é possível verificar que há duas “abas” para consulta que, caso seja adotada a tese da remuneração indireta do serviço, podem conduzir à aplicação do CDC, caso ocorra vício do serviço.

Na “aba” intitulada “Promoções” há um tópico denominado “Parceiros”. Ao acessá-lo, verifica-se que há um rol de empresas que oferecem benefícios para os passageiros que apresentarem aos respectivos estabelecimentos o “recibo 99Taxis”, tais como: chopp e cerveja grátis, descontos em tira-gostos, entrada gratuita no estabelecimento etc. De sua sorte, na aba denominada “Serviços” há a opção “Solução corporativa”, destinada a empresas, as quais, mediante remuneração mensal, pagam à 99Taxis para que sejam disponibilizados táxis para seus colaboradores, de maneira mais rápida e eficiente.

Desse modo, não há dúvidas de que o aplicativo em questão trata-se de um serviço prestado de forma profissional pela empresa, corroborando a tese de que a gratuidade é apenas aparente.

Ultrapassado esse esclarecimento, apenas para rememorar, haverá vício quando o “defeito” atingir meramente a incolumidade econômica do consumidor, causando-lhe tão somente um prejuízo patrimonial. Nesse caso, diz-se que o dano é circa rem; possui natureza contratual. No presente caso, trata-se de um serviço não durável, como são os serviços de transportes. A durabilidade do serviço está relacionada à expectativa de sua utilidade para o consumidor.

Pois bem.

No âmbito casuístico, os fatos, da forma como foram colocados, demonstram que o passageiro em questão fez a chamada do táxi por meio do referido aplicativo. Segundo afirmou, no momento da chamada selecionou o cartão de crédito como forma de pagamento. Contudo, no momento do pagamento o motorista lhe informou que não receberia daquela forma, e então os fatos se desenrolaram da forma como exposta na reportagem citada.

Anote-se, por pertinente, que na página do aplicativo há um manual direcionado aos taxistas sobre como utilizar o aplicativo. Referido manual consta da “aba” denominada “Taxista”, e traz em seu bojo “Os 10 lemas dos taxistas 99 Taxis”. O 6º “lema” do taxista diz o seguinte: “Se o seu cadastro diz que você aceita cartão, não gere transtorno ao passageiro que quer pagar com cartão e não cobre taxas extras” (leia em: http://www.99taxis.com/manual-de-uso/).

Ora, na opinião deste autor, não há dúvidas de que houve, in casu, um vício do serviço, já que, no mínimo, houve uma falha de comunicação por parte do aplicativo, que, após disparar a chamada aos táxis mais próximos, ou não fez constar na comunicação que se tratava de um passageiro que pagaria a corrida com cartão de crédito ou, ainda que tenha feito constar tal informação na chamada, permitiu que ela chegasse a um taxista que não aceita tal forma de pagamento. De um modo ou de outro, houve falha de comunicação.

No entanto, quanto ao dano físico (fato do serviço) sofrido pela vítima, no nosso sentir a empresa não poderia ser responsabilizada pela agressão levada a efeito pelo taxista. E a razão para tanto está no fato de que, como dito, a garantia de segurança não está inserida nos riscos inerentes ao negócio de startups dessa natureza, como será detalhado adiante.

2.2. CONCORRÊNCIA ENTRE APLICATIVOS

Outro fato que chama a atenção é a existência de outros aplicativos de idêntica natureza à disposição dos usuários dos serviços de táxi. Um dos mais comuns é o Easy Taxi (http://www.easytaxi.com/br), cujo funcionamento é bastante assemelhado, havendo opções corporativas para empresas, descontos para clientes de uma instituição financeira, vouchers promocionais etc.

Bem assim, fica evidente que existe concorrência entre aplicativos para chamar táxis, pois é possível identificar nos respectivos sites uma variedade de benefícios ofertados a usuários e empresas para que se decidam por esse ou aquele serviço, o que ajuda a sinalizar no sentido da aplicação do CDC às empresas desenvolvedoras/administradoras de aplicativos dessa natureza.

Desse modo, a existência de concorrência colabora para que se conclua no sentido da incidência do Código de Defesa do Consumidor em tais casos.

3. RESPONSABILIDADE POR AGRESSÕES A PASSAGEIROS

Parece-nos forçado, contudo, admitir-se a responsabilização civil das empresas que gerenciam essa espécie de aplicativo por eventuais agressões a passageiros, como ocorrido no caso vertente.

Deve-se ponderar que a garantia de segurança não é intrínseca à atividade de empresas dessa natureza, não faz parte de sua organização, tratando-se de fortuito externo, e, portanto, de uma excludente de responsabilidade do fornecedor. Sinteticamente, o fortuito externo pode ser conceituado como o fato imprevisível e inevitável, que não guarda nenhuma relação com a atividade desenvolvida pela empresa. A esse respeito, confira-se o disposto no inciso II,do § 3º, do art. 14, doCDC:

Art. 14 (omissis)

(...)

§ 3º O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:

(...)

II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

Destarte, s. M. J., sendo o taxista um terceiro cujos ânimos estão fora da previsibilidade e evitabilidade por parte da empresa que opera o aplicativo, a esta nenhuma responsabilidade deve ser imputada pela agressão levada a efeito contra o passageiro.

Lado outro, dúvidas não há de que o passageiro poderá, com base no art. 14, § 1º, doCDC, responsabilizar objetivamente o taxista pela agressão. Veja-se:

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

§ 1º O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

I - o modo de seu fornecimento;

II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;

III - a época em que foi fornecido.

Quanto a esse ponto, importa salientar que, em relação à corrida de táxi, enquanto contrato de transporte que é, deve ser observada a cláusula de incolumidade, assim explicada por CAVALIERI FILHO:

“Sem dúvida, a característica mais importante do contrato de transporte é a cláusula de incolumidade que nele está implícita. A obrigação do transportador não é apenas de meio, e não só de resultado, mas também de segurança. Não se obriga ele a tomar as providências e cautelas necessárias para o bom sucesso do transporte; obriga-se pelo fim, isto é, garante o bom êxito. Tem o transportador o dever de zelar pela incolumidade do passageiro na extensão necessária a lhe evitar qualquer acontecimento funesto...” (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2012. P. 328).

Ante a lição do preclaro autor, não restam dúvidas quanto à violação da cláusula de incolumidade por parte do motorista do táxi, aliás, de forma dolosa, registre-se.

Inobstante, adiantando-nos em relação a eventual questionamento acerca da responsabilização da empresa por fato do serviço (acidente de consumo), analisa-se.

O fato do serviço (sinônimo de acidente de consumo) ocorrerá sempre que o defeito, além de atingir a incolumidade econômica do consumidor, vier a atingir sua incolumidade física ou psíquica. Nesse caso, haverá danos à saúde física ou psicológica do consumidor. Portanto, diferentemente do vício, o fato do serviço deve desencadear um dano que extrapola a órbita do próprio serviço.

Veja-se que, no presente caso, o passageiro sofreu uma agressão física, foi golpeado e ferido pelo taxista. Portanto, dúvidas não há de que houve fato do serviço, ocasionado exatamente pelo prestador do serviço.

No entanto, esse fato do serviço, pelos argumentos já delineados quando da conclusão de ocorrência de fortuito externo em relação à empresa, conduz à sua não responsabilização por fato do serviço. Ou seja, somente o taxista responderá por fato do serviço.


4. CONCLUSÃO

Como visto, as relações travadas por meios eletrônicos são complexas, representando um grande desafio para os estudiosos do Direito, especialmente quando a análise envolve o vastíssimo campo de aplicação do instituto da responsabilidade civil.

Quanto à aplicação do Código de Defesa do Consumidor às empresas desenvolvedoras/operadoras de aplicativos para chamar táxis, parece-nos que não há dúvidas nesse sentido, eis que, embora apresentem o serviço como sendo gratuito para passageiros e taxistas, é possível verificar que essas startups são indiretamente remuneradas, através de parcerias com outros estabelecimentos empresariais (bares, restaurantes, boates, casas de espetáculos etc.). Ademais, a existência de concorrência entre empresas dessa natureza é mais um indicativo de que trata-se de uma relação de consumo, já que todas elas buscam arregimentar clientela para promover o crescimento do negócio.

Porém, ficou claro que a incidência do CDC a essas relações deve se limitar aos casos envolvendo vício do serviço, conforme explanado, ficando de fora eventuais acidentes de consumo (fato do serviço), uma vez que a garantia de segurança (cláusula de incolumidade) não é inerente à atividade da empresa virtual. Sem embargo, em casos tais, nada impede que o passageiro, com fundamento nas normas consumeristas, acione judicialmente o taxista, porquanto este e o passageiro se enquadram perfeitamente no conceito jurídico de fornecedor e consumidor, respectivamente.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Brasília, 23 de abril de 2014. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm

BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília, 11 de setembro de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 10ª ed., São Paulo: Atlas, 2012.

GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do Consumidor: código comentado e jurisprudência. 7ª ed., Niterói: Impetus, 2011.

TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor: direito material e processual. 3ª ed. São Paulo: Método, 2014.





Disponível em: http://jus.com.br/artigos/31639/primeiras-impressoes-sobre-a-responsabilidade-civil-das-empresas-desenvolvedoras-e-administradoras-de-aplicativos-para-chamar-taxis/2#ixzz3Vt7f6Tys (Acesso em 30/03/2015)